quinta-feira, 25 de junho de 2009

A última valsa da The Band




Tem épocas na vida que ficamos pensando em coisas que poderíamos ter feito e acabamos não fazendo por falta de coragem, motivação ou até mesmo por não existir a possibilidade. Imagine se você pudesse ter participado das grandes navegações, viver as grandes descobertas da ciência nos séculos XVII e XVIII ou até mesmo ter sido o goleiro da Seleção Brasileira e evitado o maracanazzo de 1950? Em modos gerais, me afeta muito o fato de não ter vivido a época flower power (cara, estar no Woodstock ou em Monterey, ao vivo, quem não queria?), ver o Bowie em ação durante a turnê do Ziggy Stardust, ter visto o Led detonando em Knebworth ou até mesmo ter curtido "umas" com a Janis.

Mas creio que de todos os eventos possíveis, o que mais eu gostaria de ter participado foi o show de despedida da The Band. Fundada em 1958, em Toronto, com o nome de The Hawks, o grupo acompanhou o cantor canadense Ronnie Hawkins entre 1959 e 1963. Na formação, gênios como o temperamental Robbie Robertson (guitarra e voz), o talentoso Rick Danko (baixo e voz), o não menos talentoso Levon Helm (bateria e voz), o doidão Richard Manuel (piano e vocal) e o maestro Garth Hudson (órgão, teclados), sendo que este último entrou na banda com a condição de que os demais integrantes o pagassem dez dólares por semana. A gurizada aceitou sem saber muito bem o porque, já que o talento de Garth era excepcional. Depois, descobriram que a única foma do organista contar para seus pais que estava ensaiando com uma banda de rock era fingir ser professor de música dos caras.

Palco do show de The Last Waltz


Após o tempo com Hawkins o grupo preferiu seguir carreira sozinho, já que existiam grandes diferenças musicais entre eles e o cantor, mais ligado ao pop. Passam então a ensaiar e compor muito, tocando com gente como Sonny Boy Williamson e John Hammond, contando com um novo batera, Sandy Konikoff, até que são convidados para acompanhar Bob Dylan durante sua turnê elétrica, entre 1965-1966, gravando o genial Blonde On Blonde, de 1966, agora com Mickey Jones na bateria. 

Essa formação participou do famoso show de Dylan no Free Tade Hall, em Manchester, onde o cantor foi vaiado e chamado de Judas pela platéia por justamente mudar sua imagem folk para uma roqueira. Em seguida Dylan sofreu um grave acidente de moto e foi recuperar-se na fazenda de Woodstock, onde, ao lado dos Hawks, que estavam novamente com Helm, gravou The Basement Tapes, uma jóia que deve ser curtida com muita cachaça de butiá e um cigarrinho de palha.

The Last Waltz autografado


Passada a época com Dylan, os Hawks passaram a compor suas próprias canções e, principalmente, a buscar sua própria imagem. Conseguem um contrato com a gravadora Capitol e buscam um novo nome, já que Hawks estava muito ligado à Dylan e Hawkins. A príncipio fugiram da onda psicodélica que assolava os EUA, com nomes estranhos como Big Brother and The Holding Company ou Jefferson Airplane, procurando um nome simples e direto. Assim, batizaram-se com a alcunha de The Honkies, mudando para The Crackers ao término da gravação do primeiro álbum. Porém, a gravadora aboliu os nomes citados, e batizou a banda apenas como The Band, grifando na capa do excepcional Music From Big Pink, de 1968, um dos nomes mais influentes de toda a história do rock canadense.

O grupo caminhou por suas próprias pernas durante alguns anos, lançando jóias como The Band (1969), Rock of Ages (1972) e, principalmente, Northern Lights - Southern Cross (1975), e também saíram em turnê com Crosby, Stills, Nash & Young, Beach Boys e Joni Mitchell, até que Robbie e os demais decidiram acabar com a banda e aproveitar a vida, já que estavam ficando velhos e cansados de toda a badalação em torno de drogas, mulheres, festas e turnês. Assim, Robbie começou a planejar o show de despedida, o qual teve a primeira data marcada para 03 de outubro de 1976, mas foi realizado no dia 25 de novembro de 1976.

Livreto de informações do show


Na verdade, os abusos de drogas (principalmente de Manuel, que consumia oito garrafas do licor Grand Marnier por dia adicionado de cocaína, o que levou o pianista a sofrer um grave acidente de barco em 1975) fizeram com que o ambiente interno fosse se degradando. A longa turnê ao lado de Crosby, Stills, Nash & Young também consolidou a idéia de que uma pausa era necesária. Sem shows, Robbie esperava ver a The Band como os Beatles, apenas gravando em estúdio e tendo uma vida normal. Os demais integrantes foram contra, mas o "poderoso chefão" Robbie acabou convencendo de que ou o grupo parava de excursionar ou então não sobreviveriam por mais do que um ano.

Um dos grandes momentos de The Last Waltz

Todo um esquema foi concebido por Robbie, que acabou sendo, além de mentor, o integrante mais ativo na divulgação do evento. A idéia inicial era fazer um mega concerto com a participação de personagens importantes para a história do grupo. Porém, a genialidade de Robbie foi além, e fez desse show o maior espetáculo que uma banda poderia proporcionar sozinha.

O primeiro passo foi achar um lugar, que a princípio seria o Paramount Theater em Oakland, Califórnia, mas acabou sendo o Winterland Ballroom, em São Francisco, onde a The Band tinha conseguido o êxito fabuloso de estrear como banda em 1969. Em diversas músicas, uma orquestra de metais acompanharia o grupo, com arranjos de Allen Toussaint. A seguir, uma lista de artistas começou a ser preenchida. Ronnie Hawkins, Dr John, Joni Mitchell, Emmylou Harris, Paul Butterfield, Van Morrison, Neil Young e Eric Clapton aceitaram o convite prontamente. Na cola, vieram Ron Wood, Ringo Starr, George Harrison (que não pode participar), Neil Diamond, Muddy Waters, entre outros.

O último a confirmar foi o Sr Dylan. Isto porque, como o evento passou a contar com um número tal de celebridades, surgiu a idéia de transformar o show em um mega concerto, o qual seria filmado e lançado em LP. Assim, Dylan não queria aparecer no filme devido ao fato de estar filmando seu próprio projeto, Renaldo and Clara. O acordo veio com a promessa de Robbie para Dylan de que o filme com o registro do show seria lançado somente depois do lançamento do filme de Dylan, com Dylan aceitando filmar apenas duas de suas músicas.

Martin Scorsese durante as filmagens do show

Martin Scorsese foi convidado para fazer a filmagem. Inicialmente a idéia era de um registro em 16 mm, porém Scorsese decidiu inovar, registrando tudo em modernas câmeras de 35 mm. Scorsese cercou-se dos mais respeitados operadores de câmera de Hollywood, desenvolvendo um ambiente de produção digno de Oscar, com roteiro, scripts, desenhos e, principalmente, muitos jogos de luzes e câmeras. Também fez um magnífico storyboard, acompanhado de Robbie, onde ilustrava à cada câmera aonde e como deveria ser captada determinada imagem. Ele ainda foi o responsável pelo palco, ao lado de Bill Graham (dono do Winterland e dos lendários Fillmore), alugando lustres da ópera La Traviata, que era uma produção californiana, e também montando um belíssimo cenário de fundo.

Vinil triplo apresentando o registro do show


O último passo surgiu também na hora da divulgação do evento: um super jantar e também uma apresentação da Berkeley Promenade Orchestra iriam esquentar o público até a hora do show. Diversos artistas locais também foram convidados para se apresentar, sendo declamando poemas ou com quadros para decorar o teatro. Cinco mil ingressos foram disponibilizados a 5,50, 6,50 e 7,50 dólares, sendo vendidos rapidamente, com o espetáculo sendo chamado de The Last Waltz. Para o jantar foram usados pratos e talheres descartáveis, o que evitaria problemas como o ocorrido no malfadado show de Altamont, dos Rolling Stones, bem como walkie-talkies para os convidados poderem conversar.


Cartazes de divulgação

Duas campanhas de divulgação foram lançadas, uma com um cartaz bem chamativo, elaborado por Bob Cato, onde uma mulher nua (obra de Georges Hugnet) aparece em uma montagem de fotos, e outro especialmente confeccionado por Bill Graham, o qual ficou exposto no lado externo do teatro. 

A janta antes do show


As cinco horas da tarde do dia de Ação de Graças de 1976 eram abertas as portas do Winterland, com 5.000 fãs e diversos convidados e familiares entrando calmamente, recebendo um folheto redondo que continha algumas informações à respeito de como iria decorrer a noite. Aproximadamente trinta mesas de madeira, com capacidade para 20 pessoas em cada uma, foram dispostas pelo salão e também pelos andares do teatro. O buffet foi servido nas escadarias, e a pessoa, após jantar, dava seu lugar a outro cidadão. Mesmo sendo um dia de Ação de Graças, pessoas vegetarianas receberam atenção especial, com um cardápio exclusivo.

Após a janta, garçons recolheram os pratos e talheres, com pessoas especializadas desmanchando as mesas e abrindo o salão para o próximo evento, uma "milonga" realizada pela orquestra até as oito horas da noite, onde a platéia pode dançar e se divertir. 

Registro acústico para o filme de The Last Waltz


Exatamente às 21 horas a The Band subia ao palco detonando "Up on Cripple Creek". A partir de então, o que se viu foi uma performance ensurdecedora do grupo entoando mais onze pérolas - "The Shape I'm In", "It Makes No Difference", Life is a Carnival", "This Wheel's On Fire", "W.S. Walcott Medicine Show", "Georgia On My Mind", "Ophelia", "King Harvest (Has Surely Come)", "The Night They Drove Old Dixie Down", "Stage Fright" e "Rag Mama Rag" -, para então o primeiro convidado subir ao palco, ninguém menos que Ronnie Hawkins, cantando "Who Do You Love" e relembrando os primeiros anos da banda.

O carismático Dr John entra em cena com sua boina francesa e cantando a jazzística "Such a Night", além de acompanhar Bobby Charles no bluezão "Down South in New Orleans". Outro grande blues, "Mystery Train", foi interpretada por Paul Butterfield, e, para a The Band mostrar que não era apenas uma banda country rock, o mestre Muddy Waters detona em "Caldonia" e "Mannish Boy". 

Muddy Waters

Um detalhe curioso aqui é que com o andamento do show Scorsese ficou preocupado com a duração das fitas e resolveu poupar algumas câmeras. Na hora em que Muddy entrou, Scorsese não ligou o nome à pessoa, e mandou todo mundo descansar. Porém, o câmera Laszlo Kovacs acabou gravando a impecável participação de Muddy. No filme, é muito engraçado ver os câmeras correndo para seus postos após Muddy entoar o primeiro "I'm a man".

Eric Clapton também mandou ver em "All Our Past Times" e "Further on Up the Road", sendo que durante o solo na última a correia de sua guitarra caiu, mas Robbie continuou sem problemas. Neil Young se emocionou tocando "Helpless" e "Four Strong Winds", com backing vocals de Joni Mitchell, que permaneceu no palco com direito até a beijo na boca de Robbie, e lindamente cantou "Coyote", "Shadows and Light" e "Furry Sings the Blues", algumas com a participação de Dr John nas congas. 

O fanfarrão Neil Diamond cantou a linda balada "Dry Your Eyes" e gerou certos problemas durante o concerto, principalmente com Dylan, enquanto o gordinho Van Morrison agitou muito em "Tura Lura Lural" e "Caravan". Neil Young e Joni MItchell voltaram ao palco para interpretar "Acadian Driftwood", "Genetic Method" e "Chest Fever".

A The Band ficou novamente sozinha, arrebentando em "Evangeline", "The Weight", "Baby Let Me Follow You Down" e "Hazel", para aí sim a atração principal, Bob Dylan, colocar suas botas no palco e arrancar lágrimas de todos os presentes com "I Don't Believe You", "Forever Young" e "Baby Let Me Follow You Down" novamente.

Todos os convidados retornaram ao palco, juntamente com Ron Wood e Ringo Starr, para cantar "I Shall Be Released", e então duas longas jams foram ouvidas e vistas na Califórnia, uma com Butterfield, Clapton, Young, Wood, Dr John, Ringo e a The Band, e outra com Butterfield, Clapton, Young, Wood, Stephen Stills, Dr John, Garth, Carl Radle, Ringo e Levon Helm, encerrando a apresentação.

A The Band saiu do palco e então novamente a orquestra continuou o espetáculo. Porém, era quase duas horas da manhã e o repertório clássico já havia sido esgotado, mas ninguém movia-se de dentro do teatro esperando mais uma canção da The Band. Aproximadamente as 2:15 da manhã o grupo, com a sua formação original, voltou ao palco pela última vez, aclamada pelo público, e cantou "Don't Do It", que é a música de abertura do filme The Last Waltz (no Brasil, erroneamente batizado como O Último Concerto de Rock).

Nesse mesmo filme é possível ver toda a tensão do grupo no início e as descontraídas participações dos convidados no decorrer do show. Algumas canções ficaram de fora, e inclusive "Evangeline" e "The Weight" foram refilmadas em estúdio, mas o recheio das principais participações ficou registrada em um filme espetacular, que ainda contém diversas entrevistas com o pessoal da The Band logo após saírem do palco, narrando diversas histórias da carreira da banda. Uma excelente produção de um dos melhores documentários sobre rock já feitos na história.


Raridades ligadas ao LP de The Last Waltz


Um vinil triplo com um luxuoso álbum-encarte com capa em veludo e recheado de fotos e informações também foi lançado, em uma versão raríssima de apenas 1.500 cópias, contando inclusive com músicas que não fizeram parte do filme. Recentemente vi no eBay norte-americano uma cópia ser vendida pela bagatela de 500 dólares (!). Posteriormente, somente três encartes contendo as informações de cada música acabaram ficando nas lojas. Em CD houve o lançamento em disco duplo e em 2002 uma rara versão, contando com todo o show e mais músicas de ensaio, foi lançada em um box set com quatro CDs.

Todos são ótimos registros para se conhecer o trabalho deste espetacular grupo, mas com certeza quem esteve presente no dia da despedida da The Band deve até hoje deitar com a imagem dos gigantescos lustres iluminando os músicos, que fizeram uma das melhores apresentações já vistas na história da música.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Possessed




Uma das mais furiosas e pesadas bandas que já ouvi na minha vida. Caraca, sabe quando algo te pega pelo pé e não desgruda mais? Na época eu tinha apenas 8 anos, meu irmão mais velho estudava na cidade de Pelotas e lá desenvolvia sua cultura musical (até então formada por A-ha, Legião Urbana, Tears For Fears, entre outras coisas oitentistas) adquirindo k7s de bandas como Iron Maiden, Sepultura e Slayer. 

Dentre esses k7s chegou nas mãos dele um com uma capa amarela, cheia de coqueiros e contando no lado A com algumas músicas do ... And Justice For All do Metallica e do outro lado uma barulheira infernal que não agradou meu irmão, mas que grudou em mim como chiclete no casaco. Óbvio, para quem tinha 8 anos, estava viciado em Led Zeppelin e Pink Floyd, aquilo foi um choque. Pauleira do início ao fim, solos rápidos de guitarra, uma voz demoníaca. Enfim, o Possessed surgiu para mim como um diabo pedindo sua alma, e eu vendi a minha por uma simples cópia daquele k7 (por favor, não confundir com o Possessed dos anos setenta, e que lançou o fantástico álbum Exploration de 1971. Isso é material para outra edição).

Formada em 1983 na Bay Area californiana, de onde também vieram Slayer, Exodus e Testament, o Possessed levou ao extremo o que o Venom já vinha pregando em álbuns como At War With Satan e Welcome to Hell. Ao lado do Slayer, o Possessed sagrou-se como uma das principais bandas no cenário thrash/death metal, arrebanhando fãs de diversas gerações e, principalmente, lançando ótimos trabalhos em uma curta carreira.

O início do Possessed é um tanto quanto conturbado. No final dos anos setenta os garotos Mike Torrao (guitarra), Mike Sus (bateria) e Barry Fisk (voz) tocavam nas garagens de San Francisco, sendo que o som variava entre clássicos como Black Sabbath e até mesmo influências da NWOBHM. Diversos colegas e amigos passaram a tocar com o trio, mas nunca com uma formação fixa, até que no final de 1983, sem nenhuma explicação, Barry Fisk cometeu suicídio. 


Torrao e Sus ficaram muito abalados com a morte do amigo, mas seguiram seus ensaios, chamando para substituir Fisk o vocalista da banda Blizzard, Jeff Becerra, que assumiu os vocais e o baixo e deu uma nova sonoridade para a banda, juntamente com a chegada de um segundo guitarrista, Brian Montana. Nos ensaios começaram a surgir sons cada vez mais demoníacos, influenciados principalmente pelo que o Venom estava fazendo. A banda já estava decidida a fazer um som para apavorar os ouvintes, além de abusar de blasfêmias, satanismo e muita loucura. Diversos nomes surgiram, até que Torrao sugeriu Possessed e, assim, o quarteto estava batizado.


Começam então a ensaiar e participar de shows, sendo que tornam-se a banda de abertura do Exodus em diversas ocasiões. Conseguem uma grana e em 1984 lançam sua primeira demo, chamada simplesmente Death Metal, a qual trazia três macabras músicas que se tornaram épicas na história do Possessed: "Death Metal", "Evil Warriors" e "Burning in Hell". Na mesma sessão gravaram "Fallen Angel", que não foi lançada na versão original da demo.

Com o k7 na mão e fazendo diversos shows, logo chegam aos ouvidos do cabeça da Metal Blade Records, Brian Slagel, que convidou os garotos a participar da compilação Metal Massacre. Sem muita resistência, o Possessed gravou "Swing of the Axe", que foi a faixa de abertura da coletânea Metal Massacre VI. Após o lançamento de "Swing of the Axe", Montana foi despedido devido à problemas musicais, sendo substituído pelo também ex-Blizzard Larry Lalonde, formando então a clássica fase do grupo.


Com Lalonde a banda ganhou ainda mais em velocidade, sendo que agora já faziam shows como atração principal pela região da Bay Area. Participam de mais uma compilação, Speed Kills I (1985), com a música "Pentagram", e assinam um contrato com a Combat Records. 

Pouco antes do halloween de 1985 lançam seu primeiro álbum, o chocante Seven Churches (o qual era o que estava registrado no tal k7 que falei no início). Um álbum genial e assustador, a começar pela capa, totalmente negra, com uma cruz invertida em branco e com as letras da banda ardendo em fogo e escritas em alto relevo, sendo que do P sai um longo rabo de diabo.


Cercado de clássicos do death metal, o disco abre com a vinheta de "The Exorcist", de Mike Oldfield, que foi tocada nos teclados pelo produtor da banda, Randy Burns, dando espaço para a pauleira "The Exorcist", do Possessed, como se dissessem "ISSO é uma música sobre exorcismo!". As guitarras tomam contam das caixas de som, com a bateria quebrando tudo em um death super rápido. Os vocais de Becerra são sujos, na mesma linha de Cronos (Venom), e os riffs de guitarra, além de muito sujos, são rápidos e de dar medo. Temos o primeiro tema característico da canção, um riff que ficou para o death metal assim como o riff de "Paranoid" do Black Sabbath entrou para a história do heavy. Um hino do thrash/death, venerado e amado por todos os seguidores do estilo.

O diabo em pessoa executa as palavras iniciais da poderosa "Pentagram". Cheia de quebradas e mudanças de tempo, o destaque vai para as linhas de baixo e guitarra, com muito peso e variações. Além disso, os solos de guitarra também apresentam variações na melodia, mostrando que o Possessed não fazia só barulho, mas também tinha uma linha instrumental excelente.

A insana guitarra de Torrao marca o riff de "Burning in Hell", mais uma paulada de quebrar o pescoço. De novo o Possessed mostra suas garras em partes trabalhadas e quebradas. 
Os solos de guitarra são velozes demais, levando a uma parte mais pesada (acho que o Slayer se inspirou nessa passagem quando fez o álbum South of Heaven). A voz de Becerra parece sair das profundezas do inferno, e com a pauleira pegando novamente no encerramento da faixa.

Para quem pensa que vai descansar, "Evil Warriors" mantém a insanidade dos riffs velozes. A bateria rufa como martelos na cabeça, e Becerra está cada vez mais alucinado em frases como "Enslaved in forever torment, blood drips from your eyes". Mais uma grande canção do thrash/death, com muito trabalho da cozinha baixo/bateria.

O lado A encerra com outro clássico, a inquestionável "Seven Churches". Para mim uma das melhores faixas no estilo, com uma baita riff de introdução. A voz de Becerra está suja demais, agonizante nas caixas de som, e a linha de guitarras contruída por Torrao e Lalonde é de tirar o fôlego. A sequência de notas no meio da faixa é incrivelmente rápida, e Becerra mostra que, além de um grande vocalista, é um baita baixista, pois acompanhar a velocidade das guitarras é algo muito complicado. Nos solos, Torrao e Lalonde humilham as alavancas, destruindo as cordas em acordes agudos, com Becerra gritando ao mundo "Sacrifice to the sky, terror strikes, you will die".

Depois de recuperar o pescoço, o lado B te leva a curvar-se perante o som do Possessed, começando com a fantástica "Satan's Curse", com a sua inconfundível introdução que é levada durante toda a faixa. A sequência de solos entre Lalonde e Torrao, com direito a mais um solo de Torrao, é cheia de palhetadas furiosas e muitas alavancas, retomando a pauleira inicial.

"Holy Hell" é capaz de levantar os demônios sob a Terra. A entrada cheia de pegada da bateria e do baixo trazem os riffs sujos de Torrao e Lalonde, num ritmo mais cadenciado, onde os dois bumbos de Sus comandam toda a destruição em frases como "Satan's child, he is born and to death he is sworn". A capacidade de criar riffs da dupla Torrao/Lalonde é incrível, mostrando que o death metal não precisa ser somente levado como uma sequência de acordes e muita distorção. E com certeza, os riffs de "Holy Hell" estão entre os melhores da dupla.

O melhor ainda está para vir, com "Twisted Minds", para mim a melhor canção do Possessed. A introdução somente com a guitarra é divina, e os vocais de Becerra, com gritos mais que guturais entoando "revenge" me transformaram em um grande fã da banda. 

Essa foi a segunda música que ouvi da banda "(a primeira foi "The Exorcist") e até hoje eu agito muito quando ouço as variações de baixo e guitarra que o trio encaixou no meio dela. A levada pesada de "Burning in Hell" aparece no primeiro solo de Torrao, devolvendo a pauleira da letra como uma raquetada quebra-saque. Além disso, os dois bumbos no segundo de Torrao são de fazer inveja, e claro, o peso que o Possessed emprega ali realmente não tem como não se ajoelhar.

Por fim, duas músicas da fase inicial. A brutal "Fallen Angel", com os sinos de igreja acompanhando os riffs de guitarra na introdução e com uma velocidade única, e outro grande clássico, que deu nome a um novo estilo dentro do metal, "Death Metal", com a incrível entrada de Sus. Aliás, Sus é o destaque nessa faixa, mandando ver nos dois bumbos e na levada da caixa. Clássico único, com um refrão inconfundível, cantado até os dias de hoje por todas as gerações de apreciadores do estilo. As guitarras estão bestiais, e o pique de Becerra vomitando a letra entre as viradas de baixo e bateria é de assustar. Um clássico dos infernos!

Como li uma vez em uma determinada resenha, Seven Churches não é para principiantes, apesar de eu ter sido um a ter entrado na iniciação do metal através desse demoníaco álbum. A partir dele, o nome Possessed virou símbolo de bestialiadade, satanismo e, principalmente, de fúria, tanto no palco quanto no som. A banda causou um verdadeiro rebuliço na cena metal, consolidando o death metal como um novo gênero musical.

O nome Seven Churches se deu como um tributo as Sete Igrejas do Apocalipse (também conhecidas como Sete Congregações da Revelação), Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodicéia, as quais são citadas no Apocalipse da Bíblia como as sete igrejas (congregações) da Ásia Menor que devem se arrepender de seus pecados para poderem entrar no paraíso após o Apocalipse.


A banda partiu para uma longa excursão nos EUA, começando um novo trabalho e também buscando novas sonoridades, já que estavam sendo banidos de diversos locais justamente pela imagem satânica que carregavam. São atração principal na compilação Bullets Vol I (1986), tocando "Phantasm", e com os novos sons, desta vez exatamente no halloween de 1986, lançam Beyond the Gates.


O som já não era tão rápido, soando até um pouco comercial, o que acabou com a banda recebendo fortes críticas tanto da impensa como dos fãs. Mesmo assim é um excelente trabalho, e hoje tem seu reconhecimento através de inúmeras listas de melhores álbuns do death metal em todos os tempos.

O disco abre com a dupla "Intro/The Heretic", onde o tema inicial é uma bela composição aos sons de teclados e com uma cadência leve do baixo e da bateria, para a pauleira comer solta em "The Heretic". A velocidade e a agressividade estão presentes, bem como as letras cuspidas de Becerra. A linha de guitarras trabalhadas também é apresentada, com Lalonde e Torrao mandando ver em solos inspirados. Mesmo assim o som é diferente, lembrando mais o Metallica de Kill 'Em All do que o próprio Seven Churches. Sus destrói sua bateria no final da faixa, e o Possessed seguia ativo e feroz.

Em "Tribulation" a voz de Becerra está mas suja ainda, e essa sim poderia estra tranquilamente em Seven Churches, principalmente pela enrolada e complicada parte instrumental, onde guitarra, baixo e bateria embolam-se em um som horripilante. O peso aparece no refrão, com muitas palhetadas abafadas, que seguem até os solos de Becerra e Lalonde, onde aí sim a pauleira pega mesmo, numa sessão instrumental muito boa.

As palhetadas comandam "March to Die" como um cachorro rosnando atrás de um gato. O refrão é outro daqueles grudentos, fazendo desta uma das melhores músicas do álbum. "Phantasm", essa uma canção mais hard, mas com muito peso, traz riffs matadores, com uma levada bestial e uma sequência de solos excelente, interceptada pelas viradas de bateria de Sus. No final, um lindo dedilhado somente na guitarra encerra em um clima leve esse pesadíssimo lado.

A longa "No Will to Live" abre o Lado B. Uma pedrada para relembrar Seven Churches. A bateria de Sus está mais rápida do que nunca, e as palhetadas de Lalonde e Torrao estão cada vez melhores. Os riffs complicados aparecem no meio da canção, e é muito difícil entender como eles conseguem acertar os tempos de cada nota. O ritmo muda, ganhando ainda mais velocidade, com explosões ao fundo enquanto Becerra agoniza nos microfones. O uso das alavancas é de arrepiar, parecendo que estamos em um apocalipse, com Becerra gritando muito e as palhetadas comendo soltas. Os solos não são rápidos, mas mesmo assim a melodia das guitarras é sensacional. Grande faixa!

A pesadona "Beyond the Gates" diminui a insanidade veloz de "No Will to Live", mas mesmo assim não dá pra descansar o pescoço. Os riffs de Lalonde e Torrao estão no mesmo nível dos criados por Kerry King e Jeff Hanneman, mostrando que mesmo o disco não sendo um Seven Churches é um grande álbum, com certeza. Ainda temos direito a uma pauleira da bateria, abafada por riffs absurdamente rápidos.

Os acordes de "The Beasts of the Apocalypse" soam como abelhas africanas em busca do mel. Porém, a levada é bem cadenciada, com muito peso e solos rasgadíssimos. "Seance" é outra paulada, com um grito infernal de Becerra e com uma sessão instrumental tri pesada. Por fim, a dupla "Restless Dead/Dog Fight" encerra o segundo álbum do Possessed de forma sublime, com muito peso, pancadaria e, principalmente, guitarras destorcidas e alucinação geral. A entrada triunfal da bateria de Sus é irreproduzível, com Lalonde, Torrao e Becerra mandando ver nas cordas. "Dog Fight" é apenas uma vinheta instrumental com muito peso, onde Torrao e Lalonde duelam suas guitarras entre palhetadas, bends, alavancas e muito sustain.


O destaque também deve ser dado para a bela capa dupla lançada originalmente, onde os portões abriam exatamente no meio (assim como a capa original de Brain Salad Surgery do ELP), expondo uma grande ilustração onde criaturas demoníacas voavam em um deserto montanhoso (seria o inferno??). Óbvio que essa versão custa muitas carnes de picanha quando encontrada. 


A banda saiu em turnê durante todo o ano de 1987, e no final do mesmo ano lançam o EP The Eyes of Horror. Contendo apenas cinco músicas, esse EP acabou por finalizar os trabalhos do Possessed com sua formação clássica, mesclando a sonoridade de seus antecessores e abrindo com a paulada "Confessant", que é muito parecida com as canções de Beyond the Gates, contendo um excelente trabalho de guitarras. 

Segue a pesada "My Belief", outra que poderia ter sido encontrada no South of Heaven, e que tem uma incrível sessão onde a velocidade é da fase inicial, com muitos arpejos e palhetadas. Por fim, o lado A encerra com a faixa-título, onde Becerra canta quase chorando. Essa sim uma verdadeira paulada, com um refrão super pesado e com muitos riffs grudentos.

O lado B abre com "The Swing of the Axe", na mesma versão lançada na coletânea Metal Massacre. Para mim é a melhor do EP, não só por ser da fase inicial, mas por ser muito veloz, com Becerra cantando e tocando muito. Rápidas variações nas notas e um refrão tão pesado quanto um brontossauro são pouco perto do que Torrao e Lalonde fazem nas guitarras. Realmente infernal.

"Storm in My Mind" encerra o EP com uma longa introdução instrumental, onde Torrao manda ver em um solo cheio de tappings, alavancas e bends. Uma grande faixa, com muito peso, onde as guitarras novamente são a principal atração. A pauleira come solta, alternando entre momentos cadenciados e outros velozes, nessa que é uma das melhores composições feitas pela banda.



Após o lançamento de The Eyes of Horror, Sus, Lalonde e Becerra decidem sair, alegando pouco tempo para se dedicar à família e querendo deixar a imagem satânica que haviam criado. Torrao continuou por algum tempo compondo e escrevendo músicas sob o nome Possessed, primeiramente ao lado de Chris Stolle (bateria), Dave Couch (guitarra) e Bob Yost (baixo). No halloween de 1991 lançou a rara Demo 1991, contando na formação com Torrao, Yost, Mark Strausberg (guitarra) e Walter Ryan (bateria), interpretando as canções "The Martyr's Wake" e "The Seventh Sign". 

Em 1992 saiu a primeira coletânea da banda, chamada Victims of Death, e em 1993 sai Demo 1993, contando agora com Torrao, Mike Hollman (guitarra), Walter Ryan (bateria) e Paul Berry (baixo), onde as canções são "The Seventh Sign", "Last Ritual" e "Human Extermination". Após essas tentativas, o grupo foi encerrado definitivamente.

Lalonde foi fazer carreira ao lado do Blind Illusion, lançando em 1988 o álbum The Sane Asylum, e em 1989 juntou-se a Les Claypool no Primus, onde obteve um relativo sucesso. Mike Sus formou-se em psicologia e hoje trabalha auxiliando viciados a se recuperar das drogas. 

Becerra foi vítima de um assalto em 1989, onde levou dois tiros de uns drogados que o deixaram paralítico da cintura para baixo, o primeiro entrando no peito acima do mamilo e alojando-se na espinha e o segundo acertando e arrancando a ponta do dedo anelar de Becerra, que escapou da morte quando o bandido colocou a arma na cabeça do vocalista e, por sorte, a arma acabou travando. Após o incidente voltou a cursar a faculdade e se formou em Artes, além de graduar-se em Estudos do Trabalho pela San Francisco State University.


Em 2003 chegava ao mercado Resurrection, trazendo músicas gravadas durante um ensaio de 1984 e mais uma nova composição criada por Becerra, e em 2004 o primeiro álbum ao vivo, Agony in Paradise, o qual traz um show gravado em 26 de janeiro de 1987. 


Também nesse ano Becerra participou do tributo Sevens Gates of Horror: A Tribute to Possessed, lançado pela gravadora Karmageddon Media e com nomes de peso como Cannibal Corpse, Vader, Diabolic, Absu, entre outros, interpretando clássicos da banda. Em 2006, mais precisamente no dia 6/6/6, sai o EP colorido de 7 polegadas Ashes From Hell em uma tiragem limitada de 1.000 cópias (eu tenho a minha!) contendo "The Exorcist", "Confessions", "Death Metal" e Burning in Hell", as duas últimas em uma rara versão ao vivo gravada em 07 de setembro de 1985 no Ruthies Inn da Califórnia.

Em 2007 Becerra retomou os trabalhos com o Possessed ao lado do pessoal da banda Sadistic Intent, Ernesto Bueno (guitarra), Rick Cortez (guitarra), Bay Cortez (baixo) e Emilio Marquez (bateria), virando atração principal do Wacked Open Air na Alemanha, onde a banda tocou para mais de 60.000 pessoas. Em julho de 2008 o Brasil recebia a nova formação do Possessed, tocando nas cidades de São Paulo, no festival Death Metal Festival Tour Brasil, em Recife, Curitiba e Belo Horizonte, onde sacudiram as cabeças de muita gente.

Porém, após os shows no Brasil, durante a passagem pela Noruega, a banda cancelou sua aparição no festival Way of Darkness III, que aconteceria entre 02 e 04 de outubro daquele ano na Alemanha, devido a problemas de saúde com Becerra, os quais foram causados pelo fato de escarras em ferimentos na pele de doentes obrigados a ficar em uma mesma posição, no caso de Becerra, sentado. Por mais ridículo que pareça, Becerra sofreu discriminação em Paris, onde não foi atendido pelos médicos, que se recusaram a tratar de um norte-americano em estado grave. Hoje ele está melhor, mas nada se sabe quanto ao futuro da banda.

Depois do Possessed eu viria a conhecer Slayer, Obituary, Carcass, Deicide, Vader, Burzum, mas de todas somente o Slayer conseguiu ter-me um afago, já que as outras, apesar de muito boas, não tinham a originalidade que o Possessed me atormentou quando guri, onde eu via a luz e desejava não ser queimado, pedindo para salvar minha alma e deixar-me somente vivo, ouvindo aqueles sons gerados pelas encarnações do coisa ruim.


quinta-feira, 11 de junho de 2009

Quintal de Clorofila

Quando se fala no rock gaúcho, as primeiras bandas que vêm à cabeça de um cara que conhece um pouco sobre rock são Engenheiros do Hawaii e Nenhum de Nós. Aquele que é mais eclético ainda lembra do Bixo da Seda de Fughetti Luz (e que na verdade teve seu sucesso quando foram morar no Rio de Janeiro), do TNT de Charles Master, dos Replicantes de Wander Wildner ou dos Cascavelletes de Nei Van Soria. Na própria história musical gaúcha, Lupicínio Rodrigues e Nelson Gonçalves são reis, e os mais citados pela população em geral são Elis Regina e Nei Lisboa, entre outros que fizeram do auditório Araújo Viana e do Parque Farrupilha (viva a Redenção!!!!) um marco na cena porto alegrense. Porém, esses últimos, os quais faziam parte da Turma do Bonfim (bairro aqui de Porto Alegre), surgiram em meados dos anos oitenta e tiveram seu auge exatamente no lançamento dos primeiros álbuns das bandas já citadas.

Mas, durante a década de setenta e o início dos oitenta, os patrões dos pampas gaúchos não estavam sentados nos galpões da capital, mas sim espraiando sua musicalidade a partir de duas cidades do interior. O mais famoso deles foi os Almôndegas, de Pelotas, que revelou ao Brasil, entre 1974 e 1979, os irmãos Kleiton e Kledir Ramil e uma sonoridade gauchesca com tempero carioca que abalou as rádios nacionais com músicas como "Canção da Meia-Noite" e "Vento Negro", e que irá merecer uma matéria especial para essa sessão.

O outro patrão em questão também revelou dois irmãos, Dimitri e Negendre Arbo. Surgidos em 1978 e vindos da cidade de Santa Maria, Dimitri e Negendre estudaram na Escola de Artes da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e, juntos, criaram o excepcional Quintal de Clorofila. Em 1983 conseguiram lançar seu único registro, o qual estraçalhou tudo o que já poderia ter se imaginado em termos de musicalidade, misturando elementos do pampa gaúcho à uma sonoridade de diversos instrumentos no mínimo curiosos, como telhas de zinco, galões de gasolina, serrotes, entre outros criados especialmente pela dupla de irmãos.

Essencial e único LP do Quintal de Clorofila

Na época do início da banda, outros grupos semeavam e colhiam suas sonoridades misturando folk rock com elementos gaúchos, tais quais o Couro, Cordas e Cantos, Grupo Terra Viva e Os Tápes, mas o Quintal foi um dos únicos a conseguir lançar um LP, o maravilhoso e cobiçado O Mistério dos Quintais, de 1983. Lançado pelo selo Bobby Som, o álbum é um achado na musicultura gaúcha. Contando com diversos elementos tradicionais do pampa e com a participação de Paulo Soares tocando violão em algumas faixas, O Mistérios dos Quintais está fortemente construído em um clima emocional e musical criado pelos irmãos Arbo, acessorados por diversos instrumentos acústicos como violões, banjo, bandolim, flauta, ocarina, saxofone, além de uma parte percussiva bem elaborada e também pelas lindas poesias do pai, Antônio Carlos Arbo.

O disco abre com a incrível "As Alamedas" e os violões e bandolim introduzindo um clima totalmente medieval. A levada dos violões acompanha os vocais feitos pela dupla, com acordes tristes e narrando a história dos enormes pinheiros que cobrem alamedas em busca da luz do sol e da lua. Quer algo mais progressivo que isso? A introdução é repetida, com os vocais novamente apresentando a letra. Por fim, Dimitri ainda nos brinda com uma intervenção de saxofone sobre efeitos percussivos de pratos e apitos, terminando com um solo de flauta andina acompanhado por violões e por um bumbo-leguero.

O bandolim introduz "Jornada", bem como os violões que lembram as escalas do Gentle Giant nas apresentações ao vivo entre Ray Schulman e Gary Green. Os vocais trazem mais uma letra de Antônio Carlos, com a linha instrumental acompanhada pelo bandolim e pelo violão. O tema central está em um duelo marcado de notas entre bandolim e violão. A introdução é retomada, dando sequência à letra, que agora é acompanhada, além do bandolim e do violão, por efeitos de um teclado Casio bem primitivo, entrando em um belo conjunto de solos de flautas. Vocais ficam sozinhos, trazendo o refrão da letra, com violão, teclados e bandolim trazendo novamente o tema da introdução.

Galões de gasolina, bumbos e muita percussão abrem a instrumental "Drakkars", a qual também conta com a participação de uma flauta solando insanamente. O teclado Casio novamente volta à ativa, executando um determinado tema. Harmônicos dos violões trazem uma parte cheia de vocalizações, que lembram cantos indígenas, com destaque para Negendre mandando ver no violão. A seguir, um engana-bobo aparece, já que temos um solo de flauta que até Ian Anderson diria se tratar de si mesmo a solar. Violões e flautas retomam o clima medieval. O lindo arranjo de Negendre e Dimitri é de chorar, com o clima medieval ficando denso na adição do teclado e também pela velocidade do violão. Por fim, o bumbo-leguero comanda o ritmo para o fantástico encerramento com o solo de flauta e os dedilhados do violão. Sensacional!

Duas homenagens encerram o lado A. A bela "Liverpool", que homenageia o Fab Four, com uma linda introdução de violão e flauta, bem como os solos de Negendre ao violão e Dimitri ao sax, e "Gotas de Seresta", uma linda homenagem aos seresteiros dos anos 40/50, com um belíssimo trabalho do bandolim de Negendre e da flauta de Dimitri que nos fazem pensar em estar realmente ouvindo um 78 rpm. Além disso, a voz de Negendre é de arrepiar, e o encerramento então, pra fazer até o mais sério "metaleiro" ir as lágrimas.

Poster divulgação da apresentação do grupo em 2008

O lado B inicia com o barulho da Maria-Fumaça (famoso trem brasileiro) totalmente recriado pelos instrumentos da dupla, introduzindo "Viver", a qual lembra muito "I've Seen All Good People", do Yes. Os vocais aqui são de Dimitri, com destaque para o violão com distorção usado por Negendre e para o solo com o Casio.

A flamenca "O Último Cigano" recria caminhos da região de Andaluzia. Construída sobre a intrincada peça de Negendre ao violão, é impossível não imaginar lindas morenas com castanholas dançando em nossa volta. Dimitri acompanha seu irmão no violão, e os vocais são acompanhados por acordes de teclado e passagens de violão. Essa canção, principalmente pela levada do violão, mostra como a música gaúcha tem influência da música espanhola, seja como uma milonga ou principalmente quando a parte percurssiva surge, fazendo desta linda canção um quase chamamé (tradicional ritmo gaúcho).

"Jardim das Delícias", criada somente pelos irmãos, tem um início no teclado de lembrar os álbuns da fase alemã do Bowie. Porém, a flauta e o violão já dão jeito de mudar isso. O saxofone leva a uma linda balada, com Negendre mandando ver no bandolim. Vocalizações de Negendre duelando com o seu violão, trazem o violão com distorção novamente, lembrando muito o som de uma guitarra. Lindos dedilhados de violão e o saxofone agonizante nos levam ao final dessa canção com a flauta acompanhando os vocais, que retomam a letra de "As Alamedas", encerrando com um MPB ao violão e sax.

"Balada da Ausência" é outra linda canção construída sobre o trabalho no violão. Com muita percussão, o destaque maior vai para o arranjo de flautas na introdução, com sons de pássaros e a ocarina sendo usada abusivamente. Uma linda balada com um lindo poema de Antônio Carlos Arbo, acompanhado sempre pelo teclado Casio e pelos violões.

Por fim, "O Mistério dos Quintais" encerra esse magnífico e fantástico álbum. A introdução com a ocarina, pássaros, percussão e com uma harpa é divina. Antônio Carlos declama o poema sobre a melodia da harpa e dos violões, que comandam a canção em notas iguais. O violão leva ao encerramento, acompanhado por flautas e por um clima emotivo de despedida. Novamente é difícil não se emocionar com o talento e com o sentimento empregado pelos irmãos Arbo.

Raro LP com a participação da dupla

O duo participou em diversos festivais pelo Rio Grande, chegando inclusive a ter uma canção gravada no raro Projeto Cantares, de 1984 (a saber: o nome da canção era "O Vento e O Trigo"). O duo também continou sua carreira na cena cool da Porto Alegre da década de oitenta. Na inauguração do famoso Bar Opinião, em 1985, a Quintal esteve presente, encantando muita gente que por ali passava. 

Em 1988 o duo acabou dissolvendo-se, com Negendre indo morar no Paraná. Os irmãos acabariam por registrar mais um álbum no ano de 1994, chamado Temporal e com a participação de Frank Cimino nos violões, mas que infelizmente nunca foi lançado. No Paraná, Negendre começou a construir diversos projetos, inclusive trabalhando com índios da região de Foz do Iguaçu, lançando álbuns fantásticos como Secret Face e Final Dance, enquanto Dimitri continuou seus trabalhos em Porto Alegre.

Dimitri Arbo e Mairon Machado

Em 2008 Negendre voltou por uns dias para o Rio Grande do Sul, e, com a ajuda de alguns amigos, a Quintal de Clorofila, depois de vinte anos, voltava a fazer apresentações; uma em Porto Alegre, no Beco das Garrafas, em 11 de abril, e duas na cidade de Capão da Canoa, nos dias 19 e 20. 

Tive o prazer de ser um dos doze (eu me prestei a contar) participantes do retorno da banda no Beco das Garrafas, creio que pela falta de divulgação do show, e me emocionei muito com uma apresentação insana de Negendre declamando poemas e mais poemas tal qual o suor corria de seu corpo, enquanto um emocionado Dimitri mostrava seu talento nos mais diferentes instrumentos. Ainda por cima, tocaram uma inspirada versão de 16 minutos de "As Alamedas", onde, numa noite quente e estrelada, o Quintal conseguiu fazer chover na capital gaúcha. Ao final do show, ainda fiquei tomando cerveja e conversando com os caras durante horas, voltando para casa na madruga, sem ônibus e abaixo de um pé-d'água gigante, mas com a certeza de que era um privilegiado por ter visto dois talentos raros na música brasileira, os quais também são excelentes pessoas.
Negendre Arbo e Mairon Machado



Segundo Dimitri, o som da banda misturava jazz, rock, música medieval e ritmos africanos, orientais e latinos, no que ele chama de "rock viking". Porém, o Quintal era maior que isso. Na verdade, a complexidade e profundidade das canções inspiradas do duo são de notável presença e sentimento, e com certeza devem ser ouvidas e reouvidas para sempre pelos apreciadores de boa música.

O álbum O Mistério dos Quintais foi lançado com uma tiragem pequena, sendo encontrado (quando!) valendo até 500 reais. Porém, se catar na região central do Rio Grande do Sul, as vezes se brilha um LP por modestos cinquentinha. O CD teve um relançamento não autorizado pela dupla, através de amigos argentinos que copiaram o LP para .wav e depois ganharam dinheiro com o som do Quintal. Ao descobrir isso, Negendre fez questão de copiar o seu LP para .wav e .mp3 e distribuiu em diversos blogs que conhecia, sendo que o progshine.com foi um dos que mais ajudaram nesse ponto. Além disso, colocou as canções no site oficial do Quintal para quem quisesse baixar e ouvir, sem custos, com somente a intenção de divulgar o trabalho do Quintal (e claro, acabar com a criminalidade que os argentinos estavam fazendo). No site também colocou a disposição o álbum Temporal, mas atualmente o link está fora do ar. Aproveitando o frio e o feriado, chame seus pais, acenda uma lareira, torre os pinhões, ceve o chimarrão, coloque O Mistérios dos Quintais para rodar e segure as lágrimas.
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