segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Jethro Tull - Thick as a Brick Tour




A história da música é contada através de grandes turnês, grandes shows e grandes álbuns. É inegável, por exemplo, que a união destes três fatores tornam os mesmos ainda mais atraentes, tendo em vista a mais recente tour do AC/DC, contando com um excelente álbum (Black Ice), shows extremamente grandes em estádios de futebol lotados, passando por inúmeras cidades ao redor do mundo, o que chamou a atenção até de um desconhecido da banda.

Porém, na década de 70 as grandes turnês não eram tão simples de serem vistas, bem como os grandes shows ocorriam praticamente em festivais, como
Isle of Wight, Altamont e, claro, Woodstock. As bandas denominadas progressivas acabaram sendo as primeiras a inovar em termos de show, como a palavra quer dizer, mostrando telões gigantes (Pink Floyd), monstros enormes (Yes, Rick Wakeman e o próprio Floyd) e a utilização de uma moderna aparelhagem de luz (Genesis e novamente o Pink Floyd).

Um dos ícones do progressivo fazia menos estardalhaço visual que seus companheiros, mas também representou uma inovação para a história dos shows. Esse ícone foi o Jethro Tull. A obra citada é
Thick as a Brick, de 1972, uma das mais geniais peças escritas em toda a história da música.

Durante a turnê do álbum, entre 1972 e 1973, o Jethro Tull mostrou ao mundo que não era necessário um cenário enorme ou inúmeras luzes e lasers coloridos para atrair a atenção do público, mas sim investir no álbum que estavam lançando, decifrando para a plateia o que estava escondido nos sulcos daquela obra.

Muito do que está dentro do LP demorou tempos para ser concebido, ainda mais vindo da cabeça inventiva de Ian Anderson, o cantor, flautista, violão, saxofone, líder e mentor do Jethro Tull. Tanto que quando do lançamento da obra muitos acharam que a história sobre o poema do garoto Gerald Bostock era real.

Sem entrar nos detalhes do disco, farei uma breve descrição do mesmo para aqueles que nunca tiveram contato com essa obra prima.
Thick as a Brick é composto somente por uma faixa, a própria "Thick as a Brick", que narra um poema escrito por um garoto de oito anos, o tal Gerald Bostock. Mesmo sendo um menino, Bostock começa a se deparar com diversos fatos que o levam a pensar sobre como é envelhecer, passando das brincadeiras de infância - como pinturas e liga-pontos -, a adolescência - girando em torno da escola, namoro e prática de esportes -, a fase adulta - com casamento, questões de trabalho e viagens - até chegar à velhice e, finalmente, à morte.

Tudo isso está escrito dentro do poema, que foi vencedor de um prêmio numa cidadezinha fictícia chamada St Cleeve. Porém, a capa do jornal da cidade, datada do dia 07 de janeiro de 1972, trazia a manchete de que haveria uma fraude na composição do poema, sendo que a princípio quem teria escrito o mesmo seria uma amiga de Gerald. A controvérsia acaba sendo desvendada, com o próprio Gerald assumindo que a tal amiga ajudou ele no poema, mas aí fica uma nuvem no ar se a tal moça não teria sido quem fez Gerald pensar sobre o assunto, tendo assediado o coitado do menino. Basta pensar no próprio título ("espesso como um tijolo") para se fazer essa ligação com o órgão sexual do garoto.

Enfim, a viagem não para por aí, e se torna ainda mais profunda quando se pega a capa original do LP, a qual vinha em formato de um jornal de verdade (inclusive em papel jornal), contando com 12 páginas onde vemos tudo o que aparece em um jornal tradicional, desde a sessão de esportes e classificados até a sessão de óbitos e nascimentos, passando inclusive pelo próprio poema.

A leitura de todo o jornal (sim, todo o jornal) acaba revelando fatos que passam despercebido no poema. Basicamente, cada página contém exatamente um ponto que não está direto na música, tratando exatamente dessa evolução criança-adulto, mostrando praticamente todos os fatos que nos cercam desde o nascimento até a nossa morte, e que assombraram a cabeça do garoto. Um dos fatos mais hilários é uma resenha sobre o próprio LP, apresentando Ian Anderson como o autor do review e com uma crítica um tanto quanto "especial" para a bolacha.

Enfim, quem tiver a oportunidade pegue a versão original (e que demorou muito para ter algo parecido no formato CD) e delicie-se com esta maravilhosa história.



Mas voltando ao início, Ian Anderson queria trazer ao palco o que as pessoas não compreendiam no álbum. Claro, o LP alcançou a primeira posição dos charts da Billboard nos EUA, mas mesmo assim Anderson sentia que não havia passado a mensagem que queria. Então, auxiliado por seus seguidores da época (Martin Barre - guitarras, Barriemore Barlow - bateria, John Evan - piano e Jeffrey Hammond-Hammond - baixo), resolveu construir a turnê de divulgação do LP.

A inovação começava a partir do set list. Seguindo o que o The Who havia feito anos antes com a turnê de Tommy, Anderson decidiu tocar o álbum inteiro, na íntegra, sem se preocupar com as demais composições que já faziam parte do cotidiano dos fãs do Jethro Tull. Essa ideia acabou amadurecendo, e aos poucos ficou claro que algumas partes eram impossíveis de serem reproduzidas ao vivo. Então Anderson resolveu modificar seus planos, e aceitou incluir outras canções, além de amadurecer a ideia de trazer a capa do álbum para o palco.

Desta forma, surgia a engraçadíssima turnê Thick as a Brick Tour, que passou por países da Europa, Austrália, Canadá e Estados Unidos.


O show começava com diversos coelhos-roadies (no jornal havia também uma história sobre pegadas deixadas em uma floresta, supostamente de um coelho gigante que havia fugido de um laboratório) no palco, andando feito loucos e fazendo gestos para a plateia, ao mesmo tempo em que verificam aparelhos como microfones, afinação da bateria e conexões dos intrumentos. Aos poucos os coelhos começam a sair do palco, restando apenas cinco deles. Finalmente, um deles retira a máscara e a roupa de coelho, revelando o guitarrista Martin Barre, e consequentemente, os demais coelhos revelam o resto da banda.

Assim, Ian Anderson assume o microfone e anuncia para o público que irão tocar uma música do novo álbum, chamada "Thick as a Brick", começando então o riff com seu violão e sendo acompanhado pela banda. A canção prossegue até a primeira parte rápida, quando de repente, um telefone começa a tocar. No canto direito do palco, uma cadeira está disposta, com o telefone sobre a mesma. Anderson atende ao telefone, escuta o mesmo durante alguns segundos e anuncia para a plateia que aquela é uma ligação urgente para Mike Nelson, sendo Mike Nelson um personagem da série de TV americana Sea Hunts, interpretado por Lloyd Bridges.

Essa mensagem era dita para as audiências americanas e australianas, onde dois coelhos usando aparelhos de respiração (imitando o personagem Mike Nelson) surgem no palco, atendem o telefone e saem do palco novamente. Na Inglaterra a mensagem era diferente, pedindo para o senhor que havia deixado um cavalo puro-sangue estacionado na frente do teatro retirar o mesmo do local, já que o cavalo estava sujando a entrada (que é exatamente uma das partes do jornal).

E assim era o show, com muitas intervenções hilárias e grandes sessões instrumentais. O som voltava à tona, com Martin Barre solando e o violão de Anderson trazendo a primeira grande sequência instrumental, com o solo de flauta. A letra é retomada, mantendo a mesma linha da versão original, com o belíssimo solo de Barre, duelando com Anderson e Barlow. Novamente temos a letra, com a sessão de teclados de Evan, que leva a um longo solo de órgão, como os feitos quando Evan entrou na banda, na turnê de Benefit (por exemplo em "By Kind Permission Of", do álbum Living in the Past).


Enquanto o solo de Evan ocorre, uma barraca de crianças é montada no palco, com Barrie e Barlow desaparecendo sob ela. Após alguns minutos, ambos aparecem semi nus, com cara de que fizeram "algo" dentro da barraca, ao mesmo tempo que um gigantesco coelho branco aparece no palco. Barrie e Barlow juntam-se novamente à banda e temos uma longa sessão instrumental, voltando então para a letra da canção.

O som continua, com Anderson solando tal qual o LP, posteriormente acompanhado somente por Jeffrey e Barre e, finalmente, sozinho, onde o improviso é livre, e dependendo da inspiração durava mais de 15 minutos. A base de "Thick As A Brick" voltava, trazendo então o encerramento do lado A, com um breve discurso de Jeffrey, contando como aquela parte da canção será executada: "Ian está fazendo uma sequência rítmica constituída por alternância nos compassos em C menor sustenido 4 e F Major. Este calmo e muito agradável interlúdio precede a entrada de um órgão tocado por John, que em seguida une-se com a guitarra para fornecer uma rica textura de contraritmos percussivos. O poema do jovem Gerald Bostock será novamente cantado pelo Sr Anderson, e depois de dez compassos o guitarrista, o baterista e eu mesmo nos juntamos e aspiramos por uma ansiosa partipação que antecipa a orgásmica sensação que teremos a seguir".

E é isso que temos, ou mais resumidamente, o encerramento do lado A é o que se ouve nessa etapa do show, contando inclusive com barulhos de vento sendo ouvidos através de um toca-fitas colocado no palco.

Todos os integrantes saem do palco ao final da primeira parte da apresentação, menos Evan e Jeffrey, que irão dar sequência a uma engraçadíssima parte do show. Uma voz feminina anuncia: "Agora, vamos assistir ao noticiário das seis, lidos esta noite por Andrew Pardon". Segue-se então a leitura do noticiário, com Jeffrey sendo Pardon. A gozação rola solta, com histórias sobre a fuga de coelhos de laboratório, esportes (narrando sobre a Terceira Guerra Mundial, entre Vietnã, Israel e Egito), noticiário policial e previsão do tempo, todas as notícias sendo lidas como um jornal de rádio e de forma incrivelmente engraçada, com belas interpretações de Jeffrey e Evan. Além disso, homens fantasiados de coelhos e macacos sempre apareciam quando chamados, dando mais humor para a cena.


Dependendo da empolgação do grupo, a versão da canção durava entre 75 e 90 minutos, contando com todas as intervenções do jornal, que eram sempre lidas e apresentadas na mesma sequência (a menos quando citado, nos shows ingleses). Ainda havia espaço para mais uma sequência de piadas sobre a garota vesga, começando a faixa seguinte, "Cross Eyed Mary".


Após "Cross Eyed Mary" uma fita começava a rodar a conversa entre mãe e filha, com a mãe perguntando sobre uma música que a banda costumava tocar, e a filha respondendo que era do LP Stand Up. A mãe lembra de "To Cry You a Song", mas a filha afirma que não, que era "Jeffrey Goes to Leicester Square", e ambas começam a cantar um tema de uma outra canção, com o grupo seguindo as mesmas notas das duas e partindo para o riff da terceira música do show, "A New Day Yesterday", recheada de solos de flauta e órgão, mostrando cada vez mais a importância de Evan.

Após "A New Day Yesterday" mãe e filha voltam, dizendo que estavam enganadas, e que não era aquela canção. O show continua com "Aqualung" e um pequeno intervalo.

Na volta, Anderson conta mais algumas piadas, detonando "Wind Up", com Martin executando o seu solo de quase dez minutos, e "Locomotive Breath", com direito a "Hard-Headed English General", com Evan fazendo um furioso solo de órgão, saltando sobre o palco como um orangotango, e encerrando com os versos finais de "Wind Up".

A banda se despede do público, mas o show não acaba. Passos são ouvidos através das caixas de som ao mesmo tempo em que uma conversa dos músicos indo para os camarins aparece. Barlow pergunta para os outros integrantes se eles acharam que tocaram bem aquela noite, e Anderson responde que a plateia estava bastante ligada no show, quando grita: "Oh céus, está trancado!".

Uma discussão em busca da chave começa, e então é a vez de mais comentários sobre a plateia, como "viram aquela loira gostosa na frente do palco?", enquanto Barlow se tranca no banheiro, sem papel higiênico. Seguindo as discussões, Ian acha que o show não foi legal, e que deveriam voltar ao palco para começar tudo de novo, mas depois se dá conta de que todos já devem ter ido embora, e então finalmente entra no camarim, cantando "They'll be halfway home to bed if they've got any sense".


Para quem se interessou, existem dois bons vídeos na internet que mostram parte da apresentação, como os coelhos, o telefone tocando e algumas piadas. Em termos de bootlegs, o que traz o melhor registro é Welcome to Münsterland, gravado em 08 de março de 1973 na cidade de Münster (Alemanha). Outras boas pedidas são Flute Topia, gravado em 04 de junho de 1972 em Toronto (Canadá), e o raríssimo Bologna, gravado em 19 de março de 1973 na cidade italiana. Todos trazem o show na íntegra, sendo os dois últimos contando com pequenos cortes que não afetam diretamente na compreensão do espetáculo.

A turnê foi um grande sucesso, tanto de público como de crítica. Sensibilizado com a boa repercussão, Ian Anderson decidiu por inovar, e assim criou outra grande obra conceitual, a clássica A Passion Play, em 1973. Inspirando-se na turnê de Thick as a Brick, a banda tocava praticamente todo o álbum na íntegra, além de uma generosa versão de "Thick as a Brick" com quase 20 minutos. Porém, em termos de ambição, a turnê de Thick as a Brick foi muito melhor, sendo um dos pontos altos na carreira do Jethro Tull, inspirando outras bandas de rock progressivo a fazerem o mesmo, como veremos na próxima edição do Baú do Mairon.

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