sexta-feira, 4 de outubro de 2024

45 Anos de A Peleja Do Diabo Com O Dono Do Céu




Quando conheci Zé Ramalho, lá nos idos de 1998, era por conta do extremo sucesso que o álbum Antologia Acústica estava fazendo. Lançado em 1997, o disco duplo colocava novamente o nome do bardo paraibando em voga no cenário nacional, após um longo período de ostracismo causado por uma acusação de plágio (ocorrida em 1982 por conta da faixa Força Verde, lançada no álbum homônimo).

Claro que já tinha ouvido faixas como "Mistérios da Meia-Noite", "Admirável Gado Novo" e "Entre a Serpente e a Estrela", já que as mesmas fizeram um estrondoso sucesso nas novelas globais Roque Santeiro, Rei do Gado e Pedra Sobre Pedra, respectivamente, mas nunca tinha parado para ouvir o cara. Foi por conta de um amigo meu que tinha uma pseudo-banda, que me apresentou o CD, que acabei conhecendo mais a obra do músico, e como consequência, inserindo em nosso repertório duas músicas do rapaz, "Kriptonia" e a versão para "Knockin' On Heaven's Door" (a tenebrosa "Batendo Na Porta Do Céu "), que estava no CD. Mas claro, admirei outras músicas do álbum, como "Frevo Mulher", "Garoto De Aluguel" e "Beira-Mar".

Eis que anos depois, já conhecedor (e admirador) de Paebirú, a fabulosa estreia de Zé ao lado de Lula Côrtes, encontrei em um sebo o álbum Zé Ramalho, de 1978, e acabei graças a internet, mergulhando na fase esóterica do músico, que compreende o período entre o citado Zé Ramalho, detentor de clássicos do porte de "Avôhai" e "Chão De Giz", até o magistral Orquídea Negra (1983), com as belíssimas "Taxi Lunar" e "Kriptônia",  e que para mim tem seu zênite exatamente no segundo dos cinco discos lançados nesse período, A Peleja Do Diabo Com O Dono Do Céu (a saber, os outros dois álbuns dessa fase são A Terceira Lâmina, de 1980, e o já citado Força Verde). Temos aqui um caldeirão em ebulição, onde os temperos nordestinos incrementam-se ao rock europeu, ao blues americano e até a música moura, com a psicodelia Paebirúana que Zé criou anos antes, em um disco único. Fora que os músicos acompanhantes do paraibano são de um calibre mais que raro. 

O album começa com o violão e as vocalizações da faixa-título, espancando o ouvinte com a frase "Ói, com tanto dinheiro girando no mundo quem tem pede muito, quem não tem pede mais". Um belo baião que traz fortes críticas políticas, e com destaque para a sanfona de Severo da Silva, e o bonito arranjo de metais, composto por Zé Bodega (saxofone), Edmundo Maciel (trombone), Evaldo e Márcio Montarroyos (trompete). Na sequência vem o clássico "Admirável Gado Novo", outra canção com forte teor político, com um lindíssimo arranjo de cordas a cargo de Paulo Machado, mas que destaco, além da canção que virou um símbolo para toda uma geração na década de 90, através da novela O Rei do Gado, a fantástica linha de baixo de Chico Julien. "E ô ô vida de gado, povo marcado, povo feliz", é uma das grandes frases de uma letra ainda muito atual. 

A terceira faixa é um tributo a Geraldo Vandré. "Falo da vida do povo, nada de velho ou de novo...” abre a letra de "Falas do Povo", uma linda balada que remete musicalmente a "Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores", com seus dois acordes de violões, e o violino de um endiabrado Jorge Mautner serpenteando uma canção lindíssima, com uma interpretação fabulosa de Zé Ramalho, ao nível da fabulosa letra, e com destaque também para o órgão hammond de Paulo Machado. O clássico "Beira-Mar" abre espaço para a tríade que segue com "Beira-Mar (Capítulo 2)" (de Força Verde) e "Beira-Mar (Capítulo Final)" (de Eu Sou Todos Nós, de 1998), com o seu violão-folk (a cargo de Geraldo Azevedo), mais uma letra emocionante assim como fantástico arranjo de cordas de Paulo Machado. 

O lado A encerra-se com a arrepiante "Garoto De Aluguel (Taxi Boy)". Para quem conhece apenas a versão de 20 Anos Acústico, isso é aqui é o suprassumo da qualidade musical de Zé Ramalho. Um arranjo orquestral fabuloso, comandado por Paulo Machado (que também está ao piano) trazendo a nata de alguns dos principais nomes das cordas no Brasil: Alceu De Almeida Reis, Iberê Gomes Grosso, Zamith, Márcio Eymard (violoncelo), Arlindo Penteado, Frederick Stephany, Nathercia, Macedo (violas); Alfredo Vidal, Alvaro Vetero, Guetta, Arthur Dove, Carlos Hack, Lana, Marcello Pompeu, Pissarenko, Virgílio Arraes Filho, Walter Hack (violinos). Quem nunca ouviu falar nesse time é por que ou nunca pegou um disco de músicos da MPB dos anos 70 e 80 para ler os créditos, ou reamente detesta música brasileira. Voltando para a canção em si, a combinação da tocante melodia dos violinos, junto das notas preciosas dos violoncelos, e de uma interpretação simplesmente desmoronate de Zé Ramalho, talvez a melhor de sua carreira, farão até seus vizinhos preconceituosos contra os nordestinos segurar as lágrimas, mas não conseguirem evitar a emoção que a dor desta faixa exala pelos sulcos do vinil em cada segundo. Que música! Que interpretação! Que lindeza!

Depois de secar os olhos, é a vez de virar o disco e mandar a agulha rolar no lado B, através de "Pelo Vinho E Pelo Pão", e daí você certamente irá soltar aquele "puta merda" que ficou engasgado durante "Garoto de Aluguel". Afinal, um lindo cavaquinho, a cargo simplesmente do mago Waldir Silva, um dos maiores nomes do instrumento no Brasil, traz esse choro-canção, no qual Zé divide a voz junto de sua amada esposa Amelinha. As cordas, aqui novamente arranjadas por Paulo Machado, e o violão de Dino 7 Cordas, outro fera no seu instrumento, dão mais dramaticidade para outra faixa apavorantemente linda. Voltamos ao baião com "Mote das Amplidões", onde os sintetizadores (Paulo Machado novamente) e a voz com efeitos de Zé Ramalho certamente nos colocam nas faixas de Paebirú. 

Uma homenagem à João Pessoa, capital da Paraíba, aparece na sensacional "Jardim das Acácias", começando com o ritmo do violão, trazendo o solo da guitarra e o magistral arranjo de cordas, para levar ao duelo vocal/guitarra e a ótima letra, cerceada pelos solos individuais da inconfundível guitarra de Pepeu Gomes. Zé então surge tocando todos os instrumentos da instrumental "Agônico", uma faixa com um complexo dedilhado de violões, lembrando um duelo nordestino, porém com um ritmo mais próximo ao chamamé missioneiro. Outra faixa muito surpreendente. 

A Peleja Do Diabo Com O Dono Do Céu encerra-se com "Frevo Mulher", a declaração de amor de Zé para Amelinha, composta por ele em 1979, no Hotel Plaza do Rio de Janeiro, enquanto observava a então revelação Amelinha ser cobiçada por inúmeros compositores que queriam a voz da jovem cantora em suas canções. Mas foi com essa faixa que Zé conquistou não apenas a voz, mas o coração de Amelinha, tanto que os dois se casaram e tiveram dois filhos. Sobre a canção em si, é outra que para quem só conhece a versão de 20 Anos Acústico irá se surpreender. Afinal, a faixa realmente é um frevo, simples assim, onde os metais fazem todo o cenário musical para Zé desfilar sua poesia-tributo à Amelinha. O ritmo avassalador da percussão, marcada pelos pratos de Jorge Batista e a tuba de Zênio de Alencar, além de um naipe de metais formado por Hélio Marinho e Zé Bodega (saxofones), Edmundo Maciel, Manoel Araújo e Sylvio Barbosa (trombones) e Evaldo, Formiga, Hamilton e Márcio Montarroyos (trompetes), faz você sair dançando pela casa, e soltando mais um "puta que pariu!" pela grandiosidade da obra que está encerrada. 

A capa do álbum traz Zé Ramalho empunhando um violão e interpretando o "dono do Céu", enquanto uma mulher vampiresca (Xuxa Lopes) o espreita e seu rival José Mojica Marins o ameaça. A fotografia foi tirada num casarão abandonado em Santa Teresa, no Rio de Janeiro e foi dirigida por Ivan Cardoso. No resto do encarte, aparecem também Satã (produtor e guarda-costas de José Mojica), Mônica Schmidt e Hélio Oiticica. Destaca-se também o encarte com belas ilustrações de Seth por Álvaro Marins e símbolos de Raul Córdula.

Zé Ramalho infelizmente abandonou o esoterismo, fazendo três álbuns no mínimo questionáveis na segunda metade dos anos 80, onde chegou inclusive a flertar com eletrônicos no tinhoso Décimas de Um Cantador, e só conseguiu se reerguer em 1996, por conta de Grande Encontro (ao lado de Elba Ramalho e Geraldo Azevedo), que apresentaram as canções do músico para toda uma nova geração de fãs, assim como 20 Anos Acústico. Porém, esse período de sua segunda fase musical está aí à disposição para ser (re)descoberto tanto por novos quanto por velhos fãs do paraibano, que completa hoje 75 anos. Certeza que, se A Peleja do Diabo Com O Dono Do Céu tivesse sido lançado por um músico britânico, estaria encabeçando as listas de Melhores discos de todos os tempos mundo a fora. Mas não foi, pois afinal, somente um grande nome brasileiro poderia fazer algo tão grandioso e poderoso como esse álbum. 

Track list

1. A Peleja Do Diabo Com O Dono Do Céu

2. Admirável Gado Novo

3. Falas Do Povo

4. Beira-Mar

5. Garoto De Aluguel (Taxi Boy)

6. Pelo Vinho E Pelo Pão

7. Mote Das Amplidões

8. Jardim Das Acácias

9.  Agônico

10. Frevo Mulher


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