O ano é 1969. Muito do que era feito em termos de rock estava baseado na cultura flower-power, que exatamente naquele ano, chegaria ao auge (e ao fim) com o Festival de Woodstock. Batendo de frente contra a guerra do Vietnã, pregando o amor livre e a paz, essa geração via no lema "faça amor, não faça guerra" uma espécie de revolução mundial para o que acontecia no lado oriental do planeta entre vietnamitas e americanos. Porém, um inglês com um defeito no olho, causado por uma briga na adolescência, enxergava muito além. David Bowie (Bowie sendo a marca da faca que deixará o defeito visual em seu olho) era apenas um jovem rapaz que acabara de lançar seu primeiro disco, ainda centrado na cultura beat de Jack Kerouac, e com uma sonoridade sesentista. Esse mesmo garoto começou a despertar seus ouvidos para as canções de Bob Dylan, e se deu conta de que a música, além de ser uma obra de arte, era também uma poderosa ferramenta de palavra.
David Bowie em 1970 |
Com a ajuda de Tony Visconti e Rick Wakeman, Bowie começou a montar seu segundo álbum, que foi lançado em 1969 com o nome de David Bowie (ou Space Oddity, ou Man of Words / Man of Music). Trazendo várias canções-manifesto ("Cygnet Comitee", "Memory of a Free Festival", "Letter to Hermione","Unwashed and Somewhat Slightly Dazed"), o maior destaque ficou para a faixa-título. "Space Oddity" é uma sátira batendo de frente contra a guerra espacial entre URSS e EUA. Ali, Bowie demonstra sua indignação contra a exploração do espaço, utilizando-se bilhões de dólares para algo que em sua maioria registrava em frustações e perdas de humanos, como o acidente na plataforma russa em 24 de outubro de 1960, o trágico incẽndio da Apollo 1, que vitimou Virgil Iavn grissom, Edward Higgins White II e Roger Bruce Chaffee, o acidente com o cosmonauta Vladimir Komarov em abril de 1967 ou ainda, mais recentemente, em 2003, a explosão do Ônibus Espacial Columbia que matou todos seus tripulantes.
Edição japonesa (acima) e francesa (abaixo) de "Space Oddity" |
A canção narra a história do comandante espacial Major Tom, que vai para o espaço em sua nave, buscando novidades para a Terra. Mantendo sempre contato com a base (Ground Control), Major Tom recebe a licença para vasculhar o espaço, e após algum defeito, acaba perdendo-se no espaço, deixando o recado para a esposa de que a amava muitito, mas sabia que não poderia mais voltar à terra. Com o mellotron de Rick Wakeman e o violão de Bowie, essa canção possui uma sonoridade que a levou ao topo das paradas britânicas, com o quinto lugar. Já os americanos entenderam a mensagem contra a guerra espacial, e não gostaram da faixa, que alcançou a modesta posição 124.
Uma versão anterior aparece no filme Love You Till Tuesday, onde o astronauta acaba perdendo-se no espaço para duas maravilhosas "estrelas" que ele encontra fora da nave, algo hilário e ao mesmo tempo demonstrando mais ironia em relação ao fato. Ironia maior foi quando essa canção, um manifesto contra a ida do homem para fora da Terra, virou a trilha para a chegada da Apollo 11 na lua dentro da rede de televisão BBC, em 11 de julho de 1969.
Edições holandesa (acima) e de Singapura (abaixo) |
Ainda em 1969, Bowie conheceu Angela Barnett, que logo tornou-se sua esposa. O impacto de Angela na vida de Bowie foi imediato, principalmente do ponto de vista visual. Angela mudou o guarda-roupa de Bowie, fazendo-o usar vestimentas mais ousadas, que faziam do artista parecer um ser assexuado, andrógino, possivelmente de outro planeta. Ao mesmo tempo, Bowie sentia a necessidade de criar algo diferente, ter uma banda sua, para poder tocar o que estava em voga na época, o rock 'n' roll. Logo de cara, juntamente com a ajuda de Tony Visconti, e com John Cambridge (bateria) e Mick Ronson (guitarra elétrica), nascey o The Hype, mas Cambridge e Bowie não se acertaram. O batera foi substituído por Mick Woodmansey, e assim, esta banda o acompanha em The Man Who Sold The World (1970).
Freddie Burretti e David Bowie |
O álbum é pesado, lembrando até Led Zeppelin, e tem na épica "The Width of a Circle", com seus mais de 8 minutos de duração, um dos pontos fortes. Já no disco seguinte, Hunky Dory (1971), Bowie grava outro grande sucesso, "Life on Mars?", uma crítica à sociedade e um álbum mais suave perante o peso de The Man Who Sold The World. Neste disco, temos a estreia de Trevor Bolder no lugar de Tony Visconti, e levou então à criação da Spiders from Mars, banda que acompanha Bowie no mega sucesso do personagem Ziggy Stardust.
Porém, durante a penumbra de The Man Who Sold The World, Bowie, buscando de qualquer forma atingir o sucesso, criou um projeto pouco conhecido, o The Arnold Corns, ao lado de Freddi "Rudi Valentino" Burretti, outro nome importante na mudança do visual de Bowie, responsável por criar diversas das roupas de Bowie ao longo de sua carreira. Ele era um amigo de Angela, trabalhando para um alfaita grego na época na cultuada King's Road, de Londres, e o trio se encontrou no clube El Sombrero, em Kensington, no final dos anos 70, dando ideia a este novo projeto. Na banda, o Camaleão era o guitarrista, enquanto Burretti seria o responsável pelos vocais. Como banda de apoio, estavam Mark Carr-Pritchard (guitarras), Peter 'Polak' DeSomogyi (baixo) e Tim 'St Laurent' Broadbent (bateria), os quais faziam parte do grupo Rungk.
Foto promocional da The Arnold Corns |
O nome veio inspirado em uma das músicas favoritas de Bowie, "Arnold Layne", do Pink Floyd. Em uma entrevista promocional para a revista adulta Curious, com Bowie e Burretti na capa, o Camaleão declarou: "Rudi será o primeiro homem a aparecer na capa da Vogue ... ele será o novo Mick Jagger". Um jeito bastante atrevido e audacioso de promover a dupla Bowie/Burretti, ainda mais para um cidadão especializado em moda que nunca havia (e nunca fez) cantado. O projeto seguiu como uma forma de Bowie buscar um sucesso perseguido há tempos, e os ensaios começaram no final de 1970. No dia 10 de março de 1971, registram faixas criadas tanto por Bowie quanto por Burretti, as quais foram "Lady Stardust", "Right on Mother" e "Moonage Daydream", gravadas no Radio Luxembourg Studios.
Capa da Circus (acima) e entrevista de Bowie (abaixo) falando sobre o projeto The Arnold Corns |
Logo na sequência, em 4 de junho de 1971, mais um registro, dessa vez com "Man in the Middle" e "Looking for a Friend". Um terceiro registro foi feito em abril de 1971, gravando "Moonage Daydream" e "Hang on to Yourself", as quais saíram no primeiro single sob a alcunha Arnold Corns, lançado em 7 de maio daquele ano, e que foi um grande fracasso, tendo na formação Bowie, Buretti, Carr-Prichard, Trevor Bolder (baixo) e Mick Woody Woodmansey (bateria). Pouco depois entrou Mick Ronson, registrando as faixas "Looking for a Friend" e "Man in the Middle", as quais foram planejadas como segundo single do Arnold Corns, mas que ficou arquivada por 13 anos devido às mudanças de pensamento de Bowie que acabaram levando a Ziggy Stardust (as canções saíram somente em 1985, através de um single de lançamento apenas na Europa. Existem ainda outros registros feitos ao longo de 1971, nunca lançados oficialmente, mas que circulam em bootlegs mundo à fora creditados ao grupo, os quais são "How Lucky You Are", "Shadow Man" e "Rupert The Riley".
Raro compacto do grupo |
Para quem conhece o mínimo da história de Ziggy, já percebe que é na The Arnold Corns que encontra-se a genesis de Ziggy Stardust. Afinal, “Lady Stardust”, “Hang On To Yourself” e “Moonage Daydream” se tornaram alguns dos grandes sucessos de The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, um dos maiores discos do Camaleão, lançado em 6 de junho de 1972. As versões aqui registradas são bastante embrionárias, com “Moonage Daydream” sendo a mais próxima do que ficou conhecido do grande público, tendo maior destaque ao piano e pequenas mudanças na letra, enquanto “Hang On To Yourself” está bastante acústica perante sua versão final. De forma geral, já mostra o caminho que levou Bowie ao estrelato junto a este novo personagem, e que certamente, sem a The Arnold Corns, talvez não houvesse um desenvolvimento tão relevante. E vale lembrar que Burretti (ou Valentino) não colocou sua voz em momento algum, sendo apenas um figurante para Bowie achar que enganaria alguém.
Coletânea Glam dos anos 80 com canção do grupo |
Quem quiser conferir essas versões, elas apareceram posteriormente no relançamento da Rykodisc/EMI de 1990 de The Man Who Sold the World (inclusive aqui no Brasil, com "Moonage Daydream" e "Hang On To Yourself"), no relançamento de 30 anos de The Rise And Fall Of Ziggy Stardust And The Spiders From Mars (2002), no box de 12 CDs [Five Years 1969 - 1973] (em ambos os discos as mesmas canções) e na coletânea The Great Glam Rock Explosion ("Moonage Daydream"), de 1984. O relançamento de The Man Who Sold the World também resgata as raras "Lighting Frightening" e "Holy Holy", com indicação de ambas terem sido registradas nesse período com a mesma formação de "Moonage Daydream" e "Hang On To Yourself".
“Estamos rindo por que achamos que enganamos alguém” |
Rudi veio a falecer em 11 de maio de 2001, tendo sido responsável por produzir algumas das grandes vestimentas de Bowie nos anos 70 (como o lindo terno azul do clipe de "Life on Mars?" e a vestimenta de Ziggy e os Spiders na famosa apresentação no Top of the Pops de 1972). A The Arnold Corns ainda teve mais um breve capítulo com lançamento, em agosto de 1972, do single "Hang Onto Yourself" / "Man on the Middle", mas apenas como uma forma de manter as lenhas de curiosidade perante Ziggy Stardust ainda em brasas quentes.
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