segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Chico Buarque - Construção [1971]


Um dos maiores compositores do Brasil lançou uma obra-prima já no seu quinto álbum. O ano era 1971, e ali, Chico Buarque de Hollanda saía de uma conturbada briga com a censura ditatorial, que havia banido das lojas a bolachinha "Apesar de Você", um singelo samba de esperança, a qual foi rotulada como "perigosa" pela ditadura, que varreu os compactos depois de uma expressiva vendagem de mais de 100 mil cópias. De certa forma, em "Apesar de Você" Chico mostrava sua habilidade para gravar canções com forte teor político em um período conturbado do Brasil.


O contato com a censura mudou o pensamento de cômpor de Chico, saindo da bossa-nova e dos sambas tradicionais para versos ousados e até mesmo instigantes, utilizando-se de orquestrações e improvisos sonoros que começaram a serem apresentados ao público no álbum Construção (1971). E é justamente a faixa-título que tem o principal destaque em um espetacular álbum desde seu início até o fim.


A canção narra a história de um operário da construção civil brasileira sendo vista por alguém que conta cada passo do operário de forma quase que agonizante, tentando buscar uma solução para o que ele sabe que vai ocorrer com o pobre operário, e que pode ser interpretada como um brasileiro vendo que o país literalmente está afundando, começando apenas com o violão, trazendo a voz de Chico e o acompanhamento feito pelo tamborim, baixo e percussão. Enquanto vai narrando a história do trabalhador brasileiro, vão surgindo instrumentos, como o agogô, violino, até o personagem "morrer na contra-mão atrapalhando o tráfego".

A partir de então, surgem metais e cordas, que dão um tom ainda mais dramático para a repetição da história, que agora de forma totalmente genial vai reformulando a letra inicial com as mesmas palavras, de uma forma incrivelmente perfeita e lúcida.

Os metais e cordas ganham peso junto com a percussão e as vozes do grupo MPB-4, que auxiliam na dramaticidade da canção. Cuícas, agogô, treme-terra e cowbell se fazem presentes, e Chico desconstrói a história novamente, levando ao arrepiante encerramento, onde as intervenções dos metais e das cordas são fantásticas, encerrando a canção de maneira emocionante e com o tom de protesto e raiva pela morte do operário.

Chico Buarque

Além do maravilhoso arranjo e do espetacular andamento sonoro de "Construção", a sua letra é uma das mais geniais e incríveis que Chico já fez. Dentro da história construída, recebemos as informações de um legítimo trabalhador brasileiro, que deixa mulher e filhos para fazer o seu papel de máquina de um sistema capitalista, onde a luta pelo lucro e pela eficiência vem à frente da estabilidade e da compreensão de que o trabalhador é um ser humano.

Frases como "Beijou sua mulher como se fosse a última", "Subiu a construção como se fosse máquina", "Ergueu no patamar quatro paredes sólidas", "Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe" somam-se a descontrução das mesmas em "Beijou sua mulher como se fosse a única", "Subiu a construção como se fosse sólido", "Ergueu no patamar quatro paredes flácidas", "Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo", expressando a dura realidade do operário que prestava serviço para esse tipo de emprego, seguindo cada passo de forma metódica e precisa, sem perder tempo e com a finalidade de alcançar o objetivo rapidamente.

O mais impressionante é justamente o jogo das palavras, sempre terminando em uma proparoxítona e que em nenhum momento altera o sentido geral da canção. Para encerrar as estrofes, ficam as frases mais fortes e raivosas, que é quando o personagem morre, e mesmo tendo sido um trabalhador árduo levantando paredes e abandonando a família para fazer seu serviço, é tratado de forma indiferente pelas demais pessoas, como apenas mais um medíocre trabalhador que "se acabou no chão feito um pacote flácido", "morreu na contra-mão atrapalhando o tráfego", ou ainda "se acabou no chão feito um pacote tímido" e "morreu na contra-mão atrapalhando o público e finalmente "se acabou no chão como um pacote bêbado" e "morreu na contra-mão atrapalhando o sábado".

Precisa-se ressaltar que a morte de operários na construção civil era uma constante no Brasil do final dos anos 60 e início dos anos 70, principalmente pelas péssimas condições de trabalho e pelo rápido crescimento das grandes cidades brasileiras.

Chico em 1971
A canção encerra com as frases fortes de outro petardo de Chico na ditadura, "Deus lhe Pague", com as raivosas palavras "por esse pão pra comer por esse chão pra dormir ...".

A obra de Chico foi durante toda a década de 70 marcada pela perseguição da censura contra ele. Como afirmou em uma entrevista em 1996, Chico retratava nas letras a revolta que sentia pela opressão causada pela ditadura, e por várias vezes precisou dar depoimentos para explicar o que estava escrevendo.

Chico com a camisa do colorado mais amado do Brasil
O LP Construção foi eleito em uma lista da Rolling Stone brasileira como o terceiro melhor disco brasileiro de todos os tempos, e também está presente no livro 1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer. Além da faixa-título, trás outros grandes clássicos como a anti-exílio "Samba de Orly", o medo da esposa de um homem contra a ditadura em "Cotidiano" e a própria "Deus lhe Pague", talvez a música de protesto mais forte que já tenha passado nos sulcos vinílicos brasileiros.

Mas "Construção" é a obra que merece ser ouvida, re-ouvida e discutida por todos os admiradores de música e literatura, principalmente pela sua poesia e pela construção da letra em si. Sem sombra de dúvida, uma das canções essenciais da música brasileira.

2 comentários:

  1. O disco "Construção" realmente é um dos melhores que existem, tanto pela qualidade das canções como pelo momento histórico que sempre representará, na voz do nosso expoente maior Chico Buarque de Hollanda!
    Outro excelente disco, também digno de nota mas muito esquecido, é o disco anterior, "Chico Buarque de Hollanda Nº 4". Nesse disco já há uma grande vertente crítica, embora predomine o amor e o lirismo de canções como "Nicanor", "Pois é" e "Mulher, Vou Dizer Quanto Te Amo", canções essas também realmente lindas!
    A esses arroubos de lirismo e romantismo veio somar-se o disco "Construção", um disco mais sólido, mais cortante, com também lindas canções como "Deus Lhe Pague", "Cotidiano", "Construção" (talvez a mais bela canção já feita de todos os tempos!), "Samba de Orly". Essas canções evocam uma realidade bem dura, fazendo um contraponto ao disco anterior, cujas canções eram mais românticas. Mas, do mesmo jeito que "Chico Buarque de Hollanda Nº 4" tinha canções críticas como "Agora Falando Sério" e "Cara a Cara", o disco "Construção" também tem duas lindas canções românticas: "Olha Maria" e "Valsinha".
    Por isso digo sempre que esses dois discos, um de 1970 e o outro de 1971, são inseparáveis, são o contraponto um do outro, apresentando características antagônicas e simultaneamente tão similares. O disco "Construção" supera o outro e talvez seja o melhor disco de Chico Buarque, talvez porque é difícil dizer qual o melhor álbum desse grande compositor. Mas o anterior, na minha opinião, fincou as bases pra que surgisse "Construção", e jamais deverá ser esquecido.
    Tanto "Chico Buarque de Hollanda Nº 4" quanto "Construção" são discos da mais alta categoria e merecem figurar entre os melhores discos que já foram concebidos no mundo (pra mim são os melhores mesmo!)! O que um deixa de ter o outro complementa, e vice-versa! Duas pérolas para nenhum amante da boa MPB botar defeito! Que Deus possa dar ainda muitos anos de vida ao nosso maior mito musical, mito ainda vivo, que isso seja frisado, o nosso grande Chico Buarque, músico, poeta e expoente musical que jamais será esquecido!

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  2. Nobre anônimo, muito obrigado pelo seu comentário. Chico Buarque No 4 é um álbum fantástico, e concordo com você sobre a impossivel separação entre ele e construção. Na realidade, o período entre 1969 e 1975 na carreira de Chico Buarque é repleto de discos que se complementam, e fundamentais em qualquer prateleira que se dedique à boa música. Mais uma vez, obrigado por sua visita e por seu comentário

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