quinta-feira, 29 de março de 2012

Review Exclusivo: Roger Waters (Porto Alegre, 25 de março de 2012)




Os irmãos Mairon e Micael Machado, responsáveis por desvendar a história de The Wall, um dos principais discos do rock progressivo, lançado pelo Pink Floyd em 1979, presenciaram ao vivo e a cores o espetáculo "The Wall Live", apresentado por Roger Waters no último domingo, dia 25 de março, no estádio Beira-Rio, em Porto Alegre. Confira suas impressões neste review exclusivíssimo.

As fotos com * foram retiradas do site ClicRBS.

Por Micael Machado (Publicado originalmente no blog Consultoria do Rock)

O álbum The Wall, do Pink Floyd, lançado em 1979, nem chega a ser um dos meus favoritos do grupo. Contudo, desde que o conheci há uns vinte e poucos anos, tudo o que já li, vi e ouvi sobre essa obra conceitual escrita pelo baixista e vocalista Roger Waters, que também envolve um filme e um show sob o mesmo tema, sempre me deixou bastante frustrado pelo fato de não ter tido a oportunidade de conferir ao vivo a apresentação criada pelo Floyd a fim de representar o isolamento que o personagem Pink causa a si mesmo e sua eventual libertação do muro que criou em sua mente.




Já assisti ao filme diversas vezes e ouvi o disco incontáveis outras. Até encontrei com o auxílio da internet alguns bootlegs mal filmados com a apresentação original executada em 1980 e 1981, quando o grupo realizou 29 shows que quase os levaram à falência, sendo este um dos motivos para a separação do quarteto pouco tempo depois. Assistir The Wall ao vivo era, eu tinha certeza, um sonho impossível!




Até que, em 2010, meu irmão e nosso colaborador Mairon Machado estava na Europa e enviou-me um e-mail relatando que Waters estava em turnê pelo Velho Continente executando sua obra prima na íntegra, em um conceito atualizado do show de 1981. Foi quando decidimos que, não importava se fosse em São Paulo, Rio de Janeiro ou Buenos Aires, não perderíamos a oportunidade de presenciar a história sendo refeita trinta anos depois. Afinal, presenciar um show desse porte em Porto Alegre era bastante improvável.
Micael e o palco pré-montado

O tempo passou e Waters anunciou sua turnê sul-americana. E, surpresa maior, a capital gaúcha estava no roteiro! Em novembro de 2011, no primeiro dia de vendas, meu irmão garantiu nossos ingressos, e a espera tornou a ansiedade quase insuportável. Por diversas vezes disse a conhecidos que eu aguardava essa apresentação havia 30 anos, embora nem soubesse o que era Pink Floyd naquela época. Ocorre que não é todo dia que o passado vem lhe visitar ou que os sonhos se realizam!

Finalmente o 25 de março de 2012 chegou, e rumamos ao estádio Beira-Rio a fim de conferir a história sendo refeita na nossa frente. Chegamos ao local por volta das 15 horas da tarde, e, graças ao atraso de uma hora para a abertura dos portões (inicialmente marcada para as 16 horas), acabamos adentrando gramado apenas às 18 horas e 30 minutos. Tudo bem, afinal, estávamos de frente ao enorme muro (117 metros de largura por 11 metros de altura) semiconstruído, o qual aguardávamos ansiosamente para ver totalmente erguido e, ao final da apresentação, tombado ao chão.




Graças à dificuldade que os 48 mil presentes tiveram de adentrar o estádio - muito em função da demora na abertura dos portões, as filas eram gigantescas do lado de fora, tornando caótico o trânsito nas redondezas -, o show foi atrasado em quarenta minutos. Às 20 horas e 40 minutos as luzes se apagaram e “Outside the Wall” começou a ecoar nos alto-falantes do estádio do Sport Club Internacional!
Visão geral do pré-palco, com 117 metros de largura e 11 metros de altura

Fogos de artifício anunciaram o início de “In the Flesh?”, e, dali por diante, o que se viu foi um dos melhores espetáculos que Porto Alegre já presenciou. Se musicalmente o show não trazia muitas novidades a quem já decorou todas as passagens sonoras de Is There Anybody Out There, disco ao vivo extraído da turnê original, lançado em 2000, visualmente, a apresentação deixava boquiaberto até mesmo quem já cansou de assistir ao filme "The Wall" ou aos bootlegs da tour de 1980.

Com o avanço da tecnologia nos últimos 30 anos, Waters conseguiu criar um espetáculo ainda mais impactante que o anterior. Ainda que o palco fosse ridiculamente baixo e que a empolgação da multidão que lotava o gramado do Beira Rio por vezes não permitisse que se enxergasse com clareza o que se passava, havia muito para se ver nas partes do muro que já estavam construídas ou no imenso telão circular ao centro do palco. Assim, quando a réplica do avião da segunda guerra mundial se chocou contra o muro ao final da primeira música (causando um impacto menor que o do show original, diga-se de passagem, apesar de toda a pirotecnia envolvida) e abriu espaço para “The Thin Ice”, já estávamos todos cativados pelo “ditador” Pink. E o show estava apenas no começo!




Falar do lado musical da apresentação seria chover no molhado. A banda reunida por Waters para esta excursão - com destaque para os tecladistas Jon Carin, ex-“Pink-Floyd-sem-Roger-Waters”, e Harry Waters, o “filho do homem”, além dos guitarristas Snowy White, que participou da turnê original, e Dave Kilminster, que executou muito bem a maioria dos solos, e do cantor Robbie Wyckoff, que substituiu a contento as partes vocais de David Gilmour - é extremamente competente, e os efeitos pré-gravados dos quais nunca nos cansamos (pássaros, vidros quebrando, sirenes, ligações telefônicas, etc.) funcionaram à perfeição.

Waters, começando a construir o muro de Pink *

A disposição do áudio pelo estádio era tão bem feita que, quando o som do helicóptero que abre “The Happiest Days of Our Lives” surgiu nos alto falantes, era impossível não olhar para os lados ou para cima à procura do mesmo, pois não parecia crível que não houvesse mesmo um veículo pairando acima de nossas cabeças! Lembrou-me muito os cães de “Dogs” (Animals), que pareciam nos cercar durante sua execução na apresentação feita por Waters em 2002, também na capital gaúcha. Se ajustar o som em um local aberto nunca foi fácil para ninguém, a equipe de Roger deu uma aula de como fazê-lo, ao menos para quem estava no gramado do Beira-Rio. Ao que parece, segundo informações que obtive, a qualidade sonora não era tão cristalina para quem estava nas arquibancadas.




No aspecto visual, as informações eram tantas, que a impressão era de que bastava piscar os olhos para que perdêssemos algo interessante. A citada “The Thin Ice” trouxe uma foto do pai de Roger Waters em uma espécie de ficha de informações, dando seu nome, cargo no exército, data e local de sua morte durante a Segunda Guerra Mundial. Ao longo da música, outras vítimas do “terrorismo de Estado”, como Roger as chamou (em bom português, pronunciado sem o auxílio de um texto escrito, como muitos o fazem), apareceram no telão ou nos dois lados do muro.

O gigantesco boneco do professor opressor e as crianças da ONG Canta Brasil,
acompanhando Waters em "Another Brick in the Wall part II" *
Imagens do oceano acompanharam a primeira parte de “Another Brick In The Wall”, e, ao final da canção, e ao som do citado helicóptero, o enorme boneco inflável representando o “professor repressor” surgiu como que saído do nada no lado esquerdo do palco (direito de quem assistia), anunciando a muito aguardada “The Happiest Days Of Our Lives” e o hino “Another Brick In The Wall – Part II”, no qual crianças da ONG Canta Brasil, da cidade de Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre, entraram no palco para executar as vozes do coral da canção. As crianças interagiam com o boneco do professor, o qual por vezes parecia que iria pisotear os pequenos, e às vezes se encolhia assustado por suas ameaças. Indescritível!

Waters e a foto de Jean Charles ao fundo, um dos homenageados da noite *
Waters adicionou uma espécie de coda à canção, com uma letra dedicada ao brasileiro Jean Charles de Menezes (morto por engano pela polícia inglesa em 2005 ao ser confundido com um terrorista), enquanto a foto do homenageado aparecia no telão, para o aplauso da multidão. O cantor então se dirigiu pela primeira – e única – vez ao público, falando em português, agradecendo a todos os presentes e dedicando o show a Jean Charles e a todas as vítimas do terrorismo de estado. 




Em inglês, disse que quando escreveu “The Wall” nos anos setenta pensava que a obra fosse sobre ele, mas que hoje sabe que é também sobre todos aqueles que sofrem injustiças no mundo, e anunciou que na próxima canção, “Mother”, seria acompanhado pela imagem e o som dele mesmo quando jovem. Assim, uma projeção sua no Earls Court em 1980 surgiu no telão e nos lados do muro, interpretando a canção e sendo acompanhada palavra por palavra por todo o público. Emocionante! Um boneco inflável representando a superprotetora mãe de Pink ficou meio escondido no canto do palco, e, quando Waters cantou a frase “Mother, should I trust the government?” (“Mãe, devo confiar no governo?”), um imenso “Nem Fudendo” em português mesmo surgiu projetado no muro, em resposta à questão!

Avião jogando "bombas" com o símbolo da estrela de David,
simbolizando as guerras religiosas
A linda “Goodbye Blue Sky” trouxe aviões militares jogando sobre o povo, ao invés de bombas, símbolos das principais causas de guerras no mundo atual: religiões, capitalismo, comunismo e consumismo, dentre outros, foram representados pelas projeções que tomavam conta do palco. A mensagem era forte, e continuou em “Empty Spaces” (com o famoso “ato sexual’ das flores sendo projetado no telão) e “What Shall We Do Now?”, onde as imagens originais do filme foram utilizadas para reforçar o conceito de opressão do povo pelo Estado. 




“Young Lust” trouxe imagens de belas mulheres dançando sensualmente (algumas semi-nuas), terminando com a imagem de uma groupie entrando no quarto de Pink antes do começo de “One of My Turns”, onde a garota aparece em cenas sensuais ao lado de Pink (que aparenta estar distante e desconfortável, e tem seu rosto coberto por rabiscos). “Don't Leave Me Now” mostrou Waters sentado no muro, interpretando a dor de Pink ao ser abandonado pela esposa, e mostrando que talvez não fosse um ator tão ruim quanto o diretor Alan Parsons o considerou quando surgiu a oportunidade do cantor representar o personagem principal da película baseada no disco (e que acabou sendo interpretado pelo também cantor Bob Geldof).

O muro sendo gradativamente construído
Gradativamente, o restante do muro ia sendo erguido, e, durante “Another Brick in the Wall Part III” e “The Last Few Bricks”, finalmente toda a extensão do palco estava tomada por ele. Restava apenas um pequeno espaço em aberto, e foi nesta abertura ao centro do muro que Waters surgiu para cantar “Goodbye Cruel World”. Ao final da canção, o último tijolo foi acrescentado e, finalmente, “The Wall” estava presente por inteiro, e o primeiro disco havia terminado. 




Uma voz anunciou um intervalo de vinte minutos, e a palavra “Intermission” surgiu no imenso muro, sendo logo depois substituída por outras imagens de vítimas do terrorismo ao longo do mundo, retomando o conceito da necessidade de paz e tolerância que Waters parece querer passar com esta nova versão de sua ópera rock.

Os irmãos Machado no intervalo de The Wall Live,
com o muro projetando mortos de vítimas do terrorismo ao fundo
Ouvir “Hey You” vendo apenas o muro à nossa frente na volta do intervalo foi indescritível. Durante a música, as projeções fazem com que o muro pareça se abrir, e uma imagem do boneco de pano que representa a psique destruída de Pink surge lá no fundo, correndo em nossa direção através da abertura criada virtualmente, para se chocar com uma parede invisível antes de conseguir escapar do muro! Impressionante, assim como ouvir uma voz vinda lá de trás perguntando se “há alguém aí fora” (“Is There Anybody Out There?”) nos fez a todos respondermos “Yes!” em uníssono.




Parte do muro é então retirada, e Snowy e Dave surgem por trás do espaço vazio interpretando o belo tema de violões que compõem esta canção. Ao final, as atenções se voltam para nosso lado esquerdo, onde Waters surge em seu desolado quarto de hotel no meio do muro para cantar “Nobody Home”. Esta imagem, que tanto me fascinava nos bootlegs em vídeo a que já assisti, trouxe um pouco de frustração para mim, devido a Waters estar pouco acima do chão em relação à turnê original. Mas, de resto, não há do que reclamar da tocante interpretação do “ator” Roger Waters nesta parte.

"Comfortably Numb", um dos principais momentos do show
“Vera” trouxe imagens de crianças reencontrando os pais que voltam da guerra, e a frase título de “Bring The Boys Back Home” ocupou todo o muro durante sua execução. E então era chegada a hora do ápice musical do espetáculo, a excepcional “Comfortably Numb”, com Roger à frente do muro interpretando a primeira parte desta obra prima, acompanhado pela emocionada multidão. Por sobre o muro, à nossa esquerda, surge então Robbie Wyckoff cantando as frases originalmente gravadas por Gilmour, para logo depois, também sobre o muro, Dave Kilminster aparecer à nossa direita executando o primeiro e mais curto solo. O esquema se repete na segunda parte da canção, e chega enfim o momento do solo final de guitarra, uma das melhores coisas já feitas com o instrumento no mundo da música, inegavelmente o clímax da canção, e que um grupo de idiotas próximo a mim conseguiu destruir completamente ao começar a bater papo em voz bem mais alta que o recomendável. Depois de alguma reclamação (pelo menos da minha parte, bem veemente, admito), os babacas silenciaram para que pudéssemos ouvir o resto do solo, mas o momentum já estava lamentavelmente perdido.

O porco, com uma mensagem em alusão direta à Porto Alegre
“The Show Must Go On” anunciou a chegada da banda fascista de Pink, a Bleeding Heart, e, com todos uniformizados à frente do muro, “In The Flesh” foi executada com perfeição, com muita gente (eu inclusive) repetindo o gesto dos punhos cruzados que Pink faz no filme. Durante a canção, o famoso porco inflável surge sobre a plateia, com várias mensagens de ordem gravadas em seu corpo, dentre as quais se destacava a frase "2,85 é roubo", em alusão ao preço da passagem dos ônibus circulares de Porto Alegre, e que pode ser vista pichada em vários lugares da cidade. Ainda com o porco sobre nossas cabeças (chegando tão perto que foi possível toca-lo diversas vezes, em algo que pode parecer estúpido para alguns, mas que foi marcante para todos que, como eu, conseguiram fazer o mesmo), “Run Like Hell” e “Waitng For The Worms” retomaram as projeções do filme, além de vários outros efeitos visuais que quase sobrecarregavam nossa capacidade de compreensão, e “Stop” trouxe apenas Waters à frente do palco e o citado boneco de pano (agora “em pessoa”) sentado sobre o muro, com os refletores voltados para si.




“The Trial” utilizou as imagens do filme para exemplificar o julgamento, e era difícil prestar atenção a Waters andando pelo palco durante a execução da música com tanta coisa acontecendo ao longo do muro. Quando o “verme-juiz” proclama a sentença, o público começou a ordenar “Tear down the wall” (“derrubem o muro”) em uníssono, para que o mesmo viesse ao chão com um grande estrondo, para imenso delírio da multidão.

Micael e o muro derrubado
O espetáculo chegava ao fim com todos extasiados, e “Outside The Wall”, agora na íntegra, trouxe os membros da banda sem os uniformes para frente das ruínas, carregando instrumentos acústicos que eram usados para interpretar a canção. Nos dois lados do que restava do muro, as imagens de uma criança árabe e de outra judia eram projetadas, retomando a ideia de tolerância e compreensão que todo o show carregou. Após serem apresentados por Waters, um por um os músicos iam entrando por uma passagem no chão para baixo do palco, até sobrar apenas Roger, que, com o seu nome gritado por todos, agradeceu e se despediu do público, encerrando um espetáculo que dificilmente será superado tão cedo, e que, em termos visuais, só consigo comparar à primeira apresentação do próprio Waters na capital gaúcha dez anos atrás. Simplesmente fantástico!




Terminamos o show extasiados, ainda precisando de vários momentos para nos livrarmos da espécie de transe a que fomos levados pelo drama de Pink. A tumultuada saída do estádio e a dificuldade em conseguir transporte de volta para casa (mostrando que a estrutura de Porto Alegre ainda está muito aquém do necessário para eventos deste porte) ficaram obscurecidas pelas lembranças do que havíamos acabados de presenciar, e que sem dúvida não sumirão de nossas memórias tão cedo! Resumindo, e em bom gauchês: “um baita show”!



O palco pré-montado e o bolha com seu ingresso

Por Mairon Machado

Tchês, eu apenas vou fazer um complemento ao texto do Micael, até por que muito do que ele escreveu resume excelentemente o que aconteceu no último domingo. A minha história com The Wall é muito forte. Foi o primeiro disco que eu ouvi na minha vida do início ao fim, foi o primeiro que me chamou a atenção para uma letra, foi o primeiro que me fez ver um filme de música (o próprio The Wall), enfim, eu sempre tive The Wall como um dos meus pilares musicais.






Tudo o que eu encontrei sobre o álbum, eu li, ouvi, e vi, como manda o roteiro de um verdadeiro bolha como eu. O documentário Behind the Wall acho que já vi umas trinta vezes, mas nada supera os vídeos bootlegs da turnê desse disco. Tenho uns dez shows diferentes baixados no meu HD, e vi muito, sempre com a ilusão de que nunca eu poderia ver isso ao vivo, e me servia de consolo que poucos locais (29 como citado pelo Micael) tinham visto uma das mais espetaculares turnês da história da música, que eu inclusive narrei no meu blog, como vocês podem conferir aqui.






Quis o destino que Roger Waters, o cérebro criador de tal obra-prima, viesse ao Brasil, e mostrasse para os meros mortais uma recriação do que foi apresentado ao público em 1980. Digo recriação por que não da para comparar o que é The Wall Live com o que era a The Wall Tour. São dois shows diferentes apresentando o mesmo disco.






As próprias canções do The Wall não são apresentadas respeitando as versões originais. Pequenas modificações aqui e ali, a ausência fortemente sentida de David Gilmour em diversos solos, ampliações e novidades inesperadas, fazem da apresentação de Waters algo novo, e inigualável.


Vários são os detalhes que se perderam do show de 1980. As máscaras que abriam o show não são mais usadas. Waters já surge com óculos escuros. Não há mais os fones de ouvido que marcaram as fotos registradas durante The Wall Tour, ou a roupa de médico característica de "Comfortably Numb", assim como os filmes apresentados no muro foram em sua maioria modificados. Dizer que isso piorou seria uma barbaridade, e eu posso afirmar que, se o charme do "analógico" de 1980 foi perdido, o avanço tecnológico abre horizontes que vendo os vídeos originais, jamais seriam pensados.


Como eu disse, a ausência mais sentida é Gilmour. O solo de "Comfortably Numb" em nada se iguala a magia que o hoje gordinho Gilmour conseguia (e ainda consegue) retirar de sua Fender Stratocaster, por mais que o atual guitarrista de Waters se esforce. Chega a ser vergonhoso a tentativa de tocar igual a Gilmour. Vários são os erros, atravessadas, batidas inversas, mas claro, tudo justificável, pois grande parte do show é feito com uma iluminação parca, atrás do gigantesco muro, e por músicos que não são do porte dos caras que consolidaram o rock progressivo (Waters, Gilmour, Rick Wright e Nick Mason, ou seja, o Pink Floyd).


Mas isso é apenas para tentar achar um defeito em algo tão grandioso. Nada se compara ao que foi visto no último dia 25 de março. No fim de semana onde Porto Alegre viu talvez o maior público para uma apresentação solo (65 mil pessoas lotaram o Anfiteatro Pôr-do-Sol para ver Maria Rita homenagear sua mãe, Elis Regina, no projeto Viva Elis, apresentado dia 24 de março), as 48 mil pessoas que estiveram no Beira-Rio já entravam no estádio e se deparavam com o gigantesco pré-palco, ou melhor, o muro parcialmente construído.



O avião que colide com o muro em "In the Flesh?", escondido nos refletores do Beira-Rio


Eu, ao ver aquilo, enorme, tomando conta do estádio, engasguei de emoção. Afinal, eu começava a ter noção de que um sonho de infância, inimaginável há quatro anos atrás, estava prestes a se tornar realidade. O avião escondido entre os refletores do Beira-Rio quase passou despercebido, até a hora de colidir com o muro logo na primeira música do show, "In the Flesh?".


E foi com "In the Flesh?" que começamos a viajar pelo show. O muro foi sendo construído vagarosamente, com diversos "operários" entrando e saindo de cena, trazendo tijolos, suportes, andaimes, e diversos apetrechos que era possível ver claramente, entre as diversas câmeras fotográficas que registravam tudo na maldita inclusão digital, a qual foi compensada pelo pedido de não usar flash para bater as fotos, atendido pela maioria das pessoas (principalmente por que a filmagem era mais importante do que as fotos). Detalhes novos surgiam, destacando as imagens das vítimas de terrorismo, o Capitalism escrito no formato das letras da Coca-Cola, uma morena nua demasiadamente gostosa dançando durante "Young Lust", e até Waters falando em um português quase perfeito, e melhor ainda, sem ler. Deslumbre total!


O muro prestes a ser concluído



Quando o muro foi concluído em "Goodbye Blue Sky", e o último tijolo tapou o rosto de Waters, um arrepio correu solto pela minha espinha, e ao ver as luzes acendendo-se para o intervalo, com o muro inteiro repleto de fotos de vítimas do terrorismo, as lágrimas surgiram. A emoção de ver algo que jamais pensei em poder ver, sabendo toda a história, foi maior do que o cansaço da longa espera na fila, de enfrentar a "bendita" inclusão digital nas pontas dos pés, e de ter visto a primeira parte do show com a boca-aberta, não acreditando na centena de informação que meus olhos viam naquele muro.


"Hey You" abriu a segunda parte do show, as lágrimas sumiram e os olhos se voltaram para o enorme muro, agora totalmente recheado por imagens dos projetores. Aqui pôde ser conferida a perfeição de The Wall Live. Não existia um risco que mostrasse o muro como um muro. As projeções encaixavam-se sensacionalmente, e não tem palavras que descreva o que acontece no palco de The Wall Live.


Waters e sua metralhadora *



Por vezes, parece que não existe muro. As imagens tomam conta do muro com tamanha nitidez que o que parece termos diante de nossos olhos é a maior televisão do mundo. E o som meus caros. O som é quadrifônico, saindo de todos os lados do estádio, e atingindo o peito e os ouvidos dos fãs com uma potência impressionante. Quando Waters deu tiros na sua metralhadora, era como que balas estivessem saindo do lado de sua cabeça. O helicóptero de "The Happiest Days of Our Lives" com certeza deveria estar sobre a minha cabeça.

A embasbacante imagem durante "Comfortably Numb"


O desbunde aumenta em "Comfortably Numb". Apesar do solo tinhoso de Dave Kilminster, a parte visual foi o máximo do show. Um tom sujo e escuro tomou conta do muro durante quase toda a canção, explodindo em uma estonteante combinação de cores quando Waters socou o muro durante o solo de Kilminster, e que combinadas com as elevações que surgiam do show, formavam um cenário lindo, encantador, ou seja, de cair o queixo.


Tivemos também direito a diversão, quando o porquinho surgiu do lado esquerdo do palco e acabou descendo exatamente aonde eu estava. Pude tocar em suas patas, agarrar um pedaço de um símbolo sagrado do Pink Floyd, e ter a certeza de que não estava sonhando debaixo das estrelas que iluminavam o céu majestoso de Porto Alegre.


Os martelos andando *

Os martelos andando, Waters berrando no megafone, o quarto de hotel, os gigantescos bonecos do professor, da esposa e da mãe (esse último, eu infelizmente não vi), os figurantes que encenavam tudo conforme Waters coordenava, tudo aumentava a perfeição de um grande espetáculo, que chegou no seu esplendor durante "The Trial".


A canção mais esperada da noite por este que vos escreve arrancou mais lágrimas do mesmo. O Beira-Rio em silêncio, ouvindo o julgamento de Pink, e depois seguindo as ordens de "derrubar o muro" aos gritos, concluindo com uma queda assustadora de grande parte do muro sobre os fãs, foi o prenúncio de que o show estava por acabar, mas que cada centavo investido, a longa viagem de mais de 10 horas entre São Borja (cidade onde resido atualmente) e Porto Alegre, o calor, o cansaço, a inclusão digital, enfim, todos os contratempos valeram a pena. Claro, a parceria dos companheiros de viagem Larissa e Alexander, e dos colegas de show Letícia, João, Everton, Pedro, Diogo, o casal de Floripa que esqueci o nome, já era algo que valia a pena a presença no show, mas o espetáculo total foi imbatível.


O bolha e o muro caído

Os instantes finais, com os músicos saindo pouco a pouco sob o palco, foram o delírio coletivo de algo que jamais Porto Alegre irá esquecer. Com o muro derrubado, fomos saindo, anestesiados com o que tínhamos visto, e que superou de longe o que Paul McCartney havia apresentado no mesmo Beira-Rio no dia 07 de novembro de 2010.


É outro show em comparação a 1980, com uma temática muito mais política e social do que era  a história original de Pink, centrada apenas em um único personagem. A nova versão abre ainda mais o leque de opressões, e combina muito bem com o mundo atual.




Se tivesse que definir em uma frase, diria apenas: "Vá ver e se encante". Em uma palavra: "Inesquecível".

terça-feira, 27 de março de 2012

Os Sete Pecados do Rock Nacional - Parte V: A AVAREZA (Titãs - Tudo ao Mesmo Tempo Agoraa[1991])



Por Mairon Machado


Enquanto o Engenheiros do Hawaii alcançava o posto de maior banda de rock do país, o Titãs, que em 1990 também era considerado um dos maiores nomes do rock nacional, fugia totalmente dessa posição. O mais curioso é que isso ocorreu por livre e espontânea vontade do grupo. 

Depois de 10 anos na estrada, o Titãs havia lançado cinco discos: Titãs (1984), Televisão (1985), Cabeça Dinossauro (1986), Jesus Não Tem Dentes No País dos Banguelas (1987) e Õ Blésq Blom (1989). Além disso, se o Engenheiros do Hawaii tinham participado de uma mini-turnê pela Rússia em 1989, o Titãs um ano antes há havia participado do famoso Festival de Jazz de Montreux, resultando no álbum ao vivo Go Back (1988). Cabeça Dinossauro era considerado pela mídia como o melhor disco do grupo (e um dos melhores da história do Brasil), mostrando uma agressividade e letras ditas inteligentes, principalmente na obra de Arnaldo Antunes (vocais), e o Titãs era sem dúvidas, um dos maiorais no rock nacional. 

O octeto paulistano tocava nas rádios como poucas bandas (talvez só o Legião Urbana conseguisse superar o sucesso do Titãs), fazendo da sujeira e agressividade do grupo uma marca característica. Porém, após Go Back, o grupo deu uma guinada de 180º, e com Õ Blésq Blom, passou a experimentar com a Tropicália, a música eletrônica e com o rock mais simples. 

Titãs: Charles Gavin, Tony Bellotto, Branco Mello, Arnaldo Antunes e Sérgio Britto (em pé);
Paulo Miklos, Marcelo Fromer e Nando Reis (Agachados)
Como resultado, o álbum vendeu 220 mil cópias em apenas um ano, e revelou que não somente Arnaldo era o homem das letras, mas todos os demais membros da banda também eram ótimos compositores. Assim, os nomes de Branco Melo (vocais), Sérgio Britto (vocais e teclados), Paulo Miklos (vocais, saxofone), Tony Bellotto (guitarras), Nando Reis (vocais, baixo) e Marcelo Fromer (guitarras) começaram a aparecer com mais destaque, com exceção do baterista Charles Gavin, que ficou restringido a tocar seu instrumento, e auxiliar no processo de produção. Canções como “Flores”, “O Pulso”, “Miséria” e “32 Dentes” não paravam de tocar nas rádios. 

Apoiado em programações eletrônicas, o disco gerou problemas internos. Bellotto e Fromer ficaram desagrados com a pouca presença das guitarras, enquanto Arnaldo viu diminuir seu espaço como um dos principais letristas do grupo. 

O sucesso então trouxe indiferenças dentro da banda, e a solução foi tentar voltar às raízes. Para isso, deveriam economizar em letras, composições e melodias, abandonando o que tinha feito do Titãs o grande grupo que era até então, e cometendo um pecado que marcaria a banda para sempre a partir de então, a AVAREZA. 

O sentido da AVAREZA aqui é exatamente na economia de criatividade que o octeto resolveu empregar para o próximo álbum. Letras pobres, acordes simples, sem invencionismo ou eletrônicos, além de uma produção independente e o forte apoio da WEA (novamente ela).

Titãs na época de Tudo ao Mesmo Tempo Agora
Então, o grupo saiu do mundo eletrônico para o rock nu e cru, poupando esforços e fazendo um disco o mais simples que pudesse. Porém, a simplicidade refletiu em letras com sentidos tão pequenos que às vezes pareciam mais um aglomerado de palavras. Além disso, a ausência da censura fez com que os membros resolvessem apostar em temas não usuais, como falar sobre o relacionamento de um casal de um ponto de vista agressivo, e nojento por vezes, além do forte uso de palavrões na maioria das faixas do LP. 

Gravado entre junho e agosto de 1991, em uma casa na Granja Viana, em Cotia (São Paulo), para ter uma sonoridade "mais caseira", Tudo ao Mesmo Tempo Agora foi lançado em 23 de setembro de 1991, e causou tanto impacto quanto foi o lançamento de Psicoacústica. Afinal, a população jovem que tinha sido conquistada com Õ Blésq Blom não conseguiu assimilar as distorções e as letras agressivas do disco, bem como exatamente em 1991, o sertanejo havia tomado conta da mídia, assim como o Pop (que havia feito do Engenheiros do Hawaii a banda do ano de 1990). 

Segundo Tony Bellotto: "Esse disco desde o começo já teve uma vontade de a gente tocar junto, que era algo que a gente tinha perdido um pouco de vista nos últimos LPs, que era captar a emoção como se fosse ao vivo, no palco, tocando de verdade, um de olho para a cara do outro (...) e optar por um som básico, de rock, onde sobressairiam as guitarras, a bateria acústica e o baixo". Essa frase de Bellotto, dita para um documentário lançado sobre a gravação do LP, explica a praticamente ausência dos teclados em Tudo ao Mesmo Tempo Agora, e consequente ausência de Sérgio Britto, tornando o álbum extremamente visceral.

Único disco do Titãs a ter produção apenas dos oito membros (sem a participação do famoso produtor Liminha, que era considerado o George Martin do grupo), Tudo ao Mesmo Tempo Agora conta com quinze canções, cujas autorias foram dividas entre todos os membros (embora nem todos tivessem participado da composição de todas as canções). 

O álbum abre com uma homenagem à vagina, chamada “Clitóris”, onde o sustain de uma guitarra agonizando, e carregada de sujeira, traz as batidas mezzo eletrônicas, mezzo samba da bateria, para Miklos começar a entoar o nome da canção, acompanhado por um ritmo grudento das guitarras, com destaque para o baixo de Nando Reis. Branco e Britto acompanham complementando a voz de Miklos, e a canção permanece sempre no seu ritmo dançante e envolvente, com exceção de uma sessão mais marcada, onde Miklos canta “Virgem surja, ah! surja suja / Corpo surja, oh! mente surja imunda / Em cada berço que esse esperma espesso inunda / Em cada fosso que esse gozo grosso suja” que leva ao estranho solo de teclados, enquanto Miklos canta as absurdas frases acima. A letra é repetida, enaltecendo o clitóris, levando para mais uma participação solo de Britto, a sessão marcada e a conclusão com outra participação solo dos teclados, assim como o longo sustain agonizante do início da canção. 

Depois, temos “O Fácil é o Certo",com um pesado riff de guitarra, levando ao acompanhamento de baixo e bateria tipicamente grunge. O riff das guitarras sobrem à medida que Britto canta a letra da canção, uma das poucas a não conter palavrões. O refrão que embaralha as palavras que compõem o nome da canção leva ao insinuante e pesado solo de guitarra, com vocalizações que acompanham o ritmo das guitarras, para Britto cantar a segunda parte da letra, que leva ao encerramento da canção com a repetição do refrão. 

As ofensas, apesar de mais sutis, voltam em “Filantrópico", com um riff pegado das guitarras e do baixo, lembrando um pouco a introdução de "Immigrant Song" (Led Zeppelin), e com Nando Reis tocando com tanta fúria que nem parece ele. Branco é o responsável pelos cuspidos vocais da canção, gravando na mente do pobre coitado que está ouvindo as frases “acumulando raiva e rancor, raiva, rancor”. Uma das melhores canções do disco, com uma agressividade rara até então para um disco do Titãs, mesmo em comparação à Cabeça Dinossauro, e que só seria superada em Titanomaquia, fora a performance insana do baixo de Nando Reis e das guitarras de Fromer e Bellotto. 

O slide guitar de Bellotto se faz presente na ótima “Cabeça", agora fazendo uma analogia com o membro humano, apesar de uma letra simples e quase sem sentido cantada por Miklos, de um boogie pesado que lembra os momentos do hard setentista, com destaque dessa vez para as viradas de Gavin e claro, a performance endiabrada do slide guitar, que encerra esse petardo com ensurdecedores batidas nas cordas. "Já" abre com o tema do baixo feito sobre os dedilhados da guitarra. Nando canta a canção, uma série de perguntas sobre acontecimentos que podem ter acontecido na vida de um cidadão. A canção vai ganhando peso, chegando ao refrão, onde o riff ganha espaço enquanto o nome da canção é entoado. Depois, “Eu Vezes Eu", cantada por Britto, diminui o ritmo, com o baixo de Nando comandando o riff mais simples, lembrando muito os rocks de U2 e Smiths, ainda mais pelas linhas de guitarra de Bellotto e Fromer,mas de uma canção que não está à altura das demais. 

O lado A encerra-se com "Isso para Mim é Perfume", talvez a mais agressiva das canções do LP, com letra recheada de palavrões. Guitarra, baixo e bateria trazem o riff pesado da mesma, com sessões intrincadas, para Nando cantar aquilo que ele considera ser o máximo de intimidade a que se pode chegar num relacionamento, com palavras como ("Isso para mim é perfume / Suor, fedor / (...)/ Cheirar sua calcinha suja na menstruação / (...) / A cabeça do pau faz esporra de leite pra tomar de manhã / (...) / Amor, eu quero te ver cagar”. A agressividade dessa canção,musicalmente falando, é muito boa, mas é óbvio que a escatalogia da letra acabou minando as mentes ainda conservadoras do início da década de 90, que baniram a canção e massacraram a banda. 

Capa interna e encarte de Tudo ao Mesmo Tempo Agora
Como se não bastasse, a canção que abre o Lado B (e que foi escolhida como música de trabalho) quase supera (se não supera) as polêmicas e agressões de “Isso Para Mim É Perfume”. “Saia de Mim" começa com o riff da guitarra, trazendo a marcação forte do baixo de Nando, imitando o riff, enquanto Gavin soca a bateria. A performance de Nando tem que ser exaltada novamente. A partir de então, Arnaldo passa a cantar a letra, e cospe palavras fortes, dizendo: “Saia de mim como um peido / (...) Saia de mim como um escarro / espirro, pus, porra, sarro / Sangue, lágrima, catarro”, sendo a última parte da letra sobre um acompanhamento cavalgante, com pequenas intervenções do teclado fazendo algumas notas. O solo mesclado de guitarra e sintetizadores faz uma barulheira infernal, e Arnaldo repete a letra, sempre com o riff cavalgante do baixo e da guitarra, mas agora com a presença mais destacada dos teclados, encerrando essa paulada com a repetição da segunda parte da letra, e com Arnaldo gritando “Saia de mim a verdade” por diversas vezes, enquanto as guitarras e o baixo mandam ver no riff. 

A partir de então, o grupo manera nas letras, mas não em agressividade. Na canção seguinte, “Flat-Cemitério-Apartamento”, a guitarra aparece com destaque, sendo a mesma uma curta canção onde Branco apenas entoa palavras que formam sua letra, com o refrão sendo um pesado riff que acompanha o entoamento do nome da mesma, entre insanas notas do sintetizador, que imita uma sirene, encerrando com um breve solo de guitarra, e com mais uma destacada participação do baixo, trazendo "Agora", onde o riff de guitarra e baixo apresenta a voz de Sérgio, cantando uma canção mais amena em termos de letra quando comparada com as duas primeiras, mas que mesmo assim é uma paulada agressiva, principalmente pela levada da mesma. 

O riff punk de "Não é por Não Falar" da guitarra traz a voz de Sérgio, cantando tristemente. A segunda guitarra, carregada de wah-wah, passa a solar ao fundo, enquanto o riff punk inicial acompanha a letra da canção. A bateria entra, e então, o ritmo simples foge do que estávamos acostumados a ouvir no álbum, o que não torna “Não é por Não Falar” uma canção desprezível, mas talvez, uma das mais fracas do LP, ainda mais com seu solo-vinheta de sintetizador que encerra a canção. 

A marcação da bateria traz a voz de Branco cantando a curta "Obrigado", com um riff extremamente Ramones, e com uma letra extremamente econômica, falando apenas “Obrigado, de nada, obrigado a nada”, seguida por "Se Você Está Aqui", com uma levada swingada das guitarras que acompanha os vocais de Nando, em mais uma letra simples. Destaque para o refrão, cantado com agressividade pelas vozes de Arnaldo, Branco e Nando, e para a participação do piano elétrico, lembrando The Doors em alguns momentos. 

A penúltima canção é "Eu Não Sei Fazer Música", com uma bela introdução de guitarra, bateria e baixo, onde Branco solta um urro fenomenal. A partir de então, ele canta agressivamente, em um ritmo muito bom, que vai socando a sua cara e você gosta ao mesmo tempo. As guitarras, o ritmo alucinante de Gavin, e claro, a interpretação despojada e raivosa de Branco, dão o tempero essencial para fazer dessa uma das minhas favoritas em Tudo ao Mesmo Tempo Agora, que encerra-se com a maluca “Uma Coisa de Cada Vez", canção que surgiu de um improviso nas gravações do LP, onde sobre as mudanças de acorde do órgão de Miklos, e a levada de baixo, wah-wah e bateria, Arnaldo entoa o nome da canção e do álbum alternadamente, sendo a prova final da AVAREZA do Titãs para com suas letras. 

A capa do álbum, feita por Fernando Zarifi, apresentava uma mistura de vísceras e imagens distintas, além das radiografias posadas de alguns membros do grupo estampada na capa interna. Apesar de ter vendido pouco menos de 150 mil cópias, Tudo ao Mesmo Tempo Agora foi considerado um fracasso comercial. Para piorar, a imprensa especializada caiu de pau no Titãs, e de forma fria (e por vezes desrespeitosa), criticou veemente o trabalho, e principalmente, as letras das canções. A escatologia de Tudo ao Mesmo Tempo Agora, genérica ao que havia sido idolatrada em Cabeça Dinossauro, era apedrejada com as duas mãos, recebendo a classificação de infantil, imaduro e fraco. A revista Bizz chegou a dizer que o grupo havia virado um dinossauro ultrapassado. Mas em questão de gosto pessoal, considero este o segundo melhor álbum do Titãs, perdendo apenas para seu sucessor.


Uma das últimas fotos como octeto
Apesar de todas as críticas, os paulistas seguiram de cabeça erguida. Sem dar bola para a imprensa (e esse era um dos objetivos, sair do foco), o grupo continuou suas apresentações pelo país, com destaque para o show na quarta edição do Hollywood Rock, em 1992, com duas apresentações: uma detonante somente com o octeto, e outra em uma jam session com o Paralamas do Sucesso, tida por muitos como um dos melhores shows já vistos no país. A linha thrash metal estava pronta para ser assumida de vez pelos paulistas. 

Mas, os resquícios de ter cometido um pecado como a AVAREZA começaram a surgir em dezembro de 1992, quando Arnaldo resolveu sair do grupo, alegando desentendimento musical. Na realidade, o que estava acontecendo é que o Titãs estava preparando-se para lançar o álbum mais pesado e controverso de sua carreira, Titanomaquia, o qual mergulhou profundamente no grunge que assolava o mundo no início da década de 90, principalmente pela colaboração com o produtor Jack Endino (responsável por lançar o Nirvana ao mundo, através do álbum Bleach, de 1986), e afastou ainda mais os fãs da era Go Back / Õ Blésq Blom. As influências no grupo suíço Celtic Frost brotavam em cada poro do vinil. Canções como “Estados Alterados da Mente” e “Dissertação do Papa Sobre o Crime Seguida de Orgia” são vistas (e ouvidas) pelos especialistas como pura inspiração nos suíços. 

Titanomaquia acabou tornando-se o álbum “ame ou odeie” do Titãs, mas não deixou de receber seu esculacho da imprensa, como escreveu André Barcinski à revista Bizz: “uma tentativa frustrada de ser grunge”. Também pesa (ao que consta em biografias não-autorizadas e sites dedicados ao gupo) que no período entre 1989 e 1993, quase todos (se não todos) os membros do Titãs estavam compondo sob forte influência de drogas, o que influenciou os mesmos a demonstrar esse lado mais agressivo nos álbuns Tudo ao Mesmo Tempo Agora e Titanomaquia

De qualquer forma, de uma hora para outra, o grupo resolveu voltar ao pop de fácil acesso, e fugiu totalmente da rota promissora que o esperava com ardência no heavy metal, que era a forte tendência de o grupo ir parar. Após um breve período de férias, onde Branco e Sérgio, junto da baterista Roberta Parisi, lançaram o álbum seminal Con El Mundo a Mis Pies (pelo grupo Kleiderman, em 1994), que mantinha a sonoridade dos dois últimos álbuns do Titãs até então, o grupo lançou Domingo (1995), voltando para o som mais simples dos tempos de Õ Blésq Blom

O disco que mudou o destino do Titãs

A partir de então, a maldição causada pelo pecado da AVAREZA começou a causar fatos que mudaram radicalmente a vida do Titãs. Primeiro, veio o convite (meio que forçado pelo sucesso do Paralamas do Sucesso em uma empreitada similar) para a gravação de Acústico MTV (1997), que colocou o grupo novamente nas paradas, mas por outro lado, desagradou toda a geração que havia sido construída com o lado pesado do grupo, já que claramente, o grupo havia encontrado dinheiro suficiente para largar o rock visceral e cru e partir para uma investida sem volta no pop para tocar em rádios. 

Depois, uma inesperada (e por que não indecente) participação do Titãs em um show do grupo de pagode Katinguelê (!), perdendo toda sua credibilidade ao cantarem a canção “Nem Cinco Minutos Guardados”, e em 1997, uma paticipação no especial de fim de ano do Roberto Carlos, cantando “Pra Dizer Adeus” e “É Preciso Saber Viver”, alavancaram as vendas de Acústico MTV, colocando o Titãs no topo das paradas nacionais, mas sem um pingo de respeito por parte de seus antigos fãs. 

Vieram ainda Volume Dois (1998), As Dez Mais (1999), trazendo apenas covers, e então, a triste e inacreditável morte de Marcelo Fromer. Para piorar, Nando Reis decidiu seguir em uma carreira solo de altos e baixos, mas principalmente, longe das luzes que encobriam o Titãs. E por fim, Miklos acabou virando ator global, e inclusive, participou de um show da dupla de sertanejo Chitãozinho e Xororó. 

Titãs 2012: Sérgio Britto, Paulo Miklos, Tony Bellotto e Branco Mello.
De um octeto agressivo para um quarteto sem sal
Vieram os terríveis A Melhor Banda de Todos os Tempos da Última Semana (2001) e Como Estão Vocês? (2001), além do quase impercebível Sacos Plásticos (2009), com músicas que os fãs mais radicais chamaram de “música de auto-ajuda”, como “Epitáfio” (A Melhor Banda de Todos os Tempos da Última Semana) e “Enquanto Houver Sol” (Como Estão Vocês?), bem como um álbum ao para a MTV e outro registrando uma apresentação ao lado do Paralamas do Sucesso, todos totalmente irrelevantes. A gota d’água foi a saída do baterista Charles Gavin no começo de 2010. 

As últimas notícias do grupo foram no último Rock in Rio, onde apresentaram-se (mais uma vez) ao lado do Paralamas do Sucesso. Para 2012, está previsto o lançamento de um novo álbum, além de uma turnê comemorando os 30 anos de carreira do grupo, trazendo como convidados Arnaldo Antunes, Nando Reis e Charles Gavin. 


Capa do VHS documentário sobre o LP

A queda vertiginosa do cavalo, que praticamente acabou com a reputação e a enorme legião de fãs que o Titãs teve na década de 80, sem sombra de dúvidas se deve ao fato revolucionário do lançamento de Tudo ao Mesmo Tempo Agora, e logo após, Titanomaquia

Incompreendido e fracassado, Tudo ao Mesmo Tempo Agora depois demonstrou ser um álbum à frente de seu tempo. Maria Bethânia regravou “Agora” no álbum Mar de Sophia (2006), enquanto Caetano Veloso confessou ter se inspirado no LP para gravar o disco  (2006). Para os curiosos, existe um documentário sobre a gravação do LP, dirigido por Lula Buarque de Holanda e Arthur Fontes e com roteiro de Cláudio Torres. Nele, podemos perceber como Britto ficou um pouco afastado durante as gravações, sendo que em algumas canções, ele apenas limita-se a observar seus colegas trabalhando.

O estrago foi feito, e o Titãs, acabou sendo mais um grupo a cometer um pecado capital que agravou severamente seu futuro, sem nenhuma chance de perdão. 

Próximo Pecado: A VAIDADE

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