Em 1998, na entrada do meu ensino médio, na cidade de Pelotas, tive uma professora de português, Beatriz, que ensinava também literatura, e me apresentou Vitor Ramil, pelotense, irmão da famosa dupla Kleiton e Kledir. Meu interesse que levou a tal apresentação veio de uma breve discussão sobre se havia algum escritor pelotense mais importante que Simões Lopes (N. R. João Simões Lopes Neto, nascido em Pelotas, Rio Grande do Sul, considerado o maior autor regionalista do Brasil, já que em sua produção literária valorizou a história e as tradições do gaúcho). Lembrando que sou natural de Pedro Osório, cidade localizada a 60 Km de Pelotas, e portanto, tinha em minha adolescência uma certa busca por uma identificação regionalista. Através do livro Pequod, que havia sido lançado anos antes, ela me ensinou sobre a literatura e também sobre a arte de Vitor, apresentou-me a palavra Satolep (Pelotas de trás para frente), que foi algo inédito para mim, surpreendente.
Vitor e banda no Teatro Ipanema
Ao mesmo tempo, com o passar do ensino médio, conheci a música de Vitor Ramil e o álbum Tango (1987), de onde sai "Joquim", uma versão para "Joey", de Bob Dylan, e uma das melhores músicas da MPB. Os anos passaram e, durante a faculdade, "Joquim" se torna um símbolo para mim, um símbolo de luta, um símbolo de raça, um símbolo de conquistas, um símbolo de vitórias e de enfrentamento contra as injustiças. Eu e meus colegas, principalmente o meu colega e irmão Rodrigo Magalhães, o Kalaba, tínhamos em "Joquim" um símbolo a ser seguido. E "Joquim" se fez presente em meu mestrado, no meu doutorado, em todas as vezes que eu precisava de forças, ouvia "Joquim" e seguia adiante. Não à toa, ela foi a canção que abriu minhas defesas de mestrado e doutorado. E ainda hoje, lembro o cheiro da sala do local onde defendi minha tese, o meu doutorado, com muita alegria.
O cheiro diferente do cheiro que senti no Teatro Ipanema, no Rio de Janeiro, na noite de 29 de julho de 2025. Ipanema, bairro localizado ao lado de Copacabana, na zona sul carioca, não tem o mesmo charme de sua irmã próxima. Outro cheiro que facilmente me vem à mente é o de quando senti a brisa do mar de Copacabana pela primeira vez, aquela mistura de peixes, frituras, suor e outros odores misturados que só Copacabana tem, isso já em 2006, quando eu fiz o que Vitor fez um dia, caminhei meus sapatos por Copacabana atrás de um livro algum para ler no fim de semana. Era minha primeira vez por lá, e jamais imaginaria que, caminhando de Copacabana para Ipanema, quase 20 anos depois iria ver Vitor pela primeira vez exatamente em Ipanema.
Vitor e Ney interpretando "Astronauta Lírico"
Lá no acanhado Teatro Ipanema, promovendo o álbum Mantra Concreto, com poemas de Paulo Leminski, musicados por Vitor, junto de Alexandre Fonseca (bateria, percussão, efeitos, e ainda, neto do famoso Joquim entoado por Vitor) e Edu Martins (baixo, teclados, voz), subiram ao palco, numa noite que tinha tudo para ser perfeita, e assim o foi. À exceção daquele cheiro. Aquele cheiro de uma plateia idosa, uma plateia predominantemente elitista, e que havia em grande parte ido ali assistir não ao Vitor, não aos poemas de Paulo Leminski, mas a um convidado que ia subir ao palco naquela noite junto de Vitor: Ney Matogrosso.
Eu não tinha ingresso para o evento, realizado como parte do projeto Terças No Ipanema, mas fui com a expectativa de ao menos conseguir ficar num canto, e quiçá pegar um autógrafo e trocar uma ideia com Vitor. Por sorte, obra do destino, minha devoção à Entropia ou qualquer outra fé que possa existir, a filha e o genro de uma moça - nem tão moça assim - não foram ao show, e consegui ingresso em uma posição privilegiada do palco, sem antes ter que assistir aquele elite mofada entrando no teatro, ver que uma mulher com roupas com certeza inapropriadas para um teatro foi lá enviada pela sua "dona" para guardar lugar e conseguir um ingresso para ela (a escravidão ainda existe), e uma outra que me olhando com ar de esnobe, perguntando o que eu achava da segurança do Rio, ao ouvir eu falar que havia gostado da nova rodoviária (a Novo Rio) me falou no alto de sua empáfia: "meu bem, eu não vou em rodoviária", enquanto aproveitava para descer a lenha no atual governo federal e também no governo municipal do Rio de Janeiro (curiosamente poupando o governador do estado).
Enfim, às 20:00, Vitor e banda subiram ao palco. O gaúcho tocou durante duas horas para a elite carioca que, com uma arrogância gigantesca, um cheiro de naftalina e de "riqueza", pois o seu dinheiro não tem o valor da cultura de Vitor Ramiro, uma elite que não entende as músicas de Ramil, que mal sabia quem era Paulo Leminsky, que desconhece que a capa de Mantra Concreto traz uma explícita homenagem ao regime soviético e aos comunistas, e tão pouco imaginava que Ney não era a principal atração da noite. Esta mesma plateia patética ficou obsoleta e simplesmente quieta diante de um artista sensacional.
Vitor apresentou um repertório baseado em Mantra Concreto (9 das 15 canções do CD foram apresentadas), lançado em 2024, e bastante intimista, num teatro lotado que desconhecia a obra ali apresentada. Foi o primeiro show para promover o disco, que começou exatamente com as duas faixas que abrem o disco, "De Repente" e "Teu Vulto". Com o violão em punhos, o gaúcho comandou a noite de forma tranquila e como se estivesse em um ensaio. Entre conversas que geravam certas risadas um tanto quanto constrangedoras dessa elite mofada, Vitor tocou não só canções recentes, mas algumas faixas de seu vasto repertório, como por exemplo "Invento" (gravada por Ney no álbum Beijo Bandido), a sensacional "Foi No Mês Que Vem" (faixa homônima daquele que talvez seja o melhor disco de Vitor), "Estrela, Estrela", do álbum de estreia do guri, com apenas 17 anos, e a belíssima "Tierra", canção que foi adaptada por Vitor ao português, e que segundo ele, lhe traz ainda hoje muitas lágrimas (ao contar sua relação com a música "Tierra", o caminho que ele fez saindo de casa até o laranjal, e sentindo a emoção dele, confesso que também me emocionei).
Então, Vitor trouxe uma boa definição sobre a importância do Secos & Molhados para a música nacional, e foi então que Ney subiu ao palco para interpretar "A Ilusão Da Casa", que aí a plateia parece que acordou realmente. Ney cantou e parecia totalmente à vontade em estar ali. Com uma calça jeans e uma bela camisa preta, Ney interpretou soberanamente essa canção de Tambong (2000). Ovacionado, Ney agradeceu e logo em seguida a banda emendou "Astronauta Lírico", uma das mais belas canções de Vitor, o que é difícil, já que quase todas as canções de Vitor são belas. Mas logo no começo, Ney parecia perdido, e na segunda frase, se atrapalhou completamente. Então, ele tentou continuar cantando, mas pediu para Vitor voltar, alegando que o grupo estava tocando em um tom diferente do ensaiado. Vitor, então, afirmou que o tom estava correto, e assim voltaram à "Astronauta Lírico" para o incomodado Ney demorar a se soltar. Mas, quando ele se soltou, foi um grande êxtase e um dos grandes pontos altos da noite. Mas não só isso. Ney cantou apenas duas músicas que foram ovacionadas, aplaudidas de pé, mas o show foi muito mais do que Ney.
Encerramento do show: Vitor, Ney, Alexandre e Edu
O show foi uma amostra de um gênio da música nacional, um ser brilhante, que não merecia a plateia que estava ali. E tão pouco, essa plateia mofada, enriquecida de pobreza, enriquecida de dinheiro esnobe, como uma senhora que disse para mim: "acabei de vir dos Estados Unidos, aqui é o fim do mundo, mas infelizmente eu tenho que morar aqui, neste país ridículo". Poxa, que alegria, né? Enquanto isso, Vitor destilava os poemas de Leminski para aquela (com certeza) plateia burguesa e anti-comunista, que não entendia bulhufas do que estava sendo entoado no palco do Teatro Ipanema, e também seus próprios pensamentos.
Ao final do show, após voltar ao bis, onde apresentou "Joquim", a melhor versão feita por uma música de Bob Dylan em todos os tempos, que narra a história de Joaquim Fonseca, um senhor que criou aviões no interior do Rio Grande do Sul, na cidade de Pelotas, em Satolep, exatamente a mesma cidade onde eu fiz o meu ensino médio, onde fiz a minha faculdade, onde nasceu meu filho, e do lado da cidade onde eu nasci. "Joquim" foi interpretada com a versão muito próxima da versão de Foi no mês Que Vem (e não à versão original de Tango). E, ao final, Vitor deu uma bela de umarrelhada naquela plateia mofada, fedendo a mofo, com seus mofos nas gravatas, aquele mofo que Joquim teve que lamber, mas que lá, no Teatro Ipanema, não foi Vitor quem lambeu. Foi a plateia que acabou sendo, vamos dizer assim, repreendida por palavras fortes, não só da letra genial de Vitor, mas também, ao final de "Joquim", quando ele disse que "foi uma carta em inglês, lá dos Estados Unidos, que impediu Joaquim Fonseca de ser um dos maiores construtores brasileiros, de avião, o primeiro construtor e dono da primeira fábrica de aviões do Brasil. Nada diferente dos dias de hoje".
Trocando uma ideia emocionado diante de um gênio
Ainda houve tempo para Vitor mandar ver "Caricatura", e convidar à plateia para recepcioná-lo no pós-show, onde iria tirar fotos e conversar com quem quisesse. As 169 pessoas que lotaram o Teatro Ipanema simplesmente foram embora, e pouco mais de 20 verdadeiros fãs e amantes da obra de Vitor (e talvez Leminsky?) ficaram para conversar com uma das mais humildes pessoas que já tive a oportunidade de conhecer. Meu sonho havia se tornado realidade, o de conhecer pessoalmente o maior gênio da literatura e da arte gaúcha deste século, e que eu possa ver um show tão incrível quanto o do último dia 29 de julho em breve. Mas aos interessados, amanhã, 5 de agosto, Vitor estará novamente no Teatro Ipanema, com o mesmo show, mas agora tendo Adriana Calcanhotto como convidada. Os ingressos já estão (novamente) esgotados, mas vá lá, vá que a Entropia lhe dê a mesma oportunidade que eu tive. Viva Vitor, Viva Leminsky Viva a Verdadeira Arte Brasileira!
PS: Quero agradecer (e muito) à Marcia Regina, pelas imagens, pelo ingresso e pela parceria durante o show, e Jorge Gomes, pela parceria, imagens e atenção na banca da Biscoito Fino. Vocês também mereceram estar lá!
Set list
De Repente
Teu Vulto
Um Bom Poema
Invento
Anfíbios
Foi No Mês Que Vem
O Velho León E Natália Em Coyoacán
Profissão De Febre
Tierra
Sujeito Indireto
Estrela, Estrela
A Ilusão Da Casa
Astronauta Lírico
Amar Você
Loucos De Cara
Não É Céu
Joquim
Caricatura