quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Mutantes Parte I

Voltando da Argentina, me deu uma saudade imensa de nosso rock nacional brasileiro. Dentre todos, disparado o mais importante nome foi a banda formada pelos irmãos Sergio Dias (Serginho, guitarras e vocais) e Arnaldo Baptista (baixo, vocais), juntamente com Rita Lee (vocais, flauta, teremim, percussão).O embrião dos Mutantes estava no grupo O'Seis. Para quem não conhece a história, em São Paulo, meados dos anos 60, o rock and roll era muito cultuado pelos jovens da cidade, os quais tinham acesso a inúmeras bandas, como Beatles, Stones e Elvis Presley. 

Six Sided Rockers


Quem tinha um pouco mais de dinheiro conseguia os vinis e compactos diretamente da Europa, o que era o caso dos três citados acima. Duas bandas se fundiram para formar O'Seis: o Wooden Faces, formado por Arnaldo no baixo, Claudio Baptista na guitarra, Raphael Villardi na guitarra e Luiz Pastura na bateria, cujo nome inicial era The Thunders e cujas músicas basicamente incluíam no repertório The Ventures e Duanne Eddy; e o Teenage Singers, grupo vocal basicamente formado por garotas, composto por Rita Lee, Suely, Jean e Beatrice. Serginho veio depois e, com seis integrantes, Serginho, Arnaldo, Rita, Sueli, Villardi e Pastura, surge a Six Sided Rockers, que em pouco tempo virou O'Seis.
Único registro do grupo O'Seis

Em 1966 a banda lançou seu primeiro e único compacto, que contava com a fantástica "O Suicida" de um lado e "Apocalypse" do outro. A letra de "O Suicida" é uma jóia rara na música brasileira da década de 60. Enquanto a maioria dos artistas cantavam temas relacionados ao amor, "O Suicida" trazia uma letra depressiva, de um paulistano que resolve se suicidar no Viaduto do Chá por causa de sua consiência pesada:


Cismei outro dia e quis me suicidar
Fui me atirar do Viaduto do Chá
A turma que passava não queria deixar
A vida pro meu lado estava má


Consciência pesada me mandava pular
Resolvi, então saltei

O carro que passava eu achatei
Minha cabeça se esfacelou
E o chofer lá de dentro gritou

O viaduto quebrou
Ou alguém louco ficou

Em cima do capô o meu corpo jazia
E pela minha face o sangue escorria
Chamaram o meu pai mas veio a minha tia
Levar pro necrotério ela queria
Pois eu já não vivia

Mais um inútil morria

No dia seguinte o enterro saía
Pra Quarta Parada ele se dirigia

Uma flor negra o meu caixão cobria
O túmulo frio a terra cobriu

Foi mais um que partiu
Fui enterrado com a camisa do meu tio

Era meia noite quando eu quis sair
A cova era apertada para eu dormir
Eu era um fantasma e quis conversar
Com alguém que estava sentado a fumar
Era uma caveira vulgar
Não pode nem me assustar



A letra de "Apocalipse" trata de outro tema forte, a loucura, nesse caso de um cidadão que destrói o mundo ao seu redor e depois arrepende-se por ver que ficou sozinho.

Mesmo com o tom macabro, um certo deboche está contido nas letras, o que veio a se tornar mais forte com a saída de Mogguy (que substituíra Suely), Villardi e Pastura. Na verdade, o que ocorreu foi o seguinte: o empresário do O'Seis era um cidadão chamado Toninho Peticov. Porém, Arnaldo ficou muito insatisfeito com a produção do mesmo, e já havia feito um contato com Asdrúbal Galvão. Então Arnaldo, Rita e Serginho assinaram um contrato com Galvão, excluindo Mogguy e Pastura. Ao saber da decisão dos demais integrantes, Villardi pulou fora e disse não confiar em Galvão, até porque ele era namorado de Mogguy. 



Enfim, meses depois nascia Os Mutantes. Galvão acabou sendo um dos responsáveis pelo nome da banda. Ele havia sugerido dois: Os Bruxos e Os Mutantes. Ronnie Von colocou o nome de Os Bruxos em sua banda, ficando então Os Mutantes para o jovem trio. Ronnie também foi o responsável pelo batizado do grupo na parte de gravação, que viria a ser no álbum "Ronnie Von No 3", além de tornar a banda uma das atrações de seu programa de TV, "O Pequeno Mundo de Ronnie Von", da Rede Record.  


Em 1967 o diretor da emissora resolve desmantelar a programação do canal, o que fez com que Os Mutantes saissem de lá, voltando sua participação para os bons e velhos festivais que ocorriam na época. Em um deles conhecem o maestro Rogério Duprat, além dos Baianos Caetano Veloso e Gilberto Gil. 


A proximidade foi imediata, e Os Mutantes viraram a banda de apoio de Gil, interpretando várias canções em diferentes eventos, mas a imagem mais famosa seria a de Serginho empunhando uma guitarra elétrica no III Festival da Música Popular Brasileira durante a canção "Domingo No Parque", deixando a platéia e o júri furiosos com tamanha atitude (que coisa ridícula, fala sério). A questão dos festivais falarei com mais detalhes na segunda parte.

Primeiro registro vinílico a contar com os Mutantes

Em 1968 a banda participa de quatro faixas do álbum A Banda Tropicalista de Duprat, "Canção Pra Inglês Ver/Chiquita Bacana", "The Rain, The Park and The Other Things", "Cinderella-Rockfella" e "Lady Madonna", com destaque especial para "Lady Madonna", já que a mesma ficou muito similar a versão dos Beatles; e também no álbum "Tropicália ou Panis Et Circensis", nas faixas "Panis Et Circensis", "Parque Industrial" e "Hino Ao Senhor do Bonfim".

O essencial primeiro álbum do grupo

Nesse mesmo ano lançam seu primeiro álbum, "Os Mutantes". Na época o disco não fez muito sucesso, mas hoje em dia é considerado pela crítica especializada como um dos 50 discos mais inovadores da história, segundo a revista MOJO, ficando na frente de nomes como Beatles, Pink Floyd e Frank Zappa. Além disso, foi eleito pela revista Showbizz como um dos 10 melhores álbuns do rock nacional de todos os tempos, ficando na quinta colocação. 


O disco abre com a clássica "Panis Et Circensis". Nem preciso falar muito dessa canção, já que, assim como "Ando Meio Desligado", "Panis ..." se tornou um hino para os fãs de Mutantes. O disco segue com outro clássico, a versão para "A Minha Menina" de Jorge Ben, que trás um balanço similar ao de Jorge, mas claro, com as guitarras totalmente distorcidas de Serginho. Detalhe interessante que sempre é importante lembrar: tanto a guitarra de Serginho quanto os efeitos usados na mesma foram construídos por seu irmão, Cláudio. 


"O Relógio" é a primeira composição do trio, mas que não mostra ainda toda a genialidade do grupo. "Adeus Maria Fulô", de Sivuca, mostra como Os Mutantes conseguiam trabalhar diferentes ritmos musicais de forma simples, nesse caso, um baião bem nordestino. "Baby", de Caetano, vem em um clima bem tranquilo, encerrando o lado A com a faixa "Senhor F.", outra composição do grupo, que lembra bastante o tempo de quando eram O'Seis. 


O lado B começa com mais um clássico, "Bat Macumba", a qual se desenvolve somente na levada do baixo e na expressão Bat Macumba sendo suprimida (Bat Macumba, Bat Macum, Bat Ma, Bat, Ba) e depois expandida novamente (Ba, Bat, Bat Ma, Bat Macum, Bat Macumba). Coisas da Tropicália. 


A linda "Le Premier Bonheur du Jour" trás os belos vocais de Rita, mas o destaque maior é Rita fazendo um lindo solo de flauta. Outro destaque importante nessa música é a utilização de um mata-mosquito (aquele que faz o barulho tipo schuift). Aliás, os Mutantes inventavam seus próprios instrumentos. "Trem Fantasma", composta por Caetano (aliás, das onze músicas do disco, quatro foram compostas ou por Caetano ou por Gil, mostrando como eles influenciaram Os Mutantes) é uma das melhores do álbum. Com um ritmo tal qual o andamento de um trem, a música narra a história de um casal de namorados em sua primeira experiência em tal brinquedo. 


Por fim, a pequena estrofe "Tempo No Tempo" (que viria aparecer anos depois novamente no meio da música "Mutantes e Seus Cometas no País dos Bauretz") de John Philips, e a quase instrumental "Ave Gengis Khan" encerram o disco de forma primordial, calcando os pilares de uma carreira que começava muito bem, com um som fortemente influenciado por Beatles e Stones. Além disso, a participação de Duprat foi essencial para que os garotos adquirissem a liberdade que os tornaria mundialmente famosos na década de 90.

Fantástico segundo LP dos Mutantes


A banda ainda participou de faixas dos álbuns de Gil e Caetano antes de, em 1969, lançar seu segundo disco. Agora retirando o artigo "Os" do nome, "Mutantes" chegou as lojas escandalizando a sociedade paulista e brasileira, já que Rita aparece na capa do disco vestida de noiva, mas com um detalhe: uma noiva grávida (forte para os padrões culturais da época). Na contra-capa, temos os integrantes fantasiados de ETs, sendo que Rita esta com seis dedos. 


Na parte musical, o disco abre com a vinheta de Duprat para "Dom Quixote". O sarcasmo das letras do trio começava a surgir, e o deboche aumentava ainda mais. "Não Vá se Perder por Aí" já mostra a evolução que a banda tinha, saindo um pouco da linha Beatles e entrando um pouco na psicodelia. Detalhe: os três já começavam a usar mais e mais drogas pesadas, principalmente LSD. A bela "Dia 36" trás um vocal agonizante de Arnaldo, e uma nova maneira de se tocar contra-baixo, a lá Jimmy Page, ou seja, usando um arco de violino. 


"2001" foi composta juntamente com Tom Zé, e é outro clássico da banda. Muita gente diz que os caipiras que aparecem em alguns momentos da faixa são os integrantes do grupo, mas na verdade ninguém se lembra o nome dos cidadãos que apareceram no estúdio para fazer tal vinheta. Além disso, essa é uma das poucas músicas em que podemos ouvir Rita usando o teremim. O jingle para a Shell, "Algo Mais", e a bela "Fuga No 2 dos Mutantes" encerram o lado A tão bem quanto começou.

O lado B começa com a pérola que ficou famosa na voz de Celly Campelo, "Banho de Lua", em uma versão bem mais rock e sensual. "Rita Lee" tornou-se um símbolo do deboche dos Mutantes, já que nela o alvo são eles mesmos. "Mágica" trás citações de Stones. "Qualquer Bobagem", e os vocais gagos de Arnaldo, trazem um Arnaldo tocando, e muito, seu órgão Hammond, o que viria a influenciar na mudança de formação da banda. Por fim, mais uma pérola, "Caminhante Noturno", com seus arranjos instrumentais perfeitos e ótima harmonização vocal. 



A contribuição de Duprat nesse álbum diminuiu consideravelmente, mas o que não diminuiu o trabalho dos garotos, pelo contrário, eles já estavam prontos para galgar horizontes maiores. Segue, caminhante, antes da noite morrer ...

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