terça-feira, 6 de maio de 2014

O Orgasmo Satânico de Cromagnon




A geração de Homo sapiens mais antiga que se tem conhecimento, encontrada na Europa, é batizada de Cro-Magnon. Provavelmente, eles viveram em confronto com os homens de Neanderthal, cerca de 40000 anos antes de Cristo, e teriam sido responsáveis pela exterminação de seus inimigos. A região basca talvez tenha sido sua principal casa, já que os fósseis de Cro-magnon foram encontrados em bom número em cavernas na França e Espanha.

A principal atração do homem de Cro-Magnon são os progressos culturais. O melhor acabamento nas armas, a fabricação de anzóis e agulhas de costura, o cozimento de alimentos e uma forma de subsistência bastante avançada para sua época, vivendo da caça, da pesca e do cooperativismo no trabalho, indicam que os Cro-Magnons eram altamente responsáveis e organizados. Ao que consta, eles foram os primeiros a se preocupar com a higiene dos mortos, enterrando-os para não proliferar doenças. 

Caveira de um Cro-Magnon

Por volta de 10 mil antes de Cristo, o homem de Cro-Magnon começou a sua extinção, principalmente por conta da escassez de alimentos naturais para ele (como o mamute). Em busca de frio, migraram para o norte da Europa, e principalmente o leste da Ásia, sendo o embrião das gerações que hoje conhecemos como os japoneses, coreanos e chineses, entre outros. 

O grande sentido de organização que a cultura oriental possui talvez seja fruto de sua genética Cro-Magnon, mas em 1969, uma nova geração de Homo sapiens, batizada de Cromagnon (sem o hífen) viveu nos Estados Unidos, na região de Nova Iorque, para confrontar seu xará antigo, e desorganizar tudo o que se imaginava e concebia em termos de referências para uma sociedade normal e aceitável.

Boss Blues
Essa geração de Cromagnons era comandada por dois grandes chefes, Austin Grasmere (vocais e música) e Brian Elliot (vocais e música), os quais eram os responsáveis por chefiar os rituais funestos feitos por seus súditos humanos, chamados de Connecticut Tribe: Peter Bennett (baixo), Jimmy Bennett (guitarra), Vinnie Howley (guitarra), Sal Salgado (percussão), Mark Payuk (vocais) e Gary Leslie (vocais,efeitos). Além disso, tinham como membro honorário um Homo sapiens moderno, Nelle Tresselt, esposa de Peter, indicada como "Membro honorário do grupo".

Esses súditos haviam feito parte do grupo Boss Blues, um simples grupo de rock 'n' roll e rhythm 'n' blues, e foram sodomizados pela dupla acima para cumprirem o papel de complementadores da obra musical utopizada pelo Cromagnon. Brian havia sido guitarrista do Boss Blues, e era o principal músico do Cromagnon, mas a estrutura que suportava toda a geração de Cromagnons era Grasmere, produtor do Boss Blues e que tentou de todas as formas possíveis criar uma "parede sonora" na qual você não conseguisse entender nada do que estava acontecendo, compondo todas as canções do grupo inspirado na "parede sonora" de Phil Spector, mas de uma forma muito sombria e aterradora. 

Austin Gasmere, Sal Salgado e Brian Elliot.

Em uma época que o Iê-Iê-Iê dos Beatles já não estava mais em alta, que a psicodelia levada por ácidos lisérgicos fervilhava nas diversas bandas flower-power de San Francisco, e que o Velvet Underground era a referência da anti-música, e contra-cultura, o Cromagnon colocou a trupe de Lou Reed enrolados em pedaços de comida em estado de putrefação, ingeriram eles sem dó nem piedade e, e para piorar, a la G. G. Allin, cuspiram e comeram os dejetos fecais originários disso, dando origem a talvez a maior gema underground e anti-comercial que a América pariu.

Esses rústicos seres, em um contrato praticamente macabro e satânico, registraram suas rotinas diárias em um álbum que se tornou uma raridade, e hoje, escavações arqueológicas em sebos do mundo inteiro buscam encontrar os resquícios do mesmo na sua forma original.

As fitas originais desses registros sumiram, mas graças à tecnologia, esse álbum ressurgiu no formato de CD em 1993, através de uma versão alemã que retirou o som original do vinil e passou para o CD (com alguma alteração na velocidade das canções do lado B, que ficaram mais lentas), e assim, podemos conhecer um pouco mais da orgia satânica que o Cromagnon registrou no álbum Orgasm (1969), lançado pelo pequeno selo EPS-Disk, e relançado em 2000 sob o título Cave Rock, com relançamentos em 2003 e 2005.
Lado A de Cave Rock (relançamento de Orgasm)

O que está contido no LP é uma devassa orgia levada pelos rituais satânicos de Grasmere e Brian. Durante as gravações no estúdio A-1 Sound Studio, localizado no sub solo de um antigo hotel em Nova Iorque, os dois saiam do estúdio e atacavam pessoas nas ruas, sequestrando-as para dentro do local de gravação e registrando o resultado da união de humanos com Cromagnons. Um desses humanos por exemplo, supostamente participou do álbum "tocando" um aspirador de pó que havia acabado de comprar. 

Alguns dos instrumentos eram tão rudes quanto os instrumentos utilizados no tempo das cavernas, destacando um conjunto de tambores construídos apenas por sacos de areia, envolto em uma rede de pesca com diversos objetos que os homens de Cromagnon usam para gerar seus sons (pedras, pentes, garrafas, sapatos, entre outros).

A ideia comprada pela EPS-Disk era uma total revolução na música, com a finalidade de chocar e expandir seus horizontes. Segundo uma entrevista dada por Salgado em 2009, quando o álbum completou 30 anos, eles fizeram em 1969 o que achavam que ia ocorrer em 1979, já que em 59, Elvis revolucionou requebrando-se diante da TV, e em 69, Hendrix e The Who mostraram que a revolta contra a guerra podia ser exibida na destruição dos instrumentos. Então, o grupo pensou em um mundo de paz, com pessoas no palco soprando grama, alguém recitando poesia e outro grupo fazendo som com água jogada em um microfone.

Entender os quarenta e um minutos de Orgasm não é fácil, sendo quase tão impossível quanto demonstrar as Leis da Relatividade Geral, mas, após as primeiras audições, os sons rústicos do álbum tornam-se naturais, e assimiláveis com o passar do tempo. Para garantir uma melhor qualidade na captação do que está em Orgasm, sugiro ouvir o mesmo sozinho em um quarto totalmente escuro, com o som no volume máximo, em um local isolado e durante a madrugada, será inesquecível. 
Lado B de Cave Rock (relançamento de Orgasm)

Tudo começa com um ajuste fino de onda de rádio, trazendo uma orquestra, que serve para apresentar o contato com os Cromagnon durante "Caledonia", iniciada por barulhos de grilos, batidas em latas, uma guitarra carregada de distorção e o vocal guturual de Brian - que lembra muito os vocais de Cronos, do Venom - acompanhado por uma gaita de foile escocesa, enquanto gritos histéricos são ouvidos ao fundo, repetindo a letra cantada por Grasmere de forma esganiçada, encerrando a faixa com os barulhos de grilo e notas em cordas desafinadas da guitarra, começando então a insanidade. O vocal de Brian foi gravado de forma tão intensa que ele ficou dois sem falar, com suas cordas vocais sangrando durante esse tempo.

Gritos como que se estivesse sendo estripado vivo são ouvidos enquanto barulhos como o de uma serra e um martelo bizarro aparecem ao fundo de "Ritual Feast of the Libido", um satânico som que assusta qualquer ser despreparado psicologicamente. As batidas do martelo são feitas com perfeição matemática, como uma máquina de tortura, e enquanto isso, os gritos tornam-se cada vez mais assustadores, até que param repentinamente após uma dolorida e arrepiante sessão, quando a serra passa a fazer um barulho ensurdecedor. O mais interessante é que essa serra nada mais é do que o registro de uma mangueira atirando água contra o microfone (!).

Entramos em "Organic Sundown", somente com barulhos percussivos de latas, pedras jogadas ao chão, madeiras e pedaços de pau batidos por todo o estúdio entre vocalizações diversas, em uma espécie de ritmo tribal, e com uma satânica voz perambulando ao fundo, arrancando arrepios e fazendo-nos olhar ao lado para vermos se realmente não estamos sozinhos. Medo é o principal sentimento que seu corpo irá ter nesse momento. 

"Fantasia" mostra um pouco de racionalidade dentro do álbum, começando com um interessante arranjo vocal, mas depois, somos intrigados por uma histérica risada durante mais de dois minutos, enquanto barulhos diversos e vocalizações enigmáticas aparecem ao fundo, e após o despertar de um relógio cuco, temos cinco minutos de uma sirene ensurdecedora, que encerram o lado A do LP juntamente de outra sirene, em um volume mais baixo, repetindo-se constantemente e torturando o cérebro do ouvinte junto dos mais diferentes barulhos instrumentais que você possa imaginar.

Inimaginavelmente, o lado B surge com belos acordes de violão, apresentando "Crow Of The Black Tree", mas após alguns segundos, temos uma maluca viagem somente com gritos insanos, percussão agressiva e dois acordes de violão que repetem-se infinitamente durante mais de seis minutos, e os dois minutos finais apenas com fantasmagóricas vocalizações, saídas das tumbas do inferno. Não há como não ficar assustado com essas vozes (Steve Howe nos acuda!).

Austin Grasmere
Com a sanidade mental totalmente fragilizada, somos submetidos ao hospício animalesco de "Genitalia", uma excêntrica canção com vocal a la Frank Sinatra (mas muito desafinado), e um poema triste, sob gritos humanos imitando macacos e pássaros, e adentramos nos dez minutos de "Toth, Scribe I", a qual é a mais perfeita canção do álbum, com seu início totalmente progressivo nos acordes de sintetizador e explosões, percorrida então por uma trilha sonora angustiante, com as explosões e o sintetizador estourando os miolos do ouvinte.

Por fim, "First World Of Bronze"mostra as qualidades de Brian na guitarra, com um solo veloz, cheio de velocidade, alavancadas, arpejos, bends, uivos alucinantes como se fosse um guitar hero no estilo Malmsteen ou Satriani, carregado de distorção, e sendo a base de cantos gregorianos cantados por todos os homens de Cromagnon, encerrando o álbum magnificamente e fazendo sua cabeça girar para trás. O orgasmo acabou.

O tempo de vida do Cromagnon não foi longo, mas o suficiente para fazer uma turnê pela Europa no início de 1970, tendo como banda de abertura os também americanos Pearl Before Swine. Nos shows, Orgasm era apresentado na íntegra, tendo no centro do palco um gigantesco útero com a banda em seu interior. Pelo palco, pessoas semi-nuas passeavam sob luzes estroboscópicas, enquanto a sonoridade fervilhava, e o ponto de êstase da apresentação ficava para a explosão do útero com um lança-chamas, ainda em "Caledonia", permitindo que a banda saísse para executar o resto do álbum, com todos os "instrumentos" que pudessem obter naquele dia.

A bela capa de Orgasm, feita por Howard Bernstein (que também trabalhou para o Pearls Before Swine) mostra dois esqueletos conectados um ao universo e outro a Terra, dando a ideia de conexão entre o presente e o futuro, sob o olhar de homem com barba e cabelo comprido, formado por nebulosas do universo e pelos lagos da Terra. Originalmente, a capa foi desenvolvida em preto e branco, mas os relançamentos trazem a imagem com um bonito arranjo de cores.

Relançamento de 2000

Brian Elliot, Mark Payuk, Jimmy Bennett e Austin Grasmere infelizmente já faleceram, mas hoje são reconhecidos pelo seu passado. A herança dos homens de Cromagnon foi o Noise Rock e o Industrial Rock, hoje aclamados pela nova geração de apreciadores da música, e seus elementos genéticos são encontrados em grupos como Ministry, Throbbing Gristle e até mesmo em álbuns da família Krautrock, além da família Gong também ter algum DNA em seu corpo.  Porém, buscar as raízes desses elementos modernos em Orgasm é uma tarefa que precisa ser feita, principalmente se alguém um dia lhe disser que você é louco. 

Caso aprecie Orgasm, meu querido leitor, irei ter o prazer de estra lá para lhe dizer: "Seja bem-vindo ao hospício". 

Contra-capa do relançamento em CD

Track list

1. Caledonia
2. Ritual Feast of the Libido
3. Organic Sundown
4. Fantasia
5. Crow Of The Black Tree
6. Genitalia
7. Toth, Scribe I
8. First World Of Bronze

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