O rock progressivo na Argentina sempre teve forte respeito. Não somente os grupos clássicos fizeram sucesso por lá. O país acabou propiciando dezenas de artistas que, de alguma forma, acabaram chamando a atenção de uma boa parcela de cultuadores do estilo, e hoje em dia são verdadeiros tesouros procurados por colecionadores.
O mais marcante no prog argentino era a influência de elementos folclóricos, como o tango, a milonga e outros estilos, criando um gênero único, chamado pelos hermanos de prog-folk. Um dos principais nomes desse novo gênero foi o Anacrusa.
Formado em 1972, o grupo mesclava os elementos citados acima com uma sonoridade bem distinta de grupos como Nito Miestre Y Los Desconocidos ou Sui Generis. Capitaneado pelo maestro José Luis Castiñera de Dios, que dava as honras como violonista e baixista, o Anacrusa iniciou como um quinteto, tendo ainda Alex Eriich-Oliva (double bass, violões), Juli Pardo (flauta), Elias "Chiche" Heger (bateria, percussão) e Susana Lago (piano, órgão, charango e voz).
Primeiro LP do Anacrusa |
No ano seguinte, gravaram seu primeiro disco. Anacrusa, mistura bastantes os elementos latinos e do folclore argentino, destacando bastante a flauta, como “Pobre Mi Tierra”, “Marula Sanchez” e “Lo Que Mas Quiero”, além de belas composições instrumentais, como “Rio Limay”, “Viento de Yaví”, “Zamba de Invierno” e “Piedra Y Madera”, essa última a única que pode ser considerada progressiva. A capa é uma pequena homenagem ao Pink Floyd, com o quinteto posando ao lado de todos os instrumentos utilizados na gravação do LP (imitando o que o grupo britânico fez em Ummagumma, de 1969).
Anacrusa II, segundo LP do grupo argentino |
Em 1974, com Rubén "Mono" Izaurralde no lugar de Pardo, entram no estúdio Phonalex, onde gravam o segundo álbum. Lançado no mesmo ano, Anacrusa II mantém os temas folcóricos de seu antecessor, destacando as belas instrumentais “Polo Coloriano” e “Zamba de la Despedida” e a (também instrumental) arrepiante “Saqué Mi Corazón de la Tierra Quemada”, outra que poderia facilmente frequentar as casas dos assíduos de um rock progressivo mais experimental, com um espetáculo à parte da flauta e do violão, em um tema emotivo e muito tocante, e da grandiosa “Calfucurá”, uma fantástica canção repleta de temas marcados, com um belíssimo trabalho ao piano e flauta, e que mostra uma leve guinada do Anacrusa para tornar-se um grupo de rock progressivo.
Porém, a ditadura argentina comia solta em 1975, e o grupo resolveu retirar-se do país, buscando exílio na França após o lançamento de Anacrusa III. Lá, o quinteto ampliou seus conhecimentos musicais. Amigos argentinos e da América Latina em geral, também exilados na França, passaram a frequentar as residências de Susana e Castañera. O Anacrusa voltou forte, trazendo, além dos dois citados, o flautista Júlio Pardo, Bruno Pizzamiglio (oboé), Daniel Sbarra (violões), Jorge Trasante (bateria e percussão), Juan Mosalini (bandoneon) e Phillipe Pages (piano, órgão).
Rara fotografia dos argentinos |
É esse octeto que, em 1978, gravou o primeiro disco exilado do Anacrusa, o belíssimo El Sacrifício. Trata-se de um álbum bem diferente do que estamos acostumados a ouvir das terras portenhas. O predomínio de instrumentos de sopro e cordas é gritante, fazendo um som muito inovador, misturando elementos orientais com toques pampeanos (como a milonga e o chamamé) além dos timbres que marcaram o progressivo britânico. A canção de abertura, a fantástica instrumental “El Pozo de los Vientos”, é um bom exemplo da sonoridade que permanece no LP, com passagens repetitivas, sobrepondo-se e renovando-se através dos instrumentos citados. Essa psicodelia segue em “El Sacrificio”, na qual a guitarra de lembra Syd Barret, e a interpretação vocal é arrepiante. Mais uma vez, os instrumentos de sopro, como a flauta andina, e as belas passagens de violino, são uma saborosa novidade ao que estamos acostumados a ouvir no rock.
“Sol de Fuego” e “Quien Bien Quiere” mantêm o pensamento inovativo do Anacrusa, sendo a primeira uma instrumental que faz uso de bumbo leguero (instrumento típico do pampa), piano e violino para criar um dançante jazz rock instrumental, enquanto a segunda parece ter saído de algum país do Oriente Médio, principalmente por seu ritmo cavalgante e pelas hipnotizantes participações vocais e do violino, além das cambiadas agitadas, onde a guitarra se sobressai.
Entretanto, nada supera a canção que encerra o lado A de El Sacrifício, batizada de “Homenaje a Waldo”. Em pouco mais de cinco minutos, ela coloca todas as novidades no chão, através de um triste e sofrido (como só os argentinos conseguem fazer) tango, mas não um tango qualquer, um tango feito totalmente com inspirações progressivas.
“Homenaje a Waldo” é uma maravilhosa peça instrumental que começa com o piano executando um triste dedilhado, enquanto entoa vagarosamente o tema central da canção, com notas emotivas e muito tocantes. Órgão e violino passam a acompanhar a melodia do piano, fazendo um leve crescendo, junto de um pequeno arranjo para violinos. Um oboé aparece, e pouco a pouco violino, percussão e flauta surgem, encerrando o que seria a primeira estrofe.
O vinil argentino original |
O bandoleom passa a fazer o tema central, acompanhado pelo piano e pela flauta, e depois é a vez do oboé repetir este tema, ainda ao lado de flauta e piano. Flautas surgem como pássaros em meio a uma selva de violinos, soltando notas aleatórias, e a canção começa novamente a crescer. Mas é o bandoleom que toma conta novamente, ficando sozinho, solando tristemente sobre a escala do tema central.
Lentamente, a percussão surge e finalmente leva ao verdadeiro crescendo de “Homenaje a Waldo”, ao mesmo tempo em que o oboé sola, duelando com o bandoleom e com o órgão ao fundo. Com várias viradas de bateria, as extravagâncias do baixo e um fabuloso ataque às teclas do piano, a guitarra passa a solar, e assim, bandoleom, violino, órgão e flauta fazem o tema central juntos, arrancando lágrimas de qualquer ser vivo à sua volta, acompanhados pela marcação do baixo e da bateria, com um emocionante arranjo de cordas ao fundo, encerrando a canção com a sobreposição das notas do violino, órgão, piano e bateria, e uma última passagem do oboé, para concluir com um fúnebre acorde “E” feito por órgão e piano.
El Sacrifício ainda continua com “Los Capiangos”, outra maravilhosa e experimental canção instrumental, cheia de mudanças de andamento, na qual a flauta e o oboé têm papel de destaque junto da percussão e do baixo, chapantes em sua primeira parte, com o violão, o clarinete e o moog sendo as atrações na segunda parte; e a longa suíte “Tema de Anacrusa”, talvez a principal música do que foi convencionado chamar de jazz-prog-pampeano, trazendo na linha de frente baixo e percussão, responsáveis pelos andamentos sinfônicos do violino e dos metais de um épico instrumental com mais de doze minutos de muitos temas marcados, variações e passagens complexas de flauta, órgão, oboé, violino e instrumentos andinos, além dos jazzísticos solos de piano e oboé e das arrepiantes vocalizações. As duas faixas são um complemento mais que satisfatório para que gostemos ainda mais do que já havíamos ouvido no lado A, e principalmente, na maravilhosa “Homenaje a Waldo”.
O ótimo Fuerza |
Quatro anos depois, o grupo lançou o segundo disco no exílio. Fuerza é um álbum mais “elétrico”, como comprovam “Vidala de la Tierra”, a fantástica “Calfucura” (merecedora do rótulo "maravilha prog"), “Presion” , “Voz de Agua” (outra maravilha) e “Chaya”, na qual o Anacrusa verdadeiramente soa como um grupo de rock progressivo, mas ainda traz momentos folclóricos, com destaque para a faixa-título, “En Paz”, e com “Montserrat” sendo a mescla de estilos, privilegiando o lado elétrico, apesar das passagens puramente latinas. Fuerza é o melhor disco do Anacrusa, mas não contém algo se quer perto da força de "Homenaje a Waldo".
O Anacrusa deixou de existir depois disso, e passou a viver de voltas não tão marcantes. Em 1995, lançaram Reencuentro, e somente em 2005, o grupo voltou oficialmente à tona, tendo na formação Castañera, Susana, Víctor Skorupsky (clarinete), Jorge Padín (percussão), Sebastián Prusak (violino), Juan Scaffino (violino), Pablo Fusco (viola) e Roberto Segret (violoncelo), fazendo shows com preços populares (2 pesos em média, cerca de 1 real) e lançando o álbum Encordados, além da coletânea de raridades Documentos, todos lançados naquele ano, mas nada comparáveis à genialidade alcançada em El Sacrifício, que, seguindo as palavras de um vendedor de discos na Rua Corrientes, é o melhor disco do mundo, e um dos melhores da Argentina.
O maestro Castañera |
Brincadeiras portenhas à parte, o álbum do Anacrusa é uma obra-prima a ser buscada pelos apreciadores do rock progressivo, principalmente para aqueles que desejam ser surpreendidos por novidades, sendo “Homenaje a Waldo” o ápice da criatividade de uma das principais bandas que a Argentina já ouviu.
Como detalhe final, em 1976 foi lançado o disco Anacrusa III, quando o grupo já estava exilado na França. Infelizmente, não encontrei mais informações a respeito e desconheço seu conteúdo musical. Fica o pedido para que o leitor que conhece esse álbum, e também o Anacrusa, exponha seu conhecimento através dos comentários.
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