Existem fatos, acontecimentos, coisas em geral que nós pensamos: "Isso nunca vai acontecer!". O retorno do grupo Bacamarte, tendo na linha de frente o trio Jane Dubóc (vocais), Mario Neto (guitarras, violões, vocais) e Marcus Moura (flauta), o mesmo que gravou o clássico Depois do Fim, em 1983, era algo impossível, imaginável apenas na mente dos mais fanáticos.
Afinal, a saída conturbada de Jane, que seguiu (e segue) uma carreira solo muito solidificada, era o pilar base para que nada, nem se quer um resquício do Bacamarte que gravou Depois do Fim, pudesse existir, apesar de Mário Neto sempre afirmar que nunca houve desentendimento nenhum.
Mas eis que surge o nome do produtor Cláudio Fonzi, e uma incansável busca pela união do trio começou a crescer através deste que é um dos maiores fãs do grupo, e responsável por agitar o cenário progressivo no Rio de Janeiro.
Mario Neto e Jane Duboc |
Depois de muitas conversas, discussões, tratativas, eis que vinte e nove anos depois Jane e Mário deixaram as indiferenças de lado, fizeram as pazes e toparam participar de um retorno exclusivo, fazendo um único show na noite de encerramento da terceira edição do Rio Prog Festival, que contou na noite de abertura com a Martin Turner's Wishbone Ash.
A alegria e expectativa por ver o trio aumentou ainda mais quando foi divulgado o set list do único show. O álbum Depois do Fim seria interpretado na íntegra, e canções do raro segundo álbum do grupo (o ótimo Sete Cidades, de 1999) seriam apresentadas com a voz de Jane.
Muita gente duvidou, muita gente caiu em prantos, muita gente vendeu o que tinha e o que não tinha, mas o fato é que na noite do dia 22 de setembro de 2012, o Teatro Rival foi pequeno diante da multidão de fãs que lotaram o local, comprovadamente minúsculo perto do gigantismo do Bacamarte.
Marcus Moura e Mário Neto |
Eram 20:30 horas quando Mário Neto colocou seu pé no palco, seguido por Alex Curi (bateria), Nilo Rafael (teclados), Marcus Moura (flauta, acordeão, efeitos), William Murray (baixo) e Mr. Paul (percussão), os dois últimos ex-membros do Bacamarte, participantes de Depois do Fim, e sem piedade, detonaram "UFO", faixa de abertura do disco homenageado da noite.
Apesar dos problemas no som (que geraram muitas discussões pós-show), a abertura estremeceu o local, e bastou os primeiros acordes de "Smog Alado", com a entrada triunfal de Jane, para todos aplaudirem em pé o trio citado acima.
Jane demonstrou confiança, continuando com sua linda voz praticamente intacta, enquanto Mário, sempre perfeccionista, soltava sorrisos entre as intrincadas linhas da canção. Foi muito legal ver Jane de olhos fechados, com um sorriso nos lábios, curtindo as canções que revelaram ela ao mundo há trinta anos.
"Miragem" manteve a sequência original de Depois do Fim, ainda com o som bastante embolado, e a flauta praticamente inaudível, e eis que o encerramento do Lado A de Depois do Fim ocorre. Talvez a canção mais admirada pelos fãs do grupo, a expectativa era geral para a audição de "Pássaro de Luz", tudo por que nela, Mario e Jane iriam dividir o palco sozinhos, com uma breve participação de Murray no violoncelo.
O trio Marcus Moura, Jane Duboc e Mário Neto |
A emoção de Jane e Mario foi incontrolável, e a apresentação de "Pássaro de Luz" arrancou lágrimas de mais da metade do Teatro. O abraço dado pela dupla após a canção mostrou como a música é capaz de superar brigas, intrigas e questões pessoais, e principalmente, o sorriso nas faces de ambos os músicos entregava quão satisfeitos estavam eles em estar no palco.
Moura empunhou o acordeão para interpretar "Caño", seguida pela maravilha prog "Último Entardecer", a qual lançou este que vos escreve para dimensões que somente uma canção tão linda quanto essa conseguem atingir. Incrível! Essa canção em especial me fez vibrar como uma criança, tamanha a perfeição de cada nota executada pelo grupo. Mais lindo de ver (e ouvir) era o silêncio de todo o teatro, apreciando o espetáculo com fidelidade, e vibrando muito ao final de cada canção.
Vieram ainda "Controvérsia" e "Depois do Fim", e o álbum Depois do Fim era concluído, com o grupo saindo do palco para um pequeno intervalo.
Enquanto os fãs colocavam os queixos de volta no lugar, ficava a expectativa se o álbum Sete Cidades também seria interpretado na íntegra, e como soaria as canções do mesmo na voz de Jane. Após quinze minutos, uma nova banda subiu ao palco, com Robério Molinari (teclados), Alex Curi (bateria), Vitor Trope (baixo), além de Marcus, Mário e Jane.
Se existia alguma dúvida do que iria acontecer com as canções de Sete Cidades, ela acabou logo nas primeiras notas de "Portais", dizendo aos fãs: "Preparem-se para a perfeição!". Mário Neto é um dos maiores guitarristas que eu já vi tocar, e olha que eu já vi muito guitarrista. O estilo dele é único. Tocando seu instrumento somente com um dedilhado, sem palhetas, ele executa escalas velozes, acordes complicados e esbanja técnica, seja de música clássica, seja de jazz, seja do estilo que for, e "Portais" foi uma amostra perfeita disso. A linda introdução no violão clássica foi executada perfeitamente, e não parece que Mário ficou tanto tempo sem tocar essas canções. Além de tudo, criar algo tão belo quanto a introdução de "Portais" revela ainda mais o talento desse injustiçado músico brasileiro.
Jane e Mário cantaram juntos "Filhos do Sol", a qual, por causa dos problemas no som, resolveram cantar novamente, aplaudidos em pé pela atitude. Como o próprio Mário falou: "Estamos aqui para mostrar para vocês as canções com a mais pura perfeição, e portanto, como não ouvimos nada, vamos tocá-la de novo!". E assim foi, tocada mais uma vez "Filhos do Sol", agora com a audição perfeita.
Mário durante "Mirante das Estrelas" |
"Espírito da Terra" arrepiou à todos com seus ventos, e com a voz de Jane soando como o vôo suave de uma borboleta, e quando Mário empunhou a guitarra de dois braços, todos no teatro sabiam que era hora da épica "Mirante das Estrelas", outra grandiosa composição de Mário Neto, dando show no pedal de volume, e com uma velocidade incrível na mudança dos acordes.
A segunda parte do show encerrou-se com a canção que conclui Sete Cidades, a extremamente complicada "Canto da Esfinge", apresentada com seus mais de onze minutos sendo tocados perfeitamente, e ninguém, mas ninguém conseguia parar de aplaudir e gritar por mais. Uma pena que o som não estivesse tão bom, e que "Ritual da Fertilidade" tenha ficado de fora, mas mesmo assim, o ingresso já tinha sido pago com sobras.
Encerramento do show |
Timidamente, Mário e o grupo voltou para mandar ver em uma versão pesadíssima de "Smog Alado", e quando já estavam deixando o palco mais uma vez, eis que Mário volta e diz: "Vamos fazer 'Pássaro de Luz' mais uma vez", atendendo aos pedidos exaltados da plateia, que ficou aind amais satisfeita quando Jane convidou à todos para cantarem juntos.
Com lágrimas e sorrisos, o grupo despediu-se dos fãs. Nos camarins, Jane e Mário receberam as dezenas de fãs com muita simpatia, e era visível a emoção de Mário pela quantidade de elogios. Jane foi extremamente atenciosa, em nada parecendo a super-estrela que é, com uma humildade incrível, beijando os fãs, tirando fotos e tendo muita paciência com alguns mais passadinhos.
Bolha e Jane Duboc |
E quanto ao Bacamarte, bom, como disse Claudio Fonzi após o show: "Era mais fácil juntar o Yes com Steve Howe, Jon Anderson, Bill Bruford, Chris Squire e Rick Wakeman para tocar todo o Close to the Edge do que ver eles tocando de novo!".
Um espetáculo inesquecível, registrado na mente de mais de seiscentas pessoas, que na noite do dia vinte e dois de setembro, presenciaram um milagre no Rio de Janeiro.
Quem viu, viu!
Autógrafos |
Set list
1. UFO
2. Smog Alado
3. Miragem
4. Pássaro de Luz
5. Caño
6. Último Entardecer
7. Controvérsia
8. Depois do Fim
Intervalo
9. Portais
10. Filhos do Sol (Versão I)
11. Filhos do Sol (Versão II)
12. Espírito da Terra
13. Mirante das Estrelas
14. Carta
15. Canto da Esfinge
Bis
16. Smog Alado
17. Pássaro de Luz