domingo, 15 de março de 2015

Elis Regina - Parte II




A segunda parte da Biografia de Elis Regina que apresento aqui desde o dia primeiro de março, em homenagem aos 70 anos de seu nascimento, a serem completados depois de amanhã, dia 17 de março, presta suas atenções para os álbuns ao vivo lançados por Elis entre 1965 e 1970. Nesse período, a carreira da cantora sofreu uma grande reviravolta, saindo da quase obscuridade para o posto de maior voz do país.

Depois de virar uma das atrações no Beco das Garrafas, no Rio de Janeiro, Elis passou a fazer parte, em 1964, do cast de personalidades da TV Excelsior, apresentando o programa Dois na Bossa, ao lado de Jair Rodrigues. Essa série de álbuns ao vivo começa então com o mais importante registro de Elis na década de 60, o qual apresenta um pouco do que os fãs e telespectadores assistiam neste programa.

O primeiro disco de um artista nacional a atingir a marca de um milhão de cópias vendidas

Gravado ao vivo no Teatro Paramount em 10 de abril de 1965, 2 na Bossa traz a impactante união de Elis Regina com o cantor Jair Rodrigues no programa O Fino da Bossa, nesse que foi o primeiro LP a atingir a marca de um milhão de cópias vendidas no Brasil, cujo único defeito é sua curta duração, pouco mais de 30 minutos. 2 na Bossa é um álbum bem dividido, com canções ora de Jair, ora de Elis. 

Jair traz os seu estilo brincalhão na agitada "'ta Engrossando", o jeito "rap" de cantar em "Ziguezague", e solta a voz na irônica "Ué". Vale ressaltar também a importante participação do grupo Jongo Trio, formado por Cido Bianchi ao piano, Sabá no baixo e Toninho na bateria, que acompanha a dupla em todas as faixas, e tem posição de destaque na forte "Reza" e no samba-choro "Terra de Ninguém", ambas cantadas por Elis, cuja entrega na linda "Preciso Aprender a Ser Só" causa arrepios, ainda mais para uma ainda menina (na época da gravação, Elis tinha acabado de fazer 20 anos). 

Jair Rodrigues, o produtor Walter Silva, Elis Regina e Jongo Trio (Toninho, Cido e Sabá).

Elis também desfila pela veloz "Deus Com a Família", e traz como um dos pontos altos do LP o primeiro registro oficial de "Arrastão", mais uma faixa de Edu Lobo importalizada por Elis, em uma versão tão impactante quanto a da apresentação no I Festival da Música Popular Brasileira, realizado pela TV Excelsior dias antes em Guarujá, e que garantiu à Elis a posição de primeiro lugar no Festival, ganhando o prêmio Berimbau de Ouro. 

Outro momento delicioso é "Pot-Pourri", trazendo nada mais nada menos do que 12 grandes temas do samba nacional condensados em uma daquelas situações que fazem o vivente abrir o sorriso e dizer "É por isso que vale a pena viver", com Elis e Jair dividindo-se democraticamente nos mais de seis minutos da peça. A dupla ainda divide os vocais na alucinante "Menino das Laranjas", contando mais uma vez com perfeita participação do Jongo Trio. Um disco que marcou época, é obrigatório em qualquer casa de nosso país, independente de sua simpatia ou não pelos artistas, e como bem citado por Walter Silva em sua contra-capa, "deu a prova definitiva de que a música brasileira é parte integrante do povo". Basta ouvir os insanos aplausos no final de cada faixa.

Ótimo álbum com o Zimbo Trio

Com o sucesso do Dois na Bossa, a TV Record investe mundos e fundos, comprando o programa de sua maior rival e transformando-o no espetáculo O Fino da Bossa, que estreou em 19 de maio de 1965 na nova casa. Com direção musical de Manoel Carlos e Elis comandando as atrações como uma Rainha, este foi o programa de maior audiência da TV naquele ano, e gerou outro álbum grandioso, gravado ao vivo no Teatro Record. 

O Fino do Fino  é simplesmente o melhor do que foi exibido no programa, apesar de que muitos dos que assistiam ao mesmo garantirem que ainda ficou muito material de fora. Com a companhia do Zimbo Trio, formado por Amilton Godói (piano), Rubinho Barsotti (bateria) e Luis Chaves (baixo), Elis cresce cada vez mais como vocalista e intérprete, e apóia-se novamente em Edu Lobo para mandar ver em "Chegança", de Edu e Oduvaldo Vianna, na balada "Canção do Amanhecer", ou na enlouquecida "Zambi", ambas parcerias de Edu com Vinícius de Moraes. Ao mesmo tempo, traz uma pulga na orelha com a simplicidade de "Té O Sol Raiar", de Baden Powell e Vinícius de Moraes, e rasga a voz na percussiva e viajante dupla "Esse Mundo É Meu" (Ruy Guerra - Sérgio Ricardo) / "Resolução" (Edu Lobo - Luiz Freira). 

Anúncio de apresentação de Elis (ainda com dois l's) com o Zimbo Trio

Porém, o êxtase não é uma canção de Edu Lobo, mas sim uma singela peça de Ed Lincoln e Sílvio César, a dolorida "Amor Demais", outra demonstração seminal do poder vocal e interpretativo de Elis, que faz as caixas de som chorarem como cachoeira, e tem em seu encerramento um enlouquecido fã gritando "Bravo! Bravo!". O Zimbo Trio ainda tem o luxo de apresentar canções interpretadas por ele, as quais são as instrumentais "Aruanda", "Só Eu Sei O Nome", "Samba Meu", "Expresso 7" e "Samba Novo", destacando sempre o brilhantismo de Amilton e a perfeita união do jazz com a música brasileira, acentuada pelas performances individuais de Chaves e Barsotti, além da erudita "Chuva".  Não chega a ser um álbum tão forte quanto 2 na Bossa, mas ainda assim essencial nas casas do povo brasileiro.

Elis viajou para a Europa no final de 1965, quando tirou merecidas férias enquanto era intitulada a Rainha da voz brasileira, sendo o grande ídolo nacional daquele momento. No seu retiro, O Fino da Bossa ficou sendo apresentado por Peri Ribeiro e Wilson Simonal. Quando retornou ao Brasil, Elis deparou-se com a crescente cena da Jovem Guarda, que contagiava a Geração Iê-Iê-Iê com um programa de mesmo nome sendo apresentado na TV Record e um novo ídolo nacional, Roberto Carlos. Ao mesmo tempo, a gaúcha liderou a famosa "Marcha Contra às Guitarras", muito bem resgatada pelo colega Marco Gaspari nesta matéria. Musicalmente, a esperança de voltar ao topo das paradas foi revitalizar a parceria com Jair Rodrigues, com o segundo volume de Dois Na Bossa.

Dois na Bossa Número 2, sequência do sucesso de Dois Na Bossa
Gravado ao vivo no Teatro Record, durante a apresentação do espetáculo O Fino da Bossa, Dois Na Bossa Número 2 para muitos é superior ao seu antecessor, algo que tenho dúvidas, pois a qualidade de ambos os álbuns é incrivelmente alta e de difícil distinção. Talvez o fato da seleção de artistas que receberam versões para suas músicas serem mais conhecidos do grande público de hoje seja um dos fatores para que ... Número 2 tenha essa preferência, mas isso é mera discussão de botequim. O fato é que a dupla, agora acompanhada pelo Luiz Loy Quinteto (Luis Loy ao piano, Papudinho no pistom, Mazzola no saxofone, Bandeira no baixo e Zinho na bateria) e pelo Bossa Jazz Trio (Amilson Godoy ao piano, Jurandir Meirelles no baixo e José Roberto Sarsano na bateria), e com direção musical de Adilson Godoy, arrasa. As divisões de faixas são democráticas, sendo quatro para cada artista, e duas com ambos dividindo os microfones. Os fãs de Jair sentirão a ausência do estilo rap de cantar que o caracterizou, já que ele apresenta uma serenidade encantadora na dupla "Mascarada / Sonho de Um Carnaval" e uma emocionante voz na linda "Tristeza", mas também traz sua contagiante simpatia em "São Salvador, Bahia" e "Santuário do Morro". 

O sorriso do sucesso

As canções em dupla são duas pérolas da música nacional. Assim como no primeiro volume, o "Pot-Pourri" entre Elis e Jair apresenta uma mescla ampla de sambas, totalizando novamente 12 canções condensadas agora em pouco mais de cinco minutos. A outra canção contando com o vocal da dupla é o samba "Louvação", do jovem Gilberto Gil em parceria com Torquato Neto - é só eu que fica indignado em saber que o rapaz que compôs uma pérola como essa depois mudou totalmente sua carreira musical. Gil também aparece na voz de Elis, com a arrepiante "Amor Até o Fim". Outros pontos altos na voz de Elis são os duelos com o piano em "Upa, Neguinho" (Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri), e as vocalizações na bela "Tristeza Que Se Foi", além de comandar a clássica "Canto de Ossanha" (Baden Powell e Vinícius de Moraes), para mim a canção que ao lado de "Arrastão" melhor define esse momento musical da gaúcha. O álbum vendeu tanto quanto Dois na Bossa, e serviu para resgatar o nome de Elis para a nova geração apaixonada por Wanderléa, Erasmo e Roberto Carlos.

O último disco da trilogia com Jair Rodrigues 

O encerramento da trilogia Dois na Bossa foi gravado ao vivo no Teatro Paramount, e marcou também o encerramento da apresentação do programa O Fino da Bossa na TV Record. Mantendo a divisão das edições anteriores de Dois na Bossa, o que difere-se aqui é que o volume 3 começa com o samba-manifesto "Imagem", apenas com Elis entoando as lindas palavras de Luiz Eça e Ronaldo Bôscoli, e também traz Elis como voz principal na polêmica "Manifesto", de Guto e Mariozinho Rocha, repleta de indiretas para a Ditadura Militar brasileira. Jair traz o agito de Gilberto Gil em "Serenata Em Teleco-Teco", o embalo tradicional de Zé Keti em "Amor de Carnaval", a alegria de Osmar Navarro na marchinha "O Ser Humano" e o embalo africano de Paulo da Cunha em "Capoeira Camara". Outra diferença vai para o par de canções com Elis e Jair. 

Se antes temos um pot-pourri e uma canção a la carte, nesse álbum estão duas seleções de faixas entoadas pela dupla, "Popurri de Mangueira", com sete sambas em homenagem ao tradicional bairro - e consequentemente à agremiação - do Rio de Janeiro, e "Popurri Romântico", com quatro belas baladas que passeiam pelas artes de Tom Jobim e Vinícius de Moraes em "Eu Sei que Vou Te Amar", Vinícius de Moraes e Carlos Lyra em "Minha Namorada" e "Primavera", e Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli em "A Volta". 

Jair Rodrigues e Elis Regina, dupla de grande sucesso

Elis coloca a casa abaixo no emocionante samba despedida "Marcha da Quarta-Feira de Cinzas" e mostra novos caminhos em suas interpretações na complicada "Cruz de Cinza, Cruz de Sal", com um belo acompanhamento vocal do Luiz Loy Quinteto, o qual é responsável por toda a parte instrumental do álbum. Caminhos estes influenciados pelo marido Ronaldo Bôscoli, um casamento que como muitos afirmaram, já nasceu fracassado. Número 3 é o mais fraco da trilogia, talvez pelo sentimento de que o sucesso do programa já havia passado, mas ainda assim, manteve a dupla em bom nível de vendas.

Todos os álbuns até aqui tratados foram relançados em CD em 1994, sem nenhuma faixa bônus, ganhando outros relançamentos posteriores, também sem faixas bônus.

Outra grande parceria de Elis resultou em mais um belo disco ao vivo, dessa feita em 1970, e trago-o aqui, pulando a ordem cronológica dos lançamentos, para complementar essa sequência de parcerias ao vivo da pimentinha durante o final da década de 60, depois de uma breve temporada na Europa. A biografia será retratada em quinze dias, ficando aqui o fato de que em 1967, Elis casou-se com Ronaldo Bôscoli, ocasionando em uma grande mudança em sua carreira. 

Hilário álbum de Elis com Miele

Seguindo, em 1969, Elis decidiu produzir um espetáculo teatral em parceria com o marido Bôscoli, e com a ajuda de Miele, levou o mesmo para o Teatro da Praia, no Rio de Janeiro, ficando o mesmo registrado ao vivo e lançado um ano depois no sensacional Elis No Teatro da Praia, que tem como banda de apoio o Conjunto Elis 5, formado por Roberto Menescal (guitarra), Jurandir Meirelles (baixo), Zé Roberto (piano), Hermes (percussão) e Wilson das Neves (bateria). 

Na época, era comum nomes como Chico Anysio, Juca Chaves, José Vasconcellos, Costinha entre outros, registrarem álbuns somente de piadas, e elas dão o toque de humor entre as faixas, com Miele sendo o comediante da vez nas brilhantes piadas apresentadas antes de "Se Você Pensa", canção que acabou de vez com a rivalidade entre a MPB e o Iê-Iê-Iê, já que unia pela primeira vez em um lançamento brasileiro (essa canção já havia saído um ano antes em Elis in London, como veremos na próxima parte desta biografia) a Jovem Guarda de Roberto Carlos, autor da canção, com o "conservadorismo" de Elis, "Minha" - o que Elis canta nessa faixa é um absurdo - e "Aquele Abraço", o clássico de Gilberto Gil aqui dedicado para Dorival Caymmi, João Gilberto e Caetano Veloso. 

No auge da Era de Ouro dos Festivais, é inevitável que Elis tenha participado de diversos deles, recebendo registros nos seguintes álbuns oficiais - com as respectivas canções e (ano): I Festival de Música Popular Brasileira - "Arrastão" (1965); Festival dos Festivais - "Saveiros", "Canção de Não Cantar" e "Jogo de Roda" (1966); III Festival de Música Popular Brasileira - "O Cantador" (1967), I Bienal do Samba - "Lapinha" (1968), I Festival Universitário da MPB da Guanabara - "Um Novo Rumo" (1968), além do álbum A Bossa No Paramount (1965), com "Terra de Ninguém", ao lado de Marcos Valle. Elis também teve uma participação especial interpretando "Cadeira Vazia" em um compacto duplo chamado Lupicínio Rodrigues, ao lado de Caetano Veloso, Gal Costa e Gilberto Gil (1964), produziu o álbum Viva o Festival da Música Popular Brasileira (1965), considerado o primeiro LP independente lançado no Brasil, pelo selo Artistas, com as faixas "Ensaio Geral" e "Jogo de Roda" (1966), colocou sua voz em "Depois da Queda", pertence ao álbum O Conjunto de Roberto Menescal (1969), e participou da Trilha do filme Garota de Ipanema (1967), com a canção "Noite dos Mascarados", ao lado de Chico Buarque. Ainda existe um registro raríssimo chamado Entrevista - Corte Real, lançado em 1965, que ao que parece, saiu em edição limitada, hoje muito valiosa.

Luiz Carlos Miele e Elis Regina: um show de gargalhadas

Elis e Miele uniram seus talentos de forma que é impossível não terminar a audição de Elis no Teatro da Praia sem ter dado boas gargalhadas, ao mesmo tempo que fica a sensação de que Elis cada vez está mais perfeita em suas interpretações, facilmente comprovado em "Zazueira". O ponto de maior brilhantismo da dupla está logo na abertura do LP, "Introdução", com Elis cantando soberanamente cinco joias da música nacional ("Casa Forte", "Reza", "Noite dos Mascarados", "Samba da Bênção", as duas últimas cantada em francês por Elis e Miele, e "Making Whooppeel", esta cantada em inglês pela dupla), entre piadas impagáveis e de extremo bom humor divididas com Miele, que só por elas já valem a postada do vinil em local de fácil acesso na sua discoteca, principalmente quando Miele faz as brincadeiras com palavras em português dando sotaque francês. 

Outro momento que é impossível não rir vai para o deboche de Miele durante "Musical de Gala". Enquanto Elis solta a voz com seis passagens de canções da MPB - e juro que não entendo como ela consegue manter a concentração - Miele detona de forma hilária e indescritível. Só ouvindo para entender o que ele faz. Por incrível que pareça, nesses momentos Miele brilha mais que Elis, claro por conta das piadas, por que repito, a capacidade de concentração de Elis é impressionante, já que o teatro inteiro cai na gargalhada enquanto ela está concentradíssima e inerte nas suas interpretações para "Eu e a Brisa", "Preciso Aprender a Ser Só", "Carolina", "Nunca Mais", "Franqueza" e "Se Todos Fosem Iguais a Você". 

Em "Irene", Elis homenageia o autor da canção, Caetano Veloso, chamando-o de gênio e o maior artista de sua geração, em uma versão que já havia sido apresentada na trilha sonora da novela global Véu de Noiva (1969). Mas nem tudo é piada, e quando a coisa é levada a sério, é difícil segurar o tesão com a sensualidade exalada pelos sussurros de Elis em "Can't Take My Eyes of You", mostrando que a Europa havia feito muito bem para ela. Discaço relançado em raro CD de 1998, para se ouvir com os amigos dando boas gargalhadas, e para mim, o segundo melhor dos álbuns hoje apresentados, atrás apenas de O Fino do Fino.


Alguns compactos de Elis nessa época,
com destaque para o compacto vencedor com "Arrastão"

Esse foi um período bastante fértil de compactos. No total, saíram onze disquinhos pro mercado, os quais são "Menino das Laranjas / Sou sem Paz" (1965), "Arrastão / Aleluia" (1965), "Zambi / Esse Mundo É Meu - Resolução" (1965), "Canto de Ossanha / Rosa Morena" (1966), "Ensaio Geral / Jogo de Roda" (1966), "Upa, Neguinho / Tristeza que se Foi" (1966), "Saveiros / Canto Triste" (1966), "Travessia / Manifesto" (1967), "Yê-melê / Upa, Neguinho" (1968), "Samba da Benção / Canção do Sal" (1968), e "Lapinha / Cruz de Cinza, Cruz de Sal" (1968), além dos compactos duplos "Menino das Laranjas - Último Canto / Preciso Aprender a Ser Só - João Valentão" (1966), "Pout-Porri de Samba / Sem Deus, com a Família - Ué" (1966) e "Saveiros / Jogo de Roda - Ensaio Geral / Canto Triste" (1966).

Em quinze dias, veremos como Elis abandonou os sambas de outrora e começou a guinar seu timão em direção ao jazz e ao rock, com os seis álbuns lançados durante seu casamento com Bôscoli, entre o fim da década de 60 e o início da década de 70, incluindo os dois álbuns originalmente lançados apenas no mercado internacional.

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