Por Mairon Machado (Publicado originalmente no blog Consultoria do Rock)
É muito fácil criticar sem conhecimento de causa, e depois que conhece o assunto, pedir desculpas, assumir que está errado e fingir que nada mudou, completamente ignorante do mal que possa ter atingido ou causado com tamanha crítica. O mundo da música é cercado de injustiças, e a sessão "Discos que Parece que Só Eu Gosto" apresenta de certa forma, um ponto de vista pessoal de alguns dos nossos consultores para um determinado álbum que a maioria das pessoas não gostam, o que não significa que por tal consultor gostar do álbum ele é injustiçado.
Gerson Conrad, Ney Matogrosso e João Ricardo |
Mas, com todo o perdão, o álbum a ser tratado hoje encaixa-se no termo injustiçado. Afinal, quando falamos em Secos & Molhados, lembramos apenas de Ney Matogrosso fantasiado com plumas, penas e paêtes, e mais dois membros mascarados (João Ricardo e Gerson Conrad, ambos nos vocais), cantando clássicos como "O Vira", "Sangue Latino", "Rosa de Hiroshima" e "Flores Astrais", registrados em um período de pouco mais de um ano em dois álbuns seminais do rock nacional, Secos & Molhados (1973) e Secos & Molhados (1974), que levaram o nome do grupo ao auge de vendas no Brasil, superando o Rei Roberto Carlos, e projetando uma carreira internacional de extremo sucesso, que acabou sucumbindo por diversos problemas de briga entre os membros, divisão de dinheiro e também, falta de apoio.
Primeiro álbum solo de João Ricardo |
Mas, caro leitor, o Secos & Molhados continuou sem Ney Matogrosso, e na realidade foi muito além dos dois álbuns citados. Tendo na capitania o músico João Ricardo (violão, vocais, letras), em 1977 ele reformulou a banda depois de investir em uma carreira solo de relevância praticamente nula. Nesta carreira, lançou dois álbuns: João Ricardo (1975) e Da Boca Pra Fora (1976).
Como os discos não emplacaram, fracassado financeiramente, João resolveu investir novamente no nome Secos & Molhados e resolve reviver o grupo. Para isso, convocou o guitarrista e vocalista Wander Taffo (que fez sucesso em carreira solo e também como fundador do Rádio Taxi, além de ser integrante da clássica formação do Made in Brazil), o baixista João Ascensão e o vocalista Lili Rodrigues. Com a participação de Gel Fernandes (bateria), Lazy (teclados) e Rubão (percussão), em maio de 1978, quatro anos após o fim prematuro da primeira formação do Secos & Molhados, a chama voltava a ser acesa. Porém a proposta era diferente.
Jornal de 1978 anunciando a volta do grupo |
Apesar de seguir uma linha similar aos primeiros discos e de Lili ter uma voz tão aguda quanto a de Ney, João decidiu parar com a androginia, retirar as plumas e investir no talento individual de cada um dos novos músicos do grupo. De cara limpa, partiu para os estúdios e, aquele que eu considero um dos melhores álbuns do rock nacional, o excelente Secos & Molhados (também conhecido como A Volta dos Secos & Molhados).
O disco abre com um verdadeiro clássico, "Que Fim Levaram Todas as Flores?", a qual foi um sucesso nacional, dando direito à banda de participar de inúmeros programas de televisão. A semelhança com faixas como "Flores Astrais" e "Assim Assado" não pode ser evitada, e Lili mostra que estava na banda para substituir, e bem, Ney. É impossível não confundir a sonoridade dessa canção com as canções da fase Ney, mas o resto de Secos & Molhados segue uma linha sonora bem diferente, que já se torna evidente na faixa seguinte, "Lindeza", onde os violões introduzem a canção com o baixo característico das músicas mais rápidas dos primeiros álbuns, além de trazer um belo arranjo de cordas, uma novidade nas canções do grupo.
Segue mais uma canção totalmente diferente. Após flertar com o blues em "Primavera nos Dentes", o flamenco em "Primer Mundo" e o fado de "O Vira", o Secos & Molhados invadia o funk, com uma bateria marcando o ritmo, tendo na sequência uma ótima linha de baixo, guitarras e teclados, dando espaço para os vocais cantarem "De Mim Pra Você", uma das faixas mais dançantes da banda e que merece espaço em qualquer festa anos setenta que você pense em fazer, ao lado dos clássicos de Village People, Bee Gees, Gloria Gaynor entre outros.
Após a sacudida no esqueleto de "De Mim Pra Você", temos a bela balada "Minha Namorada", onde Lili está fenomenal, mostrando sua simpatia (a qual contava nos créditos do álbum). O violão de 12 cordas de João leva a canção, que ainda trás um belo solo de Taffo (apresentado no álbum como Wander Tosh). O lado A encerra com "Anônimo Brasileiro", que apesar da bela melodia e do arranjo de cordas e metais, traz os vocais graves de João Ricardo, não combinando com o clima proposto na canção.
Wander Taffo, Lili Rodrigues, João Ascensão, João Ricardo e Rubão |
O lado B começa com "Última Lágrima", que lembra muito "Sangue Latino", principalmente pela levada do violão e do baixo. Segue "Insatisfação", uma pedrada na orelha de quem achava que o lado B seria lento, contando com vocalizações e destacando novamente a voz de Lili. Temos aqui uma boa letra de João, bem auxiliada por uma sessão instrumental de teclados e guitarras. Os arranjos de cordas se fazem presente em "Oh! Canção Vulgar", uma linda balada que antecedeu a musicalidade amena empregada por diversos artistas brazucas nos anos 80.
Segue uma sessão acústica (antes mesmo dos acústicos terem sido inventados), com a belíssima "Como Eu, Como Tu". Com João Ricardo liderando as vozes e acompanhado apenas de seu violão, temos aqui uma das mais belas e comoventes letras da banda, a qual trata sobre a dor de uma pessoa que recorda os poucos momentos de um amor que não deu certo. De chorar! Um dos melhores arranjos instrumentais para apenas um violão que já ouvi. A animada "Quadro Negro" resgata o clima leve do álbum, contando com boas participações dos integrantes nas vocalizações, que também possui João no vocal principal.
Por fim, "Cobra Coral Indiana" é introduzida pelo piano elétrico e baixo, que lembram bastante "Flores Astrais". A pequena letra, narrando a história de milhares de brasileiros que entram e saem de filas enormes para pagar suas contas, dá espaço para um longo tema instrumental com cordas e guitarras, encerrando o álbum em altíssimo nível.
Porém, nem toda flor cheira bem, e João acabou tendo diversos problemas com os integrantes dessa formação, lançando seu terceiro trabalho solo, Musicar, em 1979. Em meados de 1980 tenta mais uma vez resgatar o Secos & Molhados, contando agora com os irmãos Roberto Lampé (violão), César Lampé (voz) e Carlos Amantor (percussão), lançando mais um álbum homônimo, também muito bom, mas não no nível de seus antecessores.
Depois, em 1987, foi a vez de ao lado de Tôto Braxil, João Ricardo registrou mais um LP sob o nome Secos & Molhados, o fraquíssimo A Volta do Gato Preto. Seguiram-se ainda Teatro? (1999) e Memória Velha (2000), praticamente álbuns solos de João Ricardo, que ficam muito longe do esperado para o nome Secos & Molhados. O grupo para muitos acabou em 1974, mas em 1978, foi dado o último suspiro, aliás, um suspiro cujo perfume parece que só eu gosto, mas creio que pelo fato de que a maioria dos fãs do grupo apenas desconsideram a existência do mesmo sem o Ney. Mera injustiça!
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