sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Uriah Heep - Into the Wild [2011]



Por Mairon Machado (Publicado originalmente no blog Consultoria do Rock)

Fundado no final da década de 60, o Uriah Heep é um dos mais tradicionais grupos britânicos do rock pesado. Sua carreira foi marcada por discos essenciais como Look at Yourself (1971), Demons & Wizards (1972), Magician's Birthday (1972) e Return to Fantasy (1975). Sua formação possuiu diversos integrantes, sempre capitaneados pelo guitarrista Mick Box.

Com o passar dos anos, o som do Uriah Heep (uma espécie de heavy metal progressivo) sofreu mudanças drásticas, chegando ao AOR nos anos 80 e posteriormente, a um rock mais simples, sem composições longas ou álbuns conceituais. Isso ocorreu a partir da entrada do vocalista Bernie Shaw, em 1989, no álbum Raging Silence. Desde então, o Uriah Heep acomodou-se em uma zona de estabilidade, onde passou a lançar álbuns regularmente, e da mesma forma que outro monstro britânico da década de 70, o Deep Purple, mantém o nome do grupo na ativa com discos que, se não são do mesmo nível que os álbuns que o consagraram, pelo menos não fazem vergonha.

Bernie Shaw, Trevor Bolder, Mick Box, Russell Gilbrook, Phil Lanzon
O caso de Into the Wild, lançado recentemente no mundo, e aqui no Brasil através da gravadora Hellion Records, é surpreendentemente positivo. O mais recente álbum do Uriah Heep agrada aos ouvidos logo de cara, com a pesada "Nail on the Head", uma pesada canção onde os vocais de Shaw mostram estar em plena forma. A formação atual, com Box, Shaw, Trevor Bolder (baixo), Phil Lanzon (teclados, vocais) e Russell Gilbrook (bateria, vocais), faz um som redondinho, tornando o CD talvez o melhor da fase Shaw, bem a frente do bom Sonic Origami (de 1998) ou de Sea of Light (de 1995).

Depois de Celebration, lançado em 2009, trazendo regravações para clássicos do grupo (que soou muito oportunista por parte do quinteto), esse álbum de inéditas apresenta canções bem trabalhadas. Passando rapidamente pelas canções do álbum, temos: "I Can See You", com uma pegada veloz destacando o hammond de Lanzon e Box despejando wah-wah em seu solo; a faixa-título, bem oitentista e com uma levada quadrada da bateria, mas com um refrão bem interessante, assim como a sequência de solos de hammond e guitarra; "Money Talk", outra bem oitentista, sem acrescentar muito.

"I'm Ready" apresenta um riff grudento, bem como uma linha melódica moderna que soa muito bem através da voz de Shaw, sendo ela responsável por abrir os shows atuais do Heep. Os saudosistas irão gostar da bonita introdução de "Trail of Diamonds", que nos remete fortemente para o álbum Return to Fantasy, virando um AORzão interessante a partir de então. Já "Southern Star" é uma canção bem típica do atual momento do Uriah Heep, contando com um refrão levanta arena e com um belo solo de Mick Box, assim como "Believe", onde o destaque vai para outro poderoso refrão para levantar o público.


Por fim, a melhor canção do álbum, "Lost", com sua levada meio oriental nos riffs de órgão e guitarra, além do baixão cavalgante de Bolder, a  alegre "T-Bird Angel", recheada de órgão e dedilhados de guitarra, com mais um refrão marcante, e a balada "Kiss of Freedom", encerram Into the Wild em bom nível, deixando o ouvinte satisfeito com os minutos que se passaram.


A versão da Hellion ainda conta com o bônus, que é  o vídeo para a canção "Nail on the Head", além de estar no formato Digipack, sempre valorizado entre os colecionadores, onde destaca a bonita capa criada pelo artista  grego Ioannis, responsável por trabalhos de grupos como Styx e Lynyrd Skynyrd. Portanto, Into the Wild é uma boa recomendação para os fãs do Heep, que indica mais alguns anos de vida para esse importante grupo do rock mundial.

Uriah Heep ao vivo em 2011

Track list: 

1. Nail on the Head
2. I Can See You
3. Into the Wild
4. Money Talk
5. I'm Ready
6. Trail of Diamonds
7. Southern Star
8. Believe
9. Lost
10. T-bird Angel
11. Kiss of Freedom

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Maravilhas do Mundo Prog: Bacamarte - Último Entardecer [1983]




No início da década de 80, o Rio de Janeiro foi berço daquele que para muitos é o melhor grupo daquele estado. O Bacamarte, assim como Mutantes e Recordando o Vale das Maçãs, rompeu as fronteiras das Terras Brazilis e construiu uma reputação sólida no exterior, principalmente no Japão. 

O início foi em 1974, quando o multi-instrumentista Mário Neto (guitarras, violões) começou sua carreira ao lado de três colegas da Escola Marista, no Rio de Janeiro. Mário chegou a cursar a faculdade de Engenharia na Veiga de Almeida, mas seu monstruoso talento fez com que ele guinasse mesmo para a música. 

O Bacamarte teve diversas formações, até que em 1977, consolidou-se com seu line-up clássico: Mário, Sérgio Villarim (teclados), Delto Simas (baixo), Mr Paul (percussão), Marcus Moura (flautas e acordeão) e Marco Veríssimo (bateria). Assim, participaram do programa Rock Concert, na TV Globo, onde conseguiram o apoio para gravar uma demo. Porém, o grupo não conseguiu apoio de nenhuma gravadora, já que o progressivo tradicional da turma estava fora da moda. Durante esse período, o grupo passou a contar com Jane Duboc, nos vocais. 

O grupo, assinando contrato com a Som Arte
Mesmo sem apoio, Mário e companhia continuaram insistindo no som progressivo, até que em março de 1981 a rádio Fluminense FM sofreu uma total renovação em sua forma de transmissão, que inicialmente era voltada principalmente para corridas de cavalos. A partir de primeiro de março daquele ano, a "Maldita" acabou se tornando uma das rádios preferidas dos jovens cariocas, principalmente pelo fato de se preocupar com o lançamento de novos grupos.

Um desses novos grupos foi o Bacamarte. Sentindo que havia uma luz no fim do túnel, Mário levou sua fita demo para Luís Antonio Melo, que trabalhava arduamente na reformulação da rádio. Segundo o próprio Melo, Mário chegou com a fita no dia primeiro de maio, dois meses depois da rádio ter reinaugurado, explicando o som do grupo e também o objetivo que ele queria. 


A conversa não durou mais que quinze minutos, e Mário foi embora por volta das 14 horas. Porém, Melo colocou a fita pra rodar e ficou curtindo o som até as 17 horas. Estava dado então o pontapé inicial para o lançamento de uma obra-prima. Vale a pena ressaltar que a "Maldita" também foi responsável pelo lançamento de bandas como Barão Vermelho, Kid Abelha e os Abóboras Selvagens, Paralamas do Sucesso, Dorsal Atlântica e muitas outras.


Bacamarte, em apresentação no Circo Voador


Tocando direto na rádio, o Bacamarte ressurgiu das cinzas e um contrato com a gravadora Som Arte Produções foi assinado, gerando o maravilhoso álbum Depois do Fim, lançado em 1983, mas com as canções gravadas em 1977. Inovador para a época, o álbum trazia uma sonoridade totalmente diferente do início dos anos setenta, onde o talento individual de cada instrumentista, bem como o belíssimo trabalho vocal de Jane, fizeram com que a banda fosse comparada ao Curved Air e ao Renaissance, dois ícones do progressivo britânico.
 

O trabalho instrumental é praticamente perfeito. "UFO", "Miragem", "Controvérsia" e "Caño" exalam virtuosismo, técnica e harmonia com arranjos arrepiantes e passagens muito ricas em melodias, enquanto "Pássaro de Luz", "Depois do Fim" e "Smog Alado", além do lado instrumental, também exaltam a essência lírica de Jane Duboc.

Mas é em "Último Entardecer" que a casa (e as lágrimas) vêm abaixo. A canção começa com o lindo tema do piano e Mário solando utilizando variações no volume. O Bacamarte surge, e Mário passa a solar notas em sequência, levado pelo violão e pelo tema inicial do piano, emocionante e ao mesmo tempo encantador, com Mário despejando notas velozes em escalas simples. O piano faz uma pequena sequência de acordes, e Jane solta a voz carregada de sotaque "carioquês", acompanhada pelos sintetizadores, enquanto o ritmo do tema inicial é retomado. 

Mário então volta com seu solo, primeiro explorando bends muito agudos, e, depois de uma sequência de acordes de sintetizadores, destruir sua guitarra em rápidas notas que destacam-se sobre o veloz acompanhamento de baixo, bateria e piano. As escalas de Mário, junto das sessões marcadas entre piano, bateria e baixo, levam a um curto solo de piano. 

A canção volta a ficar cadenciada, com Jane trazendo novamente a letra, em um rtimo ainda marcado, com Mário solando ao fundo. O piano sola sozinho, abrindo espaço para Mário executar um difícil e lindo trêmolo ao violão. Então, o clima da canção fica pesado, com uma forte marcação de baixo e bateria intermediada pelo veloz dedilhado do violão, e então, o piano, baixo e bateria puxam um ritmo típico das grandes canções do Renaissance, para Jane retomar a letra acompanhada por uma flauta e pelo resto do grupo, encerrando essa maravilha com o mesmo tema da introdução sendo repetido pelo piano, guitarra, baixo e bateria.


Versão original do LP, com o famoso mini-encarte

Depois do Fim
 contava ainda com uma bela capa elaborada por Eduardo Pereira e com um mini-encarte que trazia a foto da banda em um show no 
Circo Voador. Aliás, esse show tornou-se famoso principalmente por ter sido um dos primeiros da banda após o ingresso na programação da Fluminense. Ali, estavam presente Mário, Marcus, Sérgio, Simas (no violoncelo), Mr Paul, William Murray (baixo) e Mário Leme (bateria). Os vocais ficaram a cargo de Cecília Spyer, a qual substituiu Jane, que havia partido para uma bem sucedida carreira solo.


O disco vendeu muito, principalmente no Japão, alcançando sucesso também em países como Rússia, Alemanha e Itália. O site especializado Prog Archives elegeu Depois do Fim como o décimo sétimo melhor álbum progressivo de todos os tempos em 2009, à frente de obras como Pawn Hearts (Van Der Graaf Generator), Nursery Crime (Genesis), Fragile (Yes) e Aqualung (Jethro Tull), isso só para citar alguns. Mas, mesmo tendo alcançado o tão desejado sucesso, a banda acabou se dissolvendo aos poucos, terminando em meados de 1984.

Após o Bacamarte, cada integrante partiu para um projeto diferente. Jane se revelou ao mundo em obras como 
Ponto de Partida (1985) e Brasiliano (1992). Sérgio Villarim seguiu trabalhando em diversos projetos, consolidando-se no Hervah (antiga Herva Doce) ao lado de Roberto Lly (baixo), Marcelo Susseking (guitarras), Fred Maciel (bateria) e Márvio Fernandez (voz). 

Marcus formou-se em Biologia e também trabalha como webdesigner. Com o fim do grupo, iniciou carreira solo apresentando-se em shows e compondo música para teatro, vídeo, dança, instalações de arte e web. Além disso, é fundador do website Nova Música, o qual projetou inúmeros artistas independentes através da internet. Também participou de grupo Roque Malasartes, tocando teclados, flautas e acordeão, e desenvolveu o trabalho Maracatrance, com participação do percussionista Reppolho. Mr Paul trabalhou na bateria da escola de samba Salgueiro, vindo a falecer há poucos anos. 

O belo álbum solo de Mário Neto
Em 1999, Mário Neto retornou ao mundo da música, lançando, com o nome de Bacamarte, o álbum Sete Cidades, onde toca praticamente todos os instrumentos, com excessão dos teclados, que são tocados por Robério Molinari. O disco traz ótimas canções, como "Mirante das Estrelas", "Espírito da Terra" e "Portais", e acabou fazendo um relativo sucesso. 

Porém, mesmo com o retorno do nome Bacamarte ao público, Mário se retirou da música novamente, voltando para a obscuridade que o acompanhou desde o início dos anos setenta, até o lançamento de um dos mais incríveis álbuns progressivos da história, tendo seu ápice no maravilhoso hino "Último Entardecer".

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Edson REDSON Pozzi - 1962 / 2011


Desde que me conheço como gente, passados meus oito, nove anos, existe uma tradição na minha família. Sempre no Natal, eu e meu irmão Micael Machado, fazemos uma homenagem à nossa paixão pela música, entoando uma das melhores canções de Natal já compostas na história da música: "É Natal!!?", um pesado punk rock composto pelo grupo paulista Cólera no ano de 1987. Aquela letra, descendo a lenha nas festividades natalinas, era o desafogo meu e do Micael para todas as orgias gastronômicas que nossa mãe fazia (e ainda faz) durante o período de fim de ano, e simbolizava também nossa paixão pelo rock acima de tudo.

Pois no fim da noite de ontem, 27 de setembro de 2011, o mundo perdeu o gênio compositor de "É Natal!!?". Seu nome: Edson Lopes Pozzi; sua função no Cólera: guitarra e vocais; e seu apelido que o consagrou no país e no mundo: REDSON.
Cólera em 2009

Infelizmente, o líder e fundador do Cólera, um dos principais grupos do punk rock nacional, faleceu vítima de uma parada cardiorespiratória, conforme informou o colega de banda, o baixista Val Pinheiro, na comunidade oficial do grupo no orkut e também no facebook oficial do Cólera.

Surgido em 1979, o Cólera iniciou como um quarteto, tendo em sua formação além de Redson, seu irmão Carlos "Pierre" Pozzi (bateria), Kinno (vocais) e Hélinho (guitarra), servindo como uma espécie de afluente do grupo Condutores de Cadáver, liderado por Hélinho. Em 1981, Hélinho e Kinno saíram do Cólera, que adotou a formação trio com a entrada de Valdemir "Val" Pinheiro, que virou o novo baixista, levando Redson para as guitarras e criando a formação clássica da banda. A partir de então, o Cólera passou a divulgar suas mensagens antimilitarismo, pacifista e com postura ecológica, uma raridade para a época.
Compilação Grito Suburbano, a estreia vinílica do do Cólera
A estreia do grupo foi na compilação Grito Suburbano (1982), ao lado de outros importantes nomes do punk nacional: Inocentes e Olho Seco. Ainda  em 1982, participam das compilações Punk Is ... e Hardcore or What?, lançadas pelo selo XCentric Noise Records somente em k7, a nível internacional, cobiçadas por colecionadores de punk rock no mundo inteiro.

Depois, em 1983, Redson criou o selo Estúdios Vermelhos, lançando  diversas compilações e demos tanto nacional como internacionalmente, fazendo crescer o seu nome e o nome do seu grupo mundo afora. Em 1985, o Estúdios Vermelhos é rebatizado para Ataque Frontal, culminando com a estreia oficial do Cólera em vinil, Tente Mudar o Amanhã. Depois de mais duas produções (um slipt-LP trazendo uma apresentação da banda no Lira Paulistana ao lado dos Ratos de Porão, e a compilação Ataque Sonoro), em 1986 o Cólera lançou o revolucionário Pela Paz em Todo Mundo (1986), o qual foi um marco de vendas, tornando-se recordista e um exemplo para as produções independentes, com um total de quase 100 mil cópias vendidas. Pela Paz em Todo Mundo, e suas letras carregadas de protesto, conquistaram uma enorme legião de fãs, que passaram a seguir o Cólera como formigas atrás de doce.

Os saltos com a guitarra que marcaram a carreira de Redson

Cada vez mais o nome de Redson e companhia tornava-se reconhecido não só no Brasil, mas também no mundo, com o grupo participando de mais uma compilação internacional, Empty Skulls, vol. 2(1986), além do EP Dê o Fora, do mesmo ano. Os shows do grupo apresentavam performances explosivas e contagiantes, com Redson exibindo saltos com a guitarra a la Pete Townshed (The Who), tornando marcada registrada de sua carreira. 


A caixa Cólera 20 Anos Ao Vivo
Em 1987 o grupo chegou ao auge da carreira, lançando o EP É Natal!!?, cuja faixa-título tornou-se o maior clássico da carreira da banda, e sendo a mesma a canção citada no início da matéria. Na sequência,  European Tour '87 (1989) e também um vídeo chamado 20 Minutos de Cólera registraram a passagem do grupo pela europa. Depois, veio o belíssimo Verde, Não Devaste, de 1989, que abriu para o mundo assuntos sobre a ecologia. Em 1991, Mundo Mecânico, Mundo Eletrônico chamava a atenção para os problemas que o mundo passava com a tecnologia, e durante os anos 90, o grupo realizou quatro turnês pelo país, destacando a turnê de 20 anos, que foi registrado em um CD ao vivo contando com 29 canções, um livro ilustrado e um pôster, chamado 20 Anos Ao Vivo. Além disso, o álbum Caos Mental Geral (1998) consolidava o som do grupo como o mais importante do punk rock nacional.


Pierre, Redson e Val
Em 2004, a banda realizou outra turnê pela europa, fazendo 26 shows em sete países, em apenas um mês, seguido dos álbuns Deixe a Terra em Paz! e The Best of Grito Suburbano, esse lançado contando com um LP verde e um compacto. Seguiram-se mais duas turnês nacionais e o álbum Primeiros Sintomas (2006), resgatando as 20 primeiras canções compostas pelo Cólera no início de carreira, em outubro de 1979 e abril de 1980, sendo 13 delas inéditas. Esse foi o lançamento que marcou os 25 anos do grupo, com mais shows pelo país e pela europa, onde em 2008 o grupo passou por França, Bélgica, Alemanha, República Tcheca, Áustria e Finlândia. Em 2009, uma imensa turnê, batizada de 30 anos Sem Parar, e comemorando os 30 anos do grupo passou pelo país, sendo o último grande fato na carreira do Cólera, deixando os fãs no aguardo de novo material.


Mas, na manhã de ontem, por volta das 02:30 hs da madrugada, Redson passou mal, sendo socorrido por um amigo chamado Marcio, o qual chamou o SAMU e que conduziu o guitarrista para o hospital João XXIII, no bairro da Moóca, localizado próximo a casa de Redson. Lá Redson foi atendido e medicado, mas, as 22:00hs, um telefonema do hospital foi recebido pelos familiares de Redson, dando a triste notícia de seu falecimento. O velório de Redson será hoje, à partir da 22hs, no Cemitério da Vila Alpina, em São Paulo, e o seu sepultamento amanhã à 10hs da manhã. Muita força aos familiares, amigos e colegas de Redson.
Redson, em 1985
Hoje completam-se 20 anos da morte de Miles Davis. Ontem, fez vinte cinco anos que um acidente de ônibus levou Cliff Burton. No último dia 18 de setembro, completaram-se 41 anos da morte Jimi Hendrix, e  há três dias,  em 25 de setembro, completaram-se 31 anos da morte do baterista John Bonham.. O mundo da música agora irá lamentar mais uma grande perda no mês de setembro: a morte do Revolucionário Homem Vermelho, o grande Redson Pozzi. Como um fã escreveu no perfil do músico, graças a Redson os roqueiros passaram a dar valor a natureza, lutar contra o racismo e violência, praguejar os rodeios e touradas, debater a desiguldade social e lutar pelos direitos dos seres humanos, tudo o que Redson pregava através de sua música.


O mundo da música, e principalmente o punk rock está de luto. Para mim, as noites de Natal não serão mais a mesma. Ao lado do Micael, os cânticos de "É Natal!!?" não apenas irão expressar nosso sentimento com a data, mas também, lembrar de um dos mais humildes, profissionais e talentosos músicos do rock mundial.

Descanse em paz, pela paz em todo mundo. Forte e Grande é Você Redson!!!

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Chico Buarque - Construção [1971]


Um dos maiores compositores do Brasil lançou uma obra-prima já no seu quinto álbum. O ano era 1971, e ali, Chico Buarque de Hollanda saía de uma conturbada briga com a censura ditatorial, que havia banido das lojas a bolachinha "Apesar de Você", um singelo samba de esperança, a qual foi rotulada como "perigosa" pela ditadura, que varreu os compactos depois de uma expressiva vendagem de mais de 100 mil cópias. De certa forma, em "Apesar de Você" Chico mostrava sua habilidade para gravar canções com forte teor político em um período conturbado do Brasil.


O contato com a censura mudou o pensamento de cômpor de Chico, saindo da bossa-nova e dos sambas tradicionais para versos ousados e até mesmo instigantes, utilizando-se de orquestrações e improvisos sonoros que começaram a serem apresentados ao público no álbum Construção (1971). E é justamente a faixa-título que tem o principal destaque em um espetacular álbum desde seu início até o fim.


A canção narra a história de um operário da construção civil brasileira sendo vista por alguém que conta cada passo do operário de forma quase que agonizante, tentando buscar uma solução para o que ele sabe que vai ocorrer com o pobre operário, e que pode ser interpretada como um brasileiro vendo que o país literalmente está afundando, começando apenas com o violão, trazendo a voz de Chico e o acompanhamento feito pelo tamborim, baixo e percussão. Enquanto vai narrando a história do trabalhador brasileiro, vão surgindo instrumentos, como o agogô, violino, até o personagem "morrer na contra-mão atrapalhando o tráfego".

A partir de então, surgem metais e cordas, que dão um tom ainda mais dramático para a repetição da história, que agora de forma totalmente genial vai reformulando a letra inicial com as mesmas palavras, de uma forma incrivelmente perfeita e lúcida.

Os metais e cordas ganham peso junto com a percussão e as vozes do grupo MPB-4, que auxiliam na dramaticidade da canção. Cuícas, agogô, treme-terra e cowbell se fazem presentes, e Chico desconstrói a história novamente, levando ao arrepiante encerramento, onde as intervenções dos metais e das cordas são fantásticas, encerrando a canção de maneira emocionante e com o tom de protesto e raiva pela morte do operário.

Chico Buarque

Além do maravilhoso arranjo e do espetacular andamento sonoro de "Construção", a sua letra é uma das mais geniais e incríveis que Chico já fez. Dentro da história construída, recebemos as informações de um legítimo trabalhador brasileiro, que deixa mulher e filhos para fazer o seu papel de máquina de um sistema capitalista, onde a luta pelo lucro e pela eficiência vem à frente da estabilidade e da compreensão de que o trabalhador é um ser humano.

Frases como "Beijou sua mulher como se fosse a última", "Subiu a construção como se fosse máquina", "Ergueu no patamar quatro paredes sólidas", "Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe" somam-se a descontrução das mesmas em "Beijou sua mulher como se fosse a única", "Subiu a construção como se fosse sólido", "Ergueu no patamar quatro paredes flácidas", "Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo", expressando a dura realidade do operário que prestava serviço para esse tipo de emprego, seguindo cada passo de forma metódica e precisa, sem perder tempo e com a finalidade de alcançar o objetivo rapidamente.

O mais impressionante é justamente o jogo das palavras, sempre terminando em uma proparoxítona e que em nenhum momento altera o sentido geral da canção. Para encerrar as estrofes, ficam as frases mais fortes e raivosas, que é quando o personagem morre, e mesmo tendo sido um trabalhador árduo levantando paredes e abandonando a família para fazer seu serviço, é tratado de forma indiferente pelas demais pessoas, como apenas mais um medíocre trabalhador que "se acabou no chão feito um pacote flácido", "morreu na contra-mão atrapalhando o tráfego", ou ainda "se acabou no chão feito um pacote tímido" e "morreu na contra-mão atrapalhando o público e finalmente "se acabou no chão como um pacote bêbado" e "morreu na contra-mão atrapalhando o sábado".

Precisa-se ressaltar que a morte de operários na construção civil era uma constante no Brasil do final dos anos 60 e início dos anos 70, principalmente pelas péssimas condições de trabalho e pelo rápido crescimento das grandes cidades brasileiras.

Chico em 1971
A canção encerra com as frases fortes de outro petardo de Chico na ditadura, "Deus lhe Pague", com as raivosas palavras "por esse pão pra comer por esse chão pra dormir ...".

A obra de Chico foi durante toda a década de 70 marcada pela perseguição da censura contra ele. Como afirmou em uma entrevista em 1996, Chico retratava nas letras a revolta que sentia pela opressão causada pela ditadura, e por várias vezes precisou dar depoimentos para explicar o que estava escrevendo.

Chico com a camisa do colorado mais amado do Brasil
O LP Construção foi eleito em uma lista da Rolling Stone brasileira como o terceiro melhor disco brasileiro de todos os tempos, e também está presente no livro 1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer. Além da faixa-título, trás outros grandes clássicos como a anti-exílio "Samba de Orly", o medo da esposa de um homem contra a ditadura em "Cotidiano" e a própria "Deus lhe Pague", talvez a música de protesto mais forte que já tenha passado nos sulcos vinílicos brasileiros.

Mas "Construção" é a obra que merece ser ouvida, re-ouvida e discutida por todos os admiradores de música e literatura, principalmente pela sua poesia e pela construção da letra em si. Sem sombra de dúvida, uma das canções essenciais da música brasileira.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Maravilhas do Mundo Prog: Som Nosso de Cada Dia - Sinal da Paranóia [1974]



Um dos grandes diamantes do rock nacional no final da década de 70 abalou as estruturas do rock progressivo e, pouco depois, abalou as pernas dos brasileiros com canções de extremo bom gosto musical baseadas no funk Motowniano, mas perdendo a credibilidade progressiva que acabou consolidando seu nome com o passar dos anos, e fazendo do mesmo talvez o mais cultuado grupo de rock progressivo do nosso país. Estou falando do Som Nosso de Cada Dia.

No final da década de 60, um jovem chamado Pedro Baldanza chegava à cidade de São Paulo carregando em sua mala um baixo Fender Jazz. O jovem Pedro adotou o nome de Pedrão, montando a banda Enigma, que por incrível que pareça foi a pedra fundamental para o surgimento de outro grande nome do rock nacional, o Novos Baianos. 

Manito, Marcinha, Pedrão e Pedrinho Batera

O Enigma no início era formado pelo trio Pedrão (baixo e vocais), Jean (guitarras) e Odair (bateria). A banda passou a frequentar diversos bares e cidades do interior paulista, até que em um determinado dia, na cidade de Ubatuba, conheceram três desconhecidos cantores: Paulinho (Boca de Cantor), Moraes Moreira e Baby Consuelo. Os três passaram a integrar o Enigma, que passou a se apresentar com mais frequência, principalmente em festivais. Foi em um dos festivais que o Enigma teve contato com o grupo Minus. No Minus, estava o talentoso guitarrista Pepeu Gomes, que foi adicionado ao Enigma em  seguida. Com o protótipo do Novos Baianos praticamente pronto, lançam o compacto duplo "Psiu", "29 Beijos" / "Globo da Morte" e "Mini Planeta Íris", o qual é cobiçadíssimo por qualquer colecionador que se preze.

A banda assumiu o nome de Novos Baianos, seguindo uma bela carreira  que teve sua Discografia Comentada aqui no Consultoria do Rock recentemente. Porém, somente Baby, Paulinho, Pepeu e Moraes foram para o Rio. Jean e Odair largaram fora quando a doidera começou a aparecer ainda em São Paulo, e Pedrão, com diversos problemas familiares, acabou decidindo por ficar na terra da garoa mesmo, morando com a sua mãe. 

Perfume Azul do Sol (Pedrão é o primeiro da direita para a esquerda)

Mas a senhora acabou conseguindo uma grana considerável pela indenização da morte do pai de Pedrão, pegou mala e cuia e viajou para o Rio Grande do Sul, deixando Pedrão morando sozinho na casa de parentes em São Paulo, afundado em dívidas e sabendo que tinha perdido uma grande chance de se tornar famoso ao lado do Novos Baianos.

Graças ao amigo Edson Ribeiro, Pedrão conheceu o artista plástico Agamenon e também o cantor Walter Franco. A partir de Agamenon, Pedrão conhece o guitarrista Benvindo, que estava montando a banda Perfume Azul do Sol, onde Pedrão rapidinho virou o baixista, gravando o espetacular Nascimento (1974).

O Perfume Azul do Sol não pegou, e Pedrão resolveu ir para o exterior. Porém, um convite inusitado surgiu através da esposa de um amigo, a qual apresenta para ele o multi-instrumentista Manito, que estava procurando integrantes para montar uma banda após sua saída do grupo Os Incríveis.

Manito no Os Incríveis (segundo da esquerda para a direita)

Na verdade a ideia de Manito era montar uma banda para tocar em bailes, e para tal projeto já havia conseguido o baterista Pedrinho Batera. Quando Pedrão chegou, trazendo consigo um violão e nada mais, começou a ser formado o embrião do Bloco Cabala, o qual era o nome do projeto de Manito. Pedrão mostrou algumas de suas ideias para Manito e Pedrinho. Em poucos dias, o projeto Cabala caía por terra, e em 1971, surgia o Som Nosso de Cada Dia.

Após esses primeiros encontros, Manito teve uma breve passagem pelo Mutantes, substituindo nada mais nada menos que Arnaldo Baptista. Além disso, a falta de equipamento do Som Nosso de Cada Dia, limitando-se  apenas a aparelhagem de Manito, uma bateria, um violão e o baixo de Pedrão, atrasaram ainda mais o desenvolvimento das composições do trio. Mesmo assim, conseguem uma aparelhagem decente, e logo, um contrato com a gravadora Continental. Com dinheiro, aparelhos e muita criatividade, o grupo entrou nos estúdios para gravar seu primeiro álbum, o fabuloso Snegs. Porém, o disco ficou engavetado por quase um ano, mas mesmo assim o Som Nosso  de Cada Dia seguiu seus caminhos.

Mutantes: Sergio Dias, Manito, Liminha e Dinho Leme

Em abril de 1974, Alice Cooper se apresenta pela primeira vez no Brasil, e como banda de abertura, seleciona o Som Nosso de Cada Dia. A banda então abriu os shows de Titia Alice, tocando para mais de 100 mil pessoas em duas noites na cidade de São Paulo. No Rio, o grupo tocou no Maracanãzinho lotado, levando a plateia a gritar o nome da banda durante o show de Tia Alice. Com o sucesso das apresentações, finalmente é desengavetado o primeiro LP do conjunto.

Regravado em apenas dois dias, ou seja, praticamente ao vivo, Snegs contou com poucos overdubs, como violões, solos de Manito tocando violino e sax e mais os vocais da banda, que contavam ainda com a esposa de Pedrão, Marcinha.

Manito, Pedrinho Batera e Pedrão

Logo na abertura, uma maravilha que pára o tempo. "Sinal da Paranóia" é algo que choca ao mesmo tempo que cativa, tamanha a dose carregada nos sintetizadores e nas linhas vocais da canção. A levada forte de Pedrinho Batera, com o som tradicional das baterias brasileiras dos anos 70, é envolvida suavemente pelos teclados de Manito, enquanto Pedrão marca o ritmo em seu baixo. 

Então a belíssima letra, composta por Capitão Fuguete, começa a ser entoada por Pedrão, acompanhado pelo dedilhado de um violão e pelo órgão de Manito. Pedrinho dá ritmo ao violão e ao órgão, acompanhando os vocais de Pedrão. Escalas no órgão e a forte marcação do baixo apresenta as vocalizações cantando uma das principais frases do rock nacional: "A Procura da essência", chegando no refrão, onde o nome da canção é gritado insanamente.

Após o refrão, uma viagem bem no estilo ELP surge, com Manito mostrando toda sua evolução após a saída dos Incríveis, tanto no moog, quanto no excepcional solo de violino que lembra muito o King Crimson na fase Lark's Tongues in Aspic (1973), onde Pedrinho e Pedrão fazem a doideira percussiva para Manito mandar ver no arco e em acordes de sintetizadores. 

Após o solo de violino e a intrincada quebradeira da cozinha Pedrão e Pedrinho, voltamos ao refrão, encerrando essa maravilha com uma pequena sessão instrumental repleta de vocalizações insanas, além do baixo de Pedrão estourando os alto-falantes entre o ritmo de Pedrinho e os teclados de Manito.
Pedrão, Manito e Pedrinho Batera

Outras grandes pérolas estão escondidas em Snegs, como "O Som Nosso de Cada Dia", "Snegs de Biufrais", "Massavilha" e a líndissima "Direccion de Aquarius", mostrando que o Som Nosso de Cada Dia era um potencial rival para o que o Mutantes fazia na mesma época.

A banda passou a ser mais cultuada do que já era, tornando-se atração principal em festivais como o de Águas Claras, Rock da Garoa e O Maior Show de Todos os Tempos, intermediadas por algumas mudanças, onde a principal foi a saída de Manito, levando a alterações até mesmo na composição do grupo, que virou um quinteto, batizado agora apenas de Som Nosso. 

Som Nosso, um passeio pelas festas entre sábado e domingo


Com a formação do Som Nosso contando com Pedrão, Pedrinho, Dino Vicente (teclados), Paulinho (teclados) e Rangel (percussão), o resultado foi o álbum Som Nosso, lançado em 1977, e que trazia também a participação de Egídio Conde (guitarra), Tuca Camargo (teclados), Marcinha, Armando e Tony Osanah (vocais). Totalmente diferente de SnegsSom Nosso já mostra suas diferenças direto na capa, apenas com as letras "Som Nosso" escritas em branco sobre um fundo preto. 

O disco traz onze faixas (quatro a mais que "Snegs") que, sem os teclados de Manito, perderam o brilho e a veia progressiva, mas ganharam, e muito, no swing e no embalo. Divido em dois lados, o Sábado, com sons perfeitos para uma balada de sábado, e o Domingo, com sons mais relaxantes pra curar a ressaca, o álbum se caracteriza por mesclar músicas bem funkeadas com as composições que fariam parte do outro lado do álbum Amazônia, o qual nunca foi lançado oficialmente. O resultado foi decepcionante para os fãs de Snegs, mas, para aquele com a mente mais aberta, agradou, e muito (principalmente pela época em que foi lançado). 


Os anos se passaram, até que em 1993 uma reunião do trio original aconteceu para a gravação da faixa "O Guarani", que entrou como bônus na versão em CD de Snegs. Mesmo ficando anos sem tocar juntos, Manito, Pedrão e Pedrinho mostraram talento em uma belíssima composição.

Live '94, decepção para os fãso do Som Nosso

Em 1994, o grupo se reuniu para dois shows que resultaram no CD Live 94, mas que infelizmente não tem o mesmo brilho dos álbuns anteriores, mesmo contando com músicas inéditas, como "Tinta Preta Fosca" e "O Amor".  Nesse álbum participam Pedrão (baixo e voz), Pedrinho (bateria), Manito (flauta e sax), Jean Trad (guitarra) e Homero Lotito (teclados). Pouco tempo depois desses shows, Pedrinho faleceu, deixando órfãos milhares de bateristas no Brasil e no mundo.
O excelente À Procura da Essência


Em 2004, À Procura da Essência chegou as lojas. Gravado ao vivo nos anos de 1975-1976, o disco traz versões estendidas e viajantes para diversos sons do álbum Snegs, bem como partes da ópera "Amazônia", gravada em 1975, mostrando toda a força da nova formação de quando o Som Nosso de Cada Dia era um quinteto capaz de fazer maravilhas tão grandiosas quanto qualquer grupo britânico.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Elis Regina: Elis [1972]




O ano é 1972. Na Inglaterra, o Led Zeppelin estava no auge do sucesso, um ano após o lançamento de IV, destacando "Stairway to Heaven". Os Rolling Stones lançavam aquele que é considerado seu principal álbum, Exile on Main St., Ziggy Stardust cometia suicídio em pleno palco, deixando o nome de David Bowie gravado para sempre entre os maiores ídolos do rock na história, e o Deep Purple conquistava seu espaço com o espetacular Machine Head. Nos Estados Unidos, Bob Dylan começava a voltar à cena, compondo o material que se transformou no fantástico Pat Garret & Billy the Kid, lançado um ano depois, enquanto Elvis Presley gravou um dos melhores ao vivo da história, Elvis as Recorded at Madison Square Garden, com uma performance impecável. Ao mesmo tempo, o progressivo era fonte de inspiração ao redor do mundo, graças a LPs como Close to the Edge (Yes), Obscured by Clouds (Pink Floyd), Three Friends (Gentle Giant) e Trilogy (Emerson, Lake & Palmer), isso só par citar alguns.

No Brasil, o Mutantes perdia Rita Lee, e o Rei Roberto Carlos começava uma nova fase na carreira, voltada ao romantismo que o consagrou posteriormente como o maior vendedor de discos do país. Ao mesmo tempo, uma gaúcha de nome Elis Regina Carvalho Costa dava passos gigantescos para fugir de um passado cheio de glórias, e ao mesmo tempo, recheado por tristezas.

A pimentinha Elis Regina nasceu no dia 17 de março de 1945, em Porto Alegre, onde viveu sua infância na Vila IAPI, zona norte da cidade. Com um talento incomum, iniciou-se na carreira musical ainda muito jovem, e com quinze anos, foi contratada como intérprete por uma famosa rádio local, a rádio Gaúcha (hoje, pertence à Rede Globo), com quem gravou seu primeiro LP, Viva a Brotolândia, em 1961, apresentando canções voltadas para crianças.

Ainda no Rio Grande do Sul, lançou mais três álbuns, chamando a atenção de alguns empresários, que incentivaram a menina Elis a sair de Porto Alegre, e tentar a vida no Rio de Janeiro. Mesmo com muito receio, a jovem gaúcha pegou mala e cuia, e em 1964, mudou-se para a Cidade Maravilhosa, onde conseguiu um contrato com a TV Rio para participar do programa Noites de Gala, conquistando o coração da dupla Luis Carlos Miéle e principalmente, Ronaldo Bôscoli.

Passa a cantar no Beco das Garrafas, ao mesmo tempo que revela-se nos festivais da canção graças a interpretações empolgantes e totalmente avassaladoras. Sua apresentação de "Arrastão" no I Festival Nacional de Música Popular Brasileira da TV Excelsior, em 1965, é tida ainda hoje como uma das mais arrepiantes performances vocais de um artista em cima do palco, e que rendeu para Elis, com apenas 20 anos, o prêmio de melhor intérprete daquele festival.

O casamento com Bôscoli
Ao mesmo tempo que explodia no Brasil, ao lado do Zimbo Trio no espetáculo O Fino da Bossa, ou ao lado de Jair Rodrigues no agora programa Fino da Bossa, de onde saiu a trilogia 2 na Bossa, sendo que o primeiro LP dessa série foi o primeiro LP do Brasil a atingir a marca de um milhão de cópias vendidas (isso em 1966), Elis sofria com o forte comando de Bôscoli, que a tratava de maneiras não muito apropriadas, exigindo sempre mais e mais de uma garota que estava se adaptando ao novo mundo. Foi então que o Brasil inteiro se surpreendeu: Elis e Bôscoli resolveram casar. Ninguém acreditou. A relação dos dois era pior que cão e gato, e, praticamente da noite para o dia, formaram um casal.

Mesmo casados, Elis e Bôscoli continuaram seus atritos e brigas. Elis começou a se desiludir com o mundo da bossa nova, samba e canções da jovem guarda. Como uma estrela, viajou para a europa, onde se apresentou em Paris para uma plateia estupefata, bem como outras cidades do Velho Continente, passando por Inglaterra, Holanda, Suíça, Suécia e Bélgica.

Na volta ao Brasil, a crise com Bôscoli piorou. Mesmo o marido não sendo seu empresário, as exigências e dificuldades pessoais esgotaram o relacionamento. Segundo Bôscoli: "Eu matei nosso casamento quando não aceitei ser o empresário dela. Pra mim seria facílimo: ficaria em casa telefonando, agendando, acertando contratos. Mas eu não quis ser explorador, e disso se aproveitaram para nos deturpar, para nos agredir, para jogar um contra o outro. Os desentendimentos normais entre casais, no nosso caso eram multiplicados por mil, viravam verdadeiras guerras".

O novo visual de Elis

Por outro lado, Bôscoli também não contribuia financeiramente, ao ponto de Elis ter que cantar grávida de nove meses no Canecão, para conseguir dinheiro para o enxoval do bebê, de nome João Marcelo. O nascimento de João Marcelo foi fundamental para Elis mudar sua vida. O menino era alérgico a leite em pó, e a cantora muito cedo já não tinha mais leite em seus seios. Com o filho chorando de fome, Elis desencadeou uma campanha, através do Jornal Nacional, pedindo ajuda para amamentar seu filho. Assim, durante dois meses, Elis ia para a favela, onde conseguia leite com três senhoras que aceitaram ajudar. Aquele momento marcou a vida da gaúcha, e é o ponto onde uma nova Elis Regina chega ao mundo.

Isso acabou sendo refletido na música de Elis logo no primeiro lançamento da década de 70. Com um novo visual, de cabelos curtos, lança Em Pleno Verão (1970), que foge bastante dos sambas e bossa-novas de seus discos anteriores, mostrando ao Brasil canções de novos artistas, como Jorge Ben Jor, Tim Maia e Nonato Buzar, além de resgatar Caetano Veloso e Gilberto Gil, os quais estavam exilados em Londres, e destacando um dos grandes sucessos da carreira de Elis, "Madalena". O som mais calmo, meio tropicália, meio rock'n'roll, caiu como uma luva para a voz de Elis, que passou a aprender técnicas vocais para o novo estilo.

Sem condições emocionais, o casamento de Elis com Bôscoli ruiu, e em junho de 1972, ambos estavam separados. Três meses antes, Elis estreiou o espetáculo É Elis, com direção de Miéle e Bôscoli. Dentre os membros da banda que acompanhava Elis Regina, o pianista e arranjador César Camargo Mariano era o principal integrante.

César era considerado o menino prodígio do jazz brasileiro. Nascido no dia 19 de setembro de 1943, com apenas 15 anos, já se apresentava em festivais e também em rádio. Seu dom no piano era algo inimaginável para um adolescente de sua idade, e isso foi sendo desenvolvido mais e mais com o passar dos anos. Com 21 anos, César fez sucesso no Brasil inteiro como integrante do fantástico Sambalanço, ao lado de Airto Moreira e Humberto Claiber.

A parceira entre Elis e César foi, como Elis mesmo dizia, algo cósmico. A união, o talento, e principalmente, a paixão pela música da dupla, fez com que projetassem um novo espetáculo. Sem Bôscoli, Elis via-se livre para expandir seus dotes vocais, agora mergulhando no jazz e no rock, bem como adotando uma postura de palco mais simples, sem os braços esvoaçantes que caracterizaram o início de sua carreira, voltada justamente para uma interpretação mais fidedigna da canção, enquanto que César via em Elis a poderosa fonte vocal para complementar seu talento no piano.

Elis e César, uma união cósmica


A dupla estreiou com um espetáculo exatamente em outubro de 1972, o ano citado no início da matéria, e a partir dali, a vida de Elis Regina Carvalho Costa seria outra. A nova fase, acompanhada de músicos extremamente talentosos, (o próprio César Camargo Mariano no piano, Luizão Maia no contrabaixo, Luís Cláudio na guitarra e Paulinho Braga na bateria) e com uma disposição incrível vinda dos garotos do clube da esquina Lô Borges e principalmente Milton Nascimento, acabaram gerando um dos principais discos da música popular brasileira, lançado ainda em 1972 com o singelo nome de Elis.

O LP abre com "20 Anos Blue", de Sueli Costa e Vitor Martins, com os acordes suaves da guitarra trazendo baixo e piano, fazendo o tema inicial. Elis surge, cantando um blues assustadoramente encantador, com acordes leves da guitarra, que faz intervenções manhosas junto ao piano de César.  A bateria surge, usando apenas brushes para acompanhar as escalas de piano, baixo e guitarra, que vão levando a voz triste de Elis, dizendo "eu tenho mais de 20 anos ... eu tenho mais de 20 muros", encerrando o bluezão com vocalizações e piano fazendo um pequeno duelo, e Elis repetindo o início da letra, para um arranjo de cordas fazer as notas finais.

"Bala Com Bala", de João Bosco e Aldir Blanc, surge com o piano elétrico puxando a voz de Elis nessa complicada letra de uma canção mezzo samba, mezzo nordestina, com destaque para o acompanhamento dançante do piano  elétrico e da percussão, e claro, a performance perfeita de Elis. 

Depois, é a vez de uma das canções que mais gosto na carreira de Milton Nascimento, "Nada Será Como Antes". Composta em co-autoria com Ronaldo Bastos, aqui ela recebe um tratamento vamos dizer assim, prog. Piano elétrico e baixo fazem o tema inicial, trazendo o violão e a percussão em um ritmo avassalador, com Elis cantando essa bela letra sobre o ritmo da canção, que cresce com a entrada da bateria, que faz viradas assombrosas junto da performance impecável do piano, e das escalas complicadas do baixo. A letra continua, explodindo em uma maravilhosa sessão com as cordas, que faz o solo principal ao lado das escalas de baixo e piano, bem como o ritmo da percussão, voltando então para a letra, para, com as intervenções das cordas, encerrar com o violão acompanhando o duelo de vocalizações e piano. Fantástico!


A triste "Mucuripe", de Fagner e Belchior, surge apenas com o violão fazendo os acordes iniciais. Depois, o dedilhado do violão acompanha a triste interpretação de Elis. Podemos fechar os olhos e ver Elis debulhando-se em lágrimas, tamanha a dor empregada por ela. Um violoncelo complementa a alta dose dramática da canção, com passagens encantadoras. A entrada do piano e das cordas, preenchem o espaço deixado pelo dedilhado do violão, e Elis destaca-se mais uma vez pela pesada dose emocional empregada em sua voz.

"Olhos Abertos", de Zé Rodrix e Gutemberg Guarabira, mantém a linha calma de sua antecessora, mas não sendo uma triste canção, e sim, uma bela composição com piano e voz, onde César é a principal atração, com escalas lindas, que vão sendo construídas parece que aleatoriamente, mas formando o arranjo central da canção. Violões, baixo e percussão timidamente passam a acompanhar piano e voz, levando a canção suavemente, e ainda encantador, deixando para o refrão, com as cordas sendo encobertas pela potente voz de Elis, o ponto máximo da canção, com um encerramento arrepiante.

O blues da canção de abertura volta em "Vida De Bailarina", de Américo Seixas e Dorival Silva, com o piano elétrico e a guitarra fazendo os acordes iniciais, acompanhados pelos brushes e pelo baixo. Elis canta despojadamente, e aos poucos, cordas são adicionadas a canção, que encerra o lado A e deixa um sorriso de prazer em seus lábios, graças aos maravilhosos minutos que se passaram.

Elis Regina e César Camargo Mariano

O Lado B abre com a fenomenal versão para "Águas De Março", de Tom Jobim, com o violão fazendo os clássicos acordes desse verdadeiro símbolo da música nacional. Percussão, piano e baixo são adicionados à medida que Elis canta a letra da canção com uma performance única, superada apenas no seu álbum de 1974, com Tom Jobim. A entrada das cordas, junto com a percussão, piano, baixo e violão, recheiam a densa camada que é a voz da gaúcha, gravando em disco um momento singular na MPB.

Piano, cordas e violão introduzem a dramática "Atrás Da Porta", de Chico Buarque e Francis Hime. Uma das letras mais "corta-pulsos" que já ouvi, aqui sim, é impossível não sentir as lágrimas de Elis rolando pela face. A dramaticidade do piano de César, mesclada com uma produção perfeita, que privilegia as respirações agonizantes de Elis, bem como as falhas vocais propositadamente encaixadas para passar o clima desesperante da letra, mostram em um LP como Elis foi a maior intérprete do Brasil. Cada vez que ouço ela cantando "pra mostrar que ainda sou tua, até provar que ainda sou tua", com uma respiração que puxa a última molécula de ar que está em sua volta, um arrepio sobe por minha espinha, e o encerramento com cordas, violão e piano, é de chorar. 

Depois, outra fantástica canção de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, "Cais", com as cordas fazendo a lindíssima introdução, trazendo aos poucos Elis fazendo as vocalizações que imitam a melodia do violoncelo, enquanto violinos solam ao fundo, e o piano passa a executar a melodia das vocalizações junto com violoncelo e a voz. A densa introdução dá espaço para órgão, violão e percussão entoarem o andamento da canção, macabro, sinistro, conturbado, com Elis cantando a letra com outra interpretação fantástica.

Os tempos de samba são revividos em "Me Deixa Em Paz", de Ivan Lins e Ronaldo Monteiro De Souza, com piano elétrico, violão, baixo e percussão comandando um gostoso e engraçado samba. É impressionante como Elis podia sair do mais triste blues para o mais alegre samba com uma personalidade que caracteriza sua voz, sempre fiel ao que a letra da canção pede, ou seja, interpretações sempre perfeitas.


Outro clássico da MPB é revisitado, agora "Casa No Campo", de Zé Rodrix e Tavito, com piano e violões introduzindo essa leve canção, trazendo baixo e bateria para fazer o suave ritmo que consagrou Zé Rodrix no Brasil inteiro, destacando a presença do cravo na ponte central da canção. O LP encerra-se com a vinheta "Boa Noite Amor", de José Maria De Abreu e Francisco Matoso, apenas com o piano acompanhando a doce e triste voz de Elis, desejando um irônico "boa-noite amor, meu grande amor, contigo sonharei, e a minha dor esquecerei se eu souber que o sonho teu foi o mesmo sonho meu, boa noite amor, e sonhe enfim, pensando sempre em mim, na carícia de um beijo que ficou no desejo, boa noite, meu grande amor", dado por uma esposa que não recebeu o carinho desejado pelo marido, o grande amor de sua vida, com um belo arranjo orquestral encerrando a canção.


Depois de Elis, a dupla Elis e César firmou-se como uma das principais duplas da Música Nacional. Juntos, lançaram pelo menos mais quatro álbuns fundamentais na discografia de um bom apreciador de música: Elis (1973), Elis (1974), muito próximos ao disco aqui homenageado; Falso Brilhante (1976), destacando canções de um ainda desconhecido Belchior, como "Como Nossos Pais" e "Velha Roupa Colorida", dando o pontapé inicial para o que tornaria-se a MPB nos anos 80; Transversal do Tempo (1978), gravado ao vivo durante o espetáculo de mesmo nome, e que é pura lisergia, com uma Elis frenética em cima do palco e com César Camargo Mariano delirando em hammond, mellotron e piano, sendo que alguns momentos desse LP beiram o progressivo, como nas lindas e, ao mesmo tempo, soturnas, "Meio-Termo"/"Corpos" ou na pancada emocional de "Deus lhe Pague"; e o mais que essencial Elis & Tom (1974), gravado em Los Angeles e que mostra aos gringos (e por que não, aos brasileiros) o melhor da música tipicamente brasileira, através das vozes de Elis Regina e Tom Jobim, com o arranjo especial de César Camargo Mariano para muitos clássicos de Jobim.

Não há dúvidas nos fãs da cantora, que sua melhor fase foi exatamente ao lado de César, e claro, que César é reconhecidamente o principal responsável pela mudança sonora de Elis, além de ter influenciado bastante no lado pessoal, servindo como braço direito para a estrela conquistar seus objetivos, algo que não ocorria na época de Bôscoli.

Elis, Maria Rita e Pedro Mariano
Os dois passaram a viver juntos logo após a gravação de Elis & Tom, tornando-se um dos casais mais admirados do país, gerando os filhos Maria Rita e Pedro Mariano. A relação entre os dois durou seis anos, até que Elis conheceu o advogado Samuel MacDowel de Figueiredo, em 1981, com quem ficou seis meses casada, vindo a falecer traumaticamente no dia 19 de janeiro de 1982, vítima de uma overdose de cocaína com bebidas alcóolicas.

Maior intérprete do Brasil
Elis é nacionalmente reconhecida, mas na data de hoje, 20 de setembro, é fundamental que seja relembrado o nome dela. Se pra a maioria dos brasileiros, essa data não signifca nada, para os gaúchos, essa data significa o marco da Revolução Farroupilha, sendo um feriado estadual. O melhor símbolo musical saído daquele estado é justamente Elis Regina, e por isso, nossa homenagem tanto à ela quanto ao Rio Grande do Sul, que possui diversos colaboradores aqui no blog.


A cantora deixou para as gerações posteriores uma carreira fabulosa, repletas de altos e mais altos ainda, e digna não apenas de um pouco de respeito nacional, mas sim, de um respeito mundial. Afinal, ainda hoje os europeus comentam sobre a pequena gaúcha, que parecia uma pimentinha de tão vermelha quando ficava brava, e que transformava toda essa fúria em uma das mais hipnotizantes performances e interpretações que o mundo já viu.

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