"Rita Lee foi passear
75 anos, descansar talvez
Em um dia azul, e infeliz
Suas mãos estão frias, nossas vidas mais vazias
Tanto amor foi dado
Que fez e faz muita gente feliz
Nos fez sonhar".
Mas é difícil que Rita venha a descansar no paraíso. Ao encontrar Elis Regina, certamente irá abrir um grande sorriso chamando a Doce Pimenta para fazer coreografias desajeitadas, e gargalhar muito, diando aquela gostosa gengiva saliente da gauchinha. Com Gal, sentará num banquinho, puxará uma viola e cantará uma modinha comentando sobre as travessuras e delícias de estar no ato Roberto de Carvalho. Com Rogério Duprat, irá abrir um vinho para relembrar dos tempos de Tropicalimos, de luta contra a ditadura, e por que não, de se vestir de noiva grávida em um festival. E quando encontrar quem manda na porra toda, certamente irá dizer: "É cara, sempre soube que você não era uma careta de barbas brancas". É, Rita não vai descansar no paraíso, pelo contrário, irá fazer lá o que fez aqui, agitar e, com certeza, provocar uma revolução.
Desnecessário aqui fazer uma retrospectiva sobre a carreira de Rita Lee Jones. Mutantes, Cilibrinas do Éden, Tutti Frutti, a parceria com Roberto de Carvalho, a turnê Em Bossa Em Roll (primeira show acústico antes mesmo do acústico MTV existir), todo o pioneirismo em vários pontos, a luta contra o alcoolismo e depois, o câncer. Isso faz parte de uma Rita que o Brasil (e por que não o mundo) admira e venerará eternamente. Mas Rita foi mais. Foi uma revolucionária, anos à frente do seu tempo, que colocou o feminismo em voga sem jamais ter sido taxada de "feminazi". Falou sobre sexo como nenhuma mulher tinha feito antes, trazendo aquela "sacanagenzinha sem ser putaria" como ela mesma dizia, que provocou a ditadura militar e fez muitas mulheres poderem se libertar da opressão machista de aceitar apenas ser um objeto de seu marido, mas ter o direito de sentir prazer.
Ela cantou incrivelmente a la Janis Joplin como poucas mulheres ousaram cantar. Trouxe ao Brasil o uso do theremim, instrumento tão exótico quanto exótica eram suas transformações camaleônicas. Criou baladas românticas que marcaram época, embalaram (e embalam) romances e separações todos os dias. Mostrou ao mundo que uma mulher é artista com o mesmo talento que um homem, "sem ter culhões", como dizia, e encarando isso com uma soberania inatingivel. Não à toa, virou musa e referência para o surgimento de nomes como Marisa Monte, Adriana Calcanhoto, Marina Lima, e tantas outras artistas mulheres que saíram das prisões que o rock exclusivamente masculino acabava fincando como uma pedra incapaz de ser mexida.
Rita não foi uma pessoa perfeita, teve vários problemas pessoais e com outros artistas, principalmente na sua relaçaõ com os ex-Mutantes Arnaldo e Sergio, ou com o ex-Tutti Frutti Luis Carlini, com a grande desafata, a ex-empresária Mônica Lisboa, travou batalhas enormes contras as drogas, legais e ilegais, mas isso não é nada perto da grandiosidade e revolucionaridade que Rita fez para a música nacional. Foi uma das primeiras a defender a natureza, a fazer obras dedicadas exclusivamte para crianças, fazia trabalhos sociais fantásticos sem querer midia. Embalou gerações com inúmeros sucessos que participaram de divers novelas globais (inclusive foi atriz em algumas delas), fazendo um país inteiro cantar e se unir em torno dessas canções.
E fez parcerias com muita gente, mas muita gente mesmo. Falaríamos horas aqui sobre como ela gravou com as citadas Elis e Gal, com Gilberto Gil, Erasmo Carlos, Titãs, Raimundos, Lulu Santos, e tantos outros. Reverenciada por Caetano Veloso na incrível "Sampa", venerada por Ney Matogrosso na mais perfeita interpretação de "Balada do Louco", aclamada por Cássa Eller na versão fenomenal de "Luz del Fuego", Rita teve a incrível capacidade de inclusive ser convidada para dividir os vocais com nada mais nada menos que João Gilberto, um dos artistas mas ímpares e incapazes de dividir seu espaço com alguém, em um especial que o cantor fez para a Rede Globo em 1984. Além disso, as letras de Rita são atemporais, e estimulam cada vez mais jovens mulheres a serem independentes e além do caretismo de ser apenas uma "mulherzinha dona de casa que embalava filhos e espera o marido vir do trabalho com a janta pronta", como declarou certa vez.
Tive a honra de assistir a Rita em Porto Alegre no ano de 2005, em um show com Zélia Duncan e Wanderléa. Rita já tinha se tornado minha ídola haviam uns dez anos, quando na casa de um amigo do meu irmão, Micael Machado, encontrei uma fita com o dizer Mutantes. Aquela fita tinha as músicas da famosa banda da Rita Lee, a qual conhecia desde a decada de 80 (afinal, quem nunca ouviu "Bwana Bwana" ou "Livre Outra Vez" naquela época?). Peguei a fita, levei para a casa, e ao escutar "Meu refrigerador Não Funciona", para mim a melhor interpretação vocal da carreira de Rita, começou uma paixão ardente pela banda (e crushiana por Rita), a qual desenvolveu-se ao longo dos anos. Não é à toa que a sigla MUT está em meu e-mail pessoal.
Lembro daquele show no pequeno Salão de Atos da PUC como se fosse hoje. Quando fui comprar o ingresso, o assento que havia restado era justamente atrás da mesa de som. No dia do show, perguntei a uma assistente se não poderia sentar mais a frente, e sim, haviam espaços reservados para as pessoas que não conseguiam ver o espetáculo na 13 fila (eu estava na 28). Eu ia ver a Rita mais de perto. Na terceira música, fui para a frente do palco, de onde assisti quase todo o resto do show sentado no chão, mas com a Rita na minha frente.
Eis que o show acaba, e, como todo grande show, há um bis. Rita começou a tocar "Bwana Bwana", enquanto o público avançou em direção ao palco. Neste instante, Rita passou e cumprimentou-me, apertando a mão. Porém, ao fazer isso, puxei ela e disse que admirava-a muito, no que ela me retribuiu com um beijo no rosto. Após o término de "Bwana", Rita pergunta: "O que vocês querem ouvir?". Eu e um amigo que havia conhecido no dia que comprei o ingresso gritamos: "Barata Tonta".
E não é que a eterna Mutante vem em nossa direção, se agachou em nossa frente e deu o microfone para ambos cantarem!!! Pois é, eu estava ali, cantando alucinadamente "o que que há, é só o amor" e todo o resto da canação, junto com o amigo, com a Rita e com Roberto de Carvalho tentando relembrar os acordes. Foi incrível. Rita entregou a camisa do Sport Club Internacional, que usava naquele momento, ao amigo que nunca mais vi, mas que lembro sair em êxtase como se fosse um troféu aquela camisa, e me puxou para perto do palco, agradecendo pelo momento e me dando um selinho como os que deu em Hebe Camargo. Caraca, me arrepio de lembrar que ela deu o selinho e na sequência, o Roberto de Carvalho apareceu, dizendo "você realmente é fã da Rita" me entregando a palheta dele em mãos.
Santa Rita de Sampa não deixará saudades, por que ela deixou um legado de canções, momentos, entrevistas e histórias marcantes. O dia é triste por que o corpo de Rita finalmente descansou depois de uma doença terrível, que ela corajosamente (como sempre foi em sua vida) lutou e não se abdicou de contar ao mundo o que sofreu, sem ser piegas ou querendo compaixão, mas para mostrar à todos que é necessário lutar pelo que se quer. Hoje, Ovelha Negra, é um dia mais que perfeito para não fazer nada, só para deitar, rolar e ouvir você.
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