Existem alguns filmes relacionados com artistas do rock que são clássicos indispensáveis na prateleira de DVDs dos apreciadores da Sétima Arte. The Song Remains the Same (Led Zeppelin), The Last Waltz (The Band), Ziggy Stardust and The Spiders from Mars (David Bowie), Woodstock e, mais recentemente, Beyond the Lighted Stage (Rush) e No Direction Home (Bob Dylan) se tornaram figurinhas estreladas nas coleções de vídeos do mundo a fora, e são fortes exemplos de como o cinema pode ser um belo aliado para o artista, seja destacando apresentações ao vivo (os três primeiros), seja com um documentário sobre a carreira do (os dois últimos).
Porém, há um filme entre todos os demais que se sobressai no quesito importância. Trata-se de Gimme Shelter, lançado originalmente pelos ingleses do Rolling Stones em 1970, e que recebeu uma edição digital em 2000 com alguns complementos muito interessantes para quem gosta de conhecer a história da música.
Stones, vivendo um dia de loucura em Altamont |
O filme foi dirigido por Albert Maysels e Charlotte Zwerin, e conta com a colaboração de Stanley Goldstein, além dos novatos camera-men George Lucas (Star Wars) e Martin Scorcese (The Last Waltz, No Direction Home, entre outros), mas as filmagens de Lucas não foram usadas, já que sua câmera foi danificada durante o último show dos Stones na América.
Através de pouco mais de uma hora e meia, o telespectador depara-se com a cobertura da turnê americana que Mick Jagger (vocais), Bill Wyman (baixo), Keith Richards (guitarras), Mick Taylor (guitarras) e Charlie Watts (bateria) fez em 1969, partindo de Nova Iorque e culminando com uma apresentação gratuita em San Francisco, no início de dezembro daquele ano.
Durante a primeira metade do filme, o que temos são cenas da chegada dos Stones nos Estados Unidos, filmagens da produção do próprio filme, com citações inclusive ao pós-show de encerramento, vídeos da sessão de fotos para a capa do álbum Get Yer Ya-Ya's Out (gravado ao vivo nesa turnê, e lançado em 1970), a mixagem de "Wild Horses" e trechos da apresentação do grupo em Nova Iorque, no Madison Square Garden, interpretando clássicos como "Jumping Jack Flash", tendo Jagger com sua famosa cartola em homenagem a bandeira americana, "(I Can't Get No) Satisfaction", "Love in Vain", "Honky Tonk Women", "Street Fighting Man", "You Gotta Move" e "Brown Sugar", essas duas como canções de fundo em imagens do grupo pelos Estados Unidos.
Outro ponto que chama a atenção nessa primeira metade é uma breve apresentação de Ike & Tina Turner, na qual a vocalista simula uma masturbação com o microfone durante "I've Been Loving You Too Long", como se o mesmo fosse um membro masculino, além de um grande close nas partes íntimas da vocalista, que apesar de não ser mostrada explicitamente, fica em evidência na telona devido a curtíssima saia que a mesma está usando. E claro, a fantástica interpretação vocal de Tina é de arrepiar.
Jagger anunciando show gratuito nos Estados Unidos |
Entrevistas de Jagger falando sobre o show final surgem na tela, mostrando o mesmo sempre simpático e de bom-humor, e também com Richards, e aqui é anunciado pela primeira vez que o grupo irá fazer um show de encerramento gratuito em San Francisco. O empresário Mel Belli aparece pela primeira vez, e assim começa uma longa e difícil sessão de discussão de como e onde ocorrerá o tal show, isso dias antes do mesmo ocorrer.
Planejado originalmente para ocorrer na Golden Gate de San Francisco, na Califórnia, o show quase não ocorreu por conta de que ninguém queria arriscar-se com um evento de tamanho porte, por conta do fracasso financeiro que havia sido Woodstock meses antes.
Stones em Altamont |
A segunda ideia foi realizar o espetáculo no Sears Point Raceway (hoje Sonoma Raceway), local onde inclusive o palco chegou a ser montado, só que problemas de segurança impediram a realização por lá. O empresário Dick Carter acaba oferecendo o seu autódromo de Altamont, responsabilizando-se por organizar o local para receber em torno de cinco a vinte mil pessoas em troca de publicidade e promoção do local. Um dia antes da apresentação, apesar de todos os problemas apresentados pelo local, principalmente a falta de estacionamento apropriado, Altamont é confirmado para o local do show.
Até aí, tudo parece ocorrer bem, mas é nas imagens de produção que, pelas reações de Jagger e Watts com uma entrevista feita com um Hells Angel para uma rádio local americana, percebemos que nem tudo foi flores na turnê. Os Hells Angels eram um grupo de motoqueiros mal-encarados que foram contratados para serem os seguranças do último show dos Stones na América, e para muitos os responsáveis também pelos lamentáveis fatos que ocorreram no mesmo, e que começam a aparecer na segunda metade de Gimme Shelter.
É quando o filme realmente começa, com uma mobilização incrível dos americanos atravessando o país para acompanhar o show do grupo na parte oeste do país, tendo ao fundo um anuncio apavorado de Frank Terry, na rádio KRFC, falando da mobilização dos fãs que atravessavam o país sob a madrugada gelada apenas para ver os Stones, enquanto outros foram a Sears Point com caminhões, vans e carros para auxiliar na desmontagem do equipamento, levando tudo para Altamont (distante aproximadamente 120 km de Sears Point) e ajudando na organização do palco e do festival no novo local.
Visão de Jagger na chegada a Altamont |
Os fãs começaram a chegar ainda pela noite, fazendo fogueiras e esquentando com álcool e drogas, e tudo é filmado no meio do rebuliço, mostrando cada detalhe de forma exclusiva. O mais impressionante é a sequência de vinte segundos, filmada em alta velocidade dentro de um helicóptero, mostrando a longa fila de carros estacionados muito antes do autódromo, e a incrível quantidade de pessoas que se aglomeraram no local para assistir ao show. Estima-se que mais de trezentas mil pessoas estiveram presentes no dia 06 de dezembro de 1969 em Altamont.
Hippies fumando e vendendo drogas, algumas viagens alucinógenas de alguns seres, partos, organização do palco pelos empresários dos Stones e os Hells Angels com suas Harley Davidson, tudo parece correr bem, chegando a apresentação do Flying Burrito Brothers (antes deles, Santana havia se apresentado). Aqui começam os verdadeiros problemas. Durante "Six Days on the Road", o filme mostra que os Hells Angels começam a usar seu poder de seguranças, e agressivamente, barram e espantam os fãs da beira do palco, principalmente os mais "fora de si". Tacos de sinuca e bastões de beisebol são as "armas" para controlar os fãs, e a medida que o tempo passa, uma certa aflição parece surgir do palco e do ambiente, deixando aflito até mesmo quem está confortavelmente assistindo em sua casa.
Pancadaria no show do Jefferson Airplane |
Durante a apresentação do Jefferson Airplane, a coisa piora. Durante "The Other Side of This Life", o pau quebra na frente do palco, e mesmo com os pedidos de Grace Slick para o pessoal se acalmar, o tempo fecha. Os Hells Angels agridem covardemente os fãs, e acabam acertando Marty Balin, que pulou no meio dos fãs para tentar acabar com a briga. O show do Jefferson Airplane é interrompido, e enquanto isso, bos bastidores, os Stones não sabem de nada que está acontecendo. Socos, pontapés e gritos são vistos e ouvidos por todo lado, e um impressionado Mike Shrieve (baterista de Santana) comenta com os assustados Phil Lesh e Jerry Garcia (ambos do Grateful Dead) que jamais tinha visto nada igual.
Mais Hells Angels chegam para "proteger" os Stones, durante a apresentação de Crosby, Stills, Nash & Young (não aparece no filme) e o show principal começa. A qualidade de áudio e vídeo é muito boa, com as imagens sendo coloridas e dando para ouvir claramente as brigas e discussões, e com as legendas em português, fica ainda mais fácil entender o que está acontecendo.
Hell Angel enojado pela presença de Jagger |
O que ninguém consegue explicar é o motivo das brigas, que continuam durante o show dos Stones, principalmente durante a segunda música da noite, "Sympathy for the Devil" (a primeira, "Jumping Jack Flash", não está no filme), quando além do pau comer solto na plateia, um dos Hells Angels olha com cara de nojo para a dança de Jagger no palco.
Gritos, pancadaria e muita violência aparecem nas imagens, e Jagger clama por paz. Não adianta, os Hells Angels estão com tudo, inclusive um usando uma cabeça de raposa em sua cabeça. O quebra-pau é geral, e alguns segundos após Jagger conseguir acalmar todos, eles continuam tocando "Sympathy for the Devil". Uma gorda maluca, totalmente nua, arrasta-se entre a multidão, e quando parece que tudo acalmou, o pau pega de novo.
Jagger conversando com o “Cabeça de Raposa” sobre a pancadaria, enquanto Richards desespera-se (à direita) |
Jagger pergunta: "Por que estamos brigando", enquanto um membro da plateia é arrastado ferido pelo palco. As imagens chocam, e os Stones insistem para que a briga pare, se não, não haverá show.
Alguns minutos para tudo acalmar, e o baile segue, agora com "Under My Thumb", e após focar em um Hells Angels doidão em cima do palco, retirado pelo mesmo colega que ficou encarando Jagger durante "Sympahty for the Devil" com muito "carinho", chegamos ao final da apresentação, quando Meredith Hunter, de dezoito anos, é assassinado com três facadas pelas costas por um dos Hells Angels, Alan Passaro, após sacar uma arma em direção à um membro da plateia, tentando invadir o palco para chegar mais perto de Jagger.
O assassinato de Meredith Hunter por Passaro |
A cena foi captada pela lente da câmera de Baird Bryant muito claramente, e depois do estrago, temos Jagger assistindo ao vídeo no exato momento da morte de Hunter, com as imagens em câmera lenta mostrando a arma na mão de Hunter e um Hells Angels esfaqueando-o por trás.
Voltamos para Altamont, com os paramédicos atendendo Hunter, mas nada podia ser feito, ele já havia sido declarado morto, enquanto sua namorada chora desesperadamente.
A reveladora cara de Jagger sobre Altamont |
Retornamos então para a sala de produção do filme, com Jagger abandonando-a com uma cara que mostra toda sua tristeza e inconformidade com o que aconteceu, encerrando com as pessoas saindo de Altamont sob o som de "Gimme Shelter".
Nos extras, temos cenas excluídas da versão original, que é a mixagem de "Little Queenie", a apresentação de "Little Queenie", "Oh Carol" e "Prodigal Son" no Madison Square Garden, e cenas dos bastidores de Jagger com Ike e Tina Turner, na qual Jagger ensina uma interessante versão de "Brown Sugar" para a dupla. Há ainda comentários de Albert Maysles, Charlotte Zwerin e Stanley Goldstein, os trailers de promoção dos três lançamentos (1971, 1991 e 2000) e ainda uma transmissão da Rádio KSAN um dia depois do ocorrido em Altamont, com Hells Angels, fãs e envolvidos ligando para a rádio e dando sua versão do ocorrido.
No total, quatro pessoas morreram em Altamont, mas somente Hunter por brigas (um foi por afogamento e dois em um acidente de carro). Para muitos, esse show foi o símbolo do fim da geração hippie, o que eu discordo, já que o Festival da Ilha de Wight ainda manteve a chama acesa por mais algum tempo.
Capa e contra-capa de Gimme Shelter |
O fato é que Gimme Shelter é de uma honestidade inquestionável de um dos maiores grupos de rock com seus fãs. Seria muito fácil para os Stones terem filmado tudo e engavetado o projeto, mas o fato de assumirem a responsabilidade, e lançar o filme com todas as cenas polêmicas, tornou o mesmo um mito, e graças a era digital, podemos ter essa preciosidade em casa por um preço acessível, e assistir inacreditáveis momentos que marcaram a carreira de dois dos principais nomes do rock 'n' roll mundial. Só vendo para crer que tudo isso e muito mais aconteceu em apenas um único show.