segunda-feira, 15 de março de 2010

A primeira geração da Renaissance



Em uma das primeiras matérias que fiz aqui para o blog, narrei um pouco sobre a história de uma das grandes bandas do hard setentista, a Armageddon, que tinha como líder e mentor o vocalista e gaitista Keith Relf. Agora, irei contar sobre o segunda grande grupo que Keith formou em sua carreira, uma das mais diferentes e belas bandas de todos os tempos, a Renaissance.

Voltamos então a 1968. Após a longa turnê de divulgação do espetacular álbum Little Games (um dos melhores discos de todos os tempos), que trazia como novidade Jimmy Page capitaneando as guitarras do Yardbirds, o grupo resolveu se dissolver, principalmente pelos excessos e longos períodos na estrada (em cinco anos a banda havia feito mais de 2.000 shows!), bem como diferenças musicais que surgiam entre Page (influenciado pela psicodelia) e Relf (influenciado pela folk music). Page assumiu a batuta com o nome de New Yardbirds, mudando a alcunha do grupo depoos para Led Zeppelin, e o resto todo mundo sabe.

Chris Dreja (baixo) foi trabalhar com fotografia, e coube a Keith Relf (vocal, gaita) e Jim McCarty (bateria, voz) seguirem seus caminhos. Keith e McCarty montaram o duo Together, com Keith tocando guitarra e violão, mas que não durou mais do que dois singles. A ideia do Together era misturar folk music com blues, mas em um duo isso não fechava bem. Foi então que decidiram expandir os horizontes, e, assim, ampliar a banda.

Em janeiro de 1969 Keith e McCarty passaram a buscar pessoas que estivessem interessadas em criar um grupo diferente do que estava sendo divulgado na época, sem as guitarras pesadas de bandas como o Led Zeppelin, The Who ou Jimi Hendrix Experience, e tampouco a psicodelia de São Francisco. O que eles queriam era mostrar que outras vertentes da música também deveriam fazer parte do ambiente musical das pessoas, como a música clássica e a folk music.

Keith chamou sua irmã, Jane Relf, para fazer as vozes junto com ele, no estilo Simon & Garfunkel, e também o excelente baixista Louis Cennamo para fazer as linhas folk. Cennamo tinha uma clara influência de música clássica, e isso agradou Keith. Através de Cennamo, a banda marca ensaios com John Hawken (piano, harpsichord), que havia tocado no The Nashville Teens. A forte influência clássica que Hawken possuía, aliada com a de Cennamo, fecharam com o que Keith e McCarty queriam, ou seja, algo realmente inovador.

Então, o Together mudou de nome e, em comum acordo, adotaram a alcunha de Renaissance, uma clara alusão ao período renascentista, mostrando no nome o que aquele grupo apresentaria para o público.

Em maio de 1969 o Renaissance fez seu primeiro show. Os fãs de Yardbirds se surpreenderam com o que viram e ouviram. Keith, usando uma vasta cabeleira e também uma longa barba, não era mais o garoto loiro que gritava em frente aos microfones, enquanto que McCarty assumia uma postura bem mais técnica. A sonoridade mostrada era algo incomum, quase sem guitarras e com muitas passagens clássicas e calmas, totalmente diferente da pauleira sonora que fluía na Inglaterra do final dos anos 60.

A sequência de shows rapidamente levou a Renaissance a ser divulgada pelo boca-a-boca como uma das bandas mais interessantes de se assistir. Assinam um contrato com a Island Records na Inglaterra e com a Elektra nos EUA, e com a produção do também ex-Yardbirds Paul Samwell-Smith lançam o primeiro e fantástico álbum, Renaissance, em meados de 1969. Em suas notas, a ideia principal da banda: letras e música compostas por Keith e McCarty, adoradas por partes clássicas compostas por Hawken e Cennamo.



O disco abre com a espetacular "Kings & Queens", com piano e baixo executando o complicado tema clássico e mostrando o que a banda vinha fazer, entrando em um clima oriental com percussão, piano e guitarra. McCarty faz a batida da canção, acompanhado pelo baixo e guitarra, enquanto o piano sola. O clima oriental apresenta as tradicionais linhas vocais de Keith, e o refrão é bem interessante, com um ritmo diferente da canção.

A segunda parte da letra apresenta vocalizações feitas por Jane e McCarty, levando a um tema feito apenas por Cennamo, duelando com o piano e tendo ao fundo vocalizações de Jane. O clima muda novamente, ganhando peso e uma sensação de apreensão, onde Hawken começa uma bela sessão instrumental, sempre seguido por baixo e bateria, retornando ao início da canção, com o refrão e um tímido solo de guitarra. No encerramento, o destaque vai para as belas vocalizações de Jane sob camadas de piano, baixo e percussão.

O lado A segue com "Innocence", onde a marcação no cymbal é seguida por notas de baixo e harpsichord. O piano, acompanhado por uma levada bem típica do final dos anos 60, é a base para os vocais de Keith, com intervenções de Jane. Hawken é o grande destaque, fazendo um belo solo no piano e que mostra a ideia da Renaissance: piano, baixo e bateria executando o mesmo tema, e a guitarra sendo apenas mais um instrumento. O lindo tema clássico de Hawken, acompanhado apenas pelo baixo, é o diferencial em relação à música que se fazia na época. Temos novamente o tema inicial, uma rápida participação de Keith na guitarra e o encerramento do lado A de forma calma e serena.

"Island" abre o lado B com o piano introduzindo a canção. Keith faz acordes na guitarra, seguido por bateria e baixo. Finalmente conhecemos Jane como cantora. Apesar de não ter um agudo muito longo e potente, sua voz encanta, e ganha força no refrão, onde Keith canta junto. A partir de então, a canção se desenvolve em um encatador clima rural, com os irmãos cantando em volta do piano enquanto McCarty e Louis cozinham a base para a bela letra de Keith ser interpretada, com direito a uma empolgante sessão clássica de Hawken, Cennamo e McCarty

A linda "Wanderer", composta por Hawken e McCarty, traz uma bela sessão instrumental com um fantástico tema construído por Hawken e Cennamo. McCarty apenas acompanha com batidas simples, mas o que empolga são os duelos de piano/baixo e piano/harpsichord, como que saídos de um castelo medieval. Os vocais de Jane surgem acompanhados pelo harpsichord, cymbal e baixo. A canção segue como um tradicional boureé, repetindo a letra enquanto Hawken e Cennamo travam mais uma linda batalha com temas clássicos.

O disco encerra com a viajante "Bullet". Percussão e acordes graves de piano lembram uma marcha de exército. Baixo e piano começam a duelar, com Hawken puxando o tema principal, seguido por baixo, guitarra e bateria. Um ritmo suingado aparece, com todos fazendo vocalizações para Keith soltar a voz. A gaita de boca de Relf surge, relembrando os tempos de Yardbirds e encaixando perfeitamente na suingueira criada por Hawken, Cennamo e McCarty.


A segunda parte é mais viajante, com um clima assustador construído pelo trio acima, delirando em um quase free jazz. Cennamo impressiona solando sozinho e utilizando da técnica de vibrato de oitavas. Depois de destruir o baixo, a psicodelia entra de vez, com vocalizações e efeitos que parecem ter influenciado o Pink Floyd para as viajantes sessões de "Echoes" (do álbum Meddle). Aqui, essas sessões são mais arrepiantes e sombrias (ouça este trecho com a luz apagada em um dia ventoso e entenda o que quero dizer), com um vento surgindo entre os acordes de piano e baixo como que varrendo tudo o que vê pela frente, encerrando a canção do nada, e ficando aquele pensamento de "acabou?".

Do álbum foi extraído o single editado de "Island" (sem o tema clássico de encerramento), tendo como lado B a inédita "The Sea". O valor da bolachinha é elevadíssimo nos dias de hoje. Além disso, o álbum foi lançado com capas diferentes nos EUA e no resto do mundo. Enquanto a versão mundial traz uma bela ilustração de Gennison chamada The Downfall of Icarus, a versão americana tem apenas uma foto do grupo.

Em 1998 a gravadora inglesa Mooncrest Records relançou esse disco com o nome de Innocence, trazendo seis faixas bônus, incluindo as citadas acima, bem como "Shining Where the Sun Has Been", uma demo da fase do Together gravada em 1968: "Prayer For Light" e "Walking Away", duas faixas gravadas pós-primeira geração por Keith e McCarty para a trilha não realizada do filme Schizom, de 1971; e a despedida de Keith para os humanos, "All the Fallen Angels", gravada por ele sozinho em sua casa no ano de 1976 dias antes de falecer em um trágico choque elétrico enquanto tocava guitarra.

Após o lançamento, o grupo partiu para uma turnê de divulgação do álbum na Europa. Porém, McCarty decidiu deixar o grupo, alegando cansaço e medo de viajar de avião, preferindo então se ausentar da música. Ele foi substituído por Terry Slade, e assim a banda tocou nos festivais Amougies (Bélgica) e Operation 666 e Le Bourget (França), passando também por Itália, Alemanha, Inglaterra e Escócia.

Em fevereiro de 1970 partem para uma tour nos EUA, onde, devido à ligação de Keith com o Yardbirds, acabaram se apresentando ao lado de bandas como o The Kinks, o que não combinava em nada com o som do Renaissance, e assim a tour americana não foi bem sucedida. Isso afetou os ânimos do grupo, que começou então a ter problemas internos durante as gravações do segundo álbum. Keith decidiu simplesmente parar de tocar, enquanto Cennamo juntou-se ao pessoal do Colosseum, onde não ficou por muito tempo, gravando apenas o álbum Daughter of Time (1970). Resultado: Hawken ficou sozinho junto com Jane, com a responsabilidade de terminar o segundo álbum e manter os contratos com a Island.

Para isso então acabou juntando forças com ex-companheiros do The Nashville Teens - a saber: Michael Dunford (violões, guitarras) e Terry Crowe (vocais) -, bem como Neil Korner (baixo), que havia tocado no The New Vaudeville Band. Essa formação é a responsável por terminar o segundo álbum e fazer alguns shows de divulgação. Sem conseguir completar o disco, os antigos membros, com a exceção de Hawken, reuniram-se para gravar apenas uma música e, finalmente, o álbum Illusion foi lançado em 1971, mas somente na Alemanha, onde a fama do Renaissance era muito grande.

O disco é uma mescla de sobras de estúdio do primeiro trabalho com gravações feitas pela banda após a saída de McCarty, começando com a balada "Love Goes On", onde violão e vocalizações cantando o nome da canção são repetidos com um leve acompanhamento do trio bateria, piano e baixo. A canção muda o ritmo, ganhando pegada quando Jane começa a cantar. O tema inicial é retomado, encerrando a primeira faixa.



A líndissima "Golden Thread" vem a seguir, com piano e baixo exectuando o mesmo tema, para Hawken solar seguido pela guitarra limpa de Keith e o baixo de Cennamo. Hawken e Cennamo voltam a duelar, e então a marcação de bateria surge, trazendo vocalizações de Jane para acompanhar as notas de piano, baixo e guitarra. O ritmo muda, com vocalizações de Keith e Jane em um belo tema de Hawken. Keith canta acompanhado pelas suaves vocalizações de Jane. Os temas clássicos, seguidos de vocalizações, encerram essa linda canção de maneira triste e saudosa.



"Love is All" é uma das músicas mais importantes da carreira da banda, pois é nela que conhecemos pela primeira vez as letras da escritora Betty Thatcher, a qual foi muito importante para consolidar a segunda geração do Renaissance. Thatcher era amiga de Jane, e suas poesias agradaram em cheio Keith e McCarty, que concordaram com a participação dela em algumas canções. Em "Love is All" o piano clássico introduz a canção, seguido por Cennamo e McCarty, que acompanham os vocais de Keith. O refrão é simples, apenas repetindo o título da faixa. Keith canta a segunda parte da letra e mais uma vez temos o refrão. O encerramento ocorre com o refrão e uma participação quase escondida da guitarra de Keith.



Essas três canções foram registradas com a primeira formação da banda, e o Lado A encerra com uma gravação feita pela terceira formação (já sem Keith e Cennamo e contando com o pessoal do The Nashville Teens) chamada "MrPine", outra importantíssima canção por ser a primeira composição de Dunford para o grupo. Harpsichord, baixo e percussão nos levam novamente ao período renascentista. Os vocais de Crowe e Jane aparecem ora juntos, ora separados, para entrar na segunda parte, onde o órgão é o principal instrumento, executando o maravilhoso tema que seria repetido posteriormente em "Running Hard", do álbum Turn of the Cards. Dunford muda o ritmo da canção, com uma base dançante recheada de percussão, onde Hawken sola ao órgão enquanto Jane e Crowe dividem os vocais, alternando com frases cantadas apenas por Crowe. Dunford faz um pequeno solo de guitarra, e o clima renascentista da introdução retorna, com o harpsichord, baixo, percussão e as vozes de Jane e Crowe encerrando o lado A.



O lado B abre com a magistral "Face of Yesterday", onde piano e baixo resgatam os temas do primeiro álbum, com outro bonito arranjo clássico. Os vocais de Jane são acompanhados apenas pelo piano, baixo e notas de guitarra, em uma das mais belas canções da carreira do grupo, gravada aqui pela formação original.




O disco encerra com "Past Orbits of Dust", outra composição de McCarty e Thatcher e que contou ainda com a colaboração de Keith. Essa faixa é a que foi gravada pelos membros originais sem Hawken, que foi substituído pelo pianista Don Shin. A introdução de baixo e bateria traz o piano elétrico e as vozes de Jane e Keith. A sequência é interessantíssima, com crescendos que lembram o que o King Crimson faria posteriormente em Three of a Perfect Pair. Após essa primeira parte, uma sessão jazzística é apresentada para ser a base dos vocais de Jane, com solos de Shin e Keith. Percussões tocadas por Jane surgem para acompanhar o delírio do piano e do baixo, ganhando espaço para um rápido solo ao lado de McCarty e retornando ao tema inicial. O tema jazzístico surge novamente, com Shin mandando ver em um embalado solo. A canção, e o álbum, encerram-se com Cennamo solando envolto de intervenções suaves de Shin em uma das mais viajantes canções do grupo.

Assim como o primeiro disco, Illusion teve duas capas diferentes, uma trazendo um menino caminhando sobre uma faixa de estrada no meio do universo (que é a mais conhecida) e outra com o ancião parado sobre um planeta (que é a contra-capa da primeira versão) e que foi lançada somente na Inglaterra. Ambas as ilustrações foram feitas por Paul Whitehead, famoso pelas capas de álbuns como Nursery Crimes, Seeling England by the Pounds e Foxtrot (Genesis), além de outras bandas da Charisma Records, como Van der Graaf Generator (Pawn Hearts, H to He, Who Am the Only One) e Le Orme (Smogmagica).

Após o lançamento na Alemanha - sendo que o disco só foi lançado na Inglaterra em 1976 devido a problemas contratuais entre os integrantes, que será explicado melhor na próxima edição -, os dois últimos remanescentes da formação original abandonam o grupo no outono de 1970. Jane foi substituída pela cantora Marie-Louise "Binky" Cullom, enquanto Hawken foi parar no Spooky Tooth, sendo substituído por outro virtuose no piano, John Tout.

Essa formação fez alguns shows mas também não durou muito tempo. Keith e McCarty permaneceram ligados ao Renaissance durante algum tempo, não como músicos, mas como managers da banda, com Keith trabalhando como produtor e McCarty como letrista. A partir de então, tentando manter o nome do Renaissance na ativa, bem como a ideia inicial, partem em busca de uma nova formação, ouvindo diversas pessoas, ao mesmo tempo que começam a se deliciar com as composições de Dunford e as poesias de Thatcher.

Durante o ano de 1971, com a ajuda de Keith, McCarty e de Miles Copeland, reorganizam a banda, contando agora com Dunford, Tout, Crowe, Korner e uma nova vocalista, a espetacular Annie Haslam. A partir de então, ainda naquele ano, vários outros membros passaram pelo baixo, como John Wetton, Frank Farre, Danny McCulloch e, finalmente, Jon Camp. Crowe foi despedido e finalmente o Renaissance chegava a sua segunda geração, tendo Dunford se concentrando nas composições (ao lado de Thatcher) e o guitarrista Mick Parsons assumindo o posto das seis cordas, além de Terence Sullivan na bateria.




Essa formação durou alguns meses, pois Parsons acabou falecendo em um trágico acidente de carro. Mesmo assim ele deixou seu registro no maravilhoso primeiro álbum da segunda geração, Prologue, lançado em 1972 (confiram a faixa "Rajah Khan"). O grupo seguiu como quarteto e fez então sua fama lançando álbuns essenciais como Ashes Are Burning (1973), Turn of the Cards (1974), Scheherazade and Other Stories (1975) e Novella (1977), virando um trio (sem Sullivan) e encerrando as atividades em 1983.

Enquanto isso, dos membros originais, Cennamo saiu do Colosseum e montou o Steamhammer, com quem lançou o álbum Speech em 1972. Posteriormente, reencontrou Keith no Armageddon, lançando um dos melhos álbuns da década de setenta. McCarty seguiu trabalhando com o Renaissance durante alguns anos, ao mesmo tempo que formou o grupo Shoot, em 1973.

Já Jane e Hawken saíram de cena por algum tempo, até que em 1977 reaparecem na mídia com uma nova banda, como veremos na próxima edição.

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