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Tem épocas na vida que ficamos pensando em coisas que poderíamos ter feito e acabamos não fazendo por falta de coragem, motivação ou até mesmo por não existir a possibilidade. Imagine se você pudesse ter participado das grandes navegações, viver as grandes descobertas da ciência nos séculos XVII e XVIII ou até mesmo ter sido o goleiro da Seleção Brasileira e evitado o maracanazzo de 1950? Em modos gerais, me afeta muito o fato de não ter vivido a época flower power (cara, estar no Woodstock ou em Monterey, ao vivo, quem não queria?), ver o Bowie em ação durante a turnê do Ziggy Stardust, ter visto o Led detonando em Knebworth ou até mesmo ter curtido "umas" com a Janis.
Mas creio que de todos os eventos possíveis, o que mais eu gostaria de ter participado foi o show de despedida da The Band. Fundada em 1958, em Toronto, com o nome de The Hawks, o grupo acompanhou o cantor canadense Ronnie Hawkins entre 1959 e 1963. Na formação, gênios como o temperamental Robbie Robertson (guitarra e voz), o talentoso Rick Danko (baixo e voz), o não menos talentoso Levon Helm (bateria e voz), o doidão Richard Manuel (piano e vocal) e o maestro Garth Hudson (órgão, teclados), sendo que este último entrou na banda com a condição de que os demais integrantes o pagassem dez dólares por semana. A gurizada aceitou sem saber muito bem o porque, já que o talento de Garth era excepcional. Depois, descobriram que a única foma do organista contar para seus pais que estava ensaiando com uma banda de rock era fingir ser professor de música dos caras.
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Palco do show de The Last Waltz |
Após o tempo com Hawkins o grupo preferiu seguir carreira sozinho, já que existiam grandes diferenças musicais entre eles e o cantor, mais ligado ao pop. Passam então a ensaiar e compor muito, tocando com gente como Sonny Boy Williamson e John Hammond, contando com um novo batera, Sandy Konikoff, até que são convidados para acompanhar Bob Dylan durante sua turnê elétrica, entre 1965-1966, gravando o genial Blonde On Blonde, de 1966, agora com Mickey Jones na bateria.
Essa formação participou do famoso show de Dylan no Free Tade Hall, em Manchester, onde o cantor foi vaiado e chamado de Judas pela platéia por justamente mudar sua imagem folk para uma roqueira. Em seguida Dylan sofreu um grave acidente de moto e foi recuperar-se na fazenda de Woodstock, onde, ao lado dos Hawks, que estavam novamente com Helm, gravou The Basement Tapes, uma jóia que deve ser curtida com muita cachaça de butiá e um cigarrinho de palha.
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The Last Waltz autografado |
Passada a época com Dylan, os Hawks passaram a compor suas próprias canções e, principalmente, a buscar sua própria imagem. Conseguem um contrato com a gravadora Capitol e buscam um novo nome, já que Hawks estava muito ligado à Dylan e Hawkins. A príncipio fugiram da onda psicodélica que assolava os EUA, com nomes estranhos como Big Brother and The Holding Company ou Jefferson Airplane, procurando um nome simples e direto. Assim, batizaram-se com a alcunha de The Honkies, mudando para The Crackers ao término da gravação do primeiro álbum. Porém, a gravadora aboliu os nomes citados, e batizou a banda apenas como The Band, grifando na capa do excepcional Music From Big Pink, de 1968, um dos nomes mais influentes de toda a história do rock canadense.
O grupo caminhou por suas próprias pernas durante alguns anos, lançando jóias como The Band (1969), Rock of Ages (1972) e, principalmente, Northern Lights - Southern Cross (1975), e também saíram em turnê com Crosby, Stills, Nash & Young, Beach Boys e Joni Mitchell, até que Robbie e os demais decidiram acabar com a banda e aproveitar a vida, já que estavam ficando velhos e cansados de toda a badalação em torno de drogas, mulheres, festas e turnês. Assim, Robbie começou a planejar o show de despedida, o qual teve a primeira data marcada para 03 de outubro de 1976, mas foi realizado no dia 25 de novembro de 1976.
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Livreto de informações do show |
Na verdade, os abusos de drogas (principalmente de Manuel, que consumia oito garrafas do licor Grand Marnier por dia adicionado de cocaína, o que levou o pianista a sofrer um grave acidente de barco em 1975) fizeram com que o ambiente interno fosse se degradando. A longa turnê ao lado de Crosby, Stills, Nash & Young também consolidou a idéia de que uma pausa era necesária. Sem shows, Robbie esperava ver a The Band como os Beatles, apenas gravando em estúdio e tendo uma vida normal. Os demais integrantes foram contra, mas o "poderoso chefão" Robbie acabou convencendo de que ou o grupo parava de excursionar ou então não sobreviveriam por mais do que um ano.
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Um dos grandes momentos de The Last Waltz |
Todo um esquema foi concebido por Robbie, que acabou sendo, além de mentor, o integrante mais ativo na divulgação do evento. A idéia inicial era fazer um mega concerto com a participação de personagens importantes para a história do grupo. Porém, a genialidade de Robbie foi além, e fez desse show o maior espetáculo que uma banda poderia proporcionar sozinha.
O primeiro passo foi achar um lugar, que a princípio seria o Paramount Theater em Oakland, Califórnia, mas acabou sendo o Winterland Ballroom, em São Francisco, onde a The Band tinha conseguido o êxito fabuloso de estrear como banda em 1969. Em diversas músicas, uma orquestra de metais acompanharia o grupo, com arranjos de Allen Toussaint. A seguir, uma lista de artistas começou a ser preenchida. Ronnie Hawkins, Dr John, Joni Mitchell, Emmylou Harris, Paul Butterfield, Van Morrison, Neil Young e Eric Clapton aceitaram o convite prontamente. Na cola, vieram Ron Wood, Ringo Starr, George Harrison (que não pode participar), Neil Diamond, Muddy Waters, entre outros.
O último a confirmar foi o Sr Dylan. Isto porque, como o evento passou a contar com um número tal de celebridades, surgiu a idéia de transformar o show em um mega concerto, o qual seria filmado e lançado em LP. Assim, Dylan não queria aparecer no filme devido ao fato de estar filmando seu próprio projeto, Renaldo and Clara. O acordo veio com a promessa de Robbie para Dylan de que o filme com o registro do show seria lançado somente depois do lançamento do filme de Dylan, com Dylan aceitando filmar apenas duas de suas músicas.
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Martin Scorsese durante as filmagens do show |
Martin Scorsese foi convidado para fazer a filmagem. Inicialmente a idéia era de um registro em 16 mm, porém Scorsese decidiu inovar, registrando tudo em modernas câmeras de 35 mm. Scorsese cercou-se dos mais respeitados operadores de câmera de Hollywood, desenvolvendo um ambiente de produção digno de Oscar, com roteiro, scripts, desenhos e, principalmente, muitos jogos de luzes e câmeras. Também fez um magnífico storyboard, acompanhado de Robbie, onde ilustrava à cada câmera aonde e como deveria ser captada determinada imagem. Ele ainda foi o responsável pelo palco, ao lado de Bill Graham (dono do Winterland e dos lendários Fillmore), alugando lustres da ópera La Traviata, que era uma produção californiana, e também montando um belíssimo cenário de fundo.
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Vinil triplo apresentando o registro do show |
O último passo surgiu também na hora da divulgação do evento: um super jantar e também uma apresentação da Berkeley Promenade Orchestra iriam esquentar o público até a hora do show. Diversos artistas locais também foram convidados para se apresentar, sendo declamando poemas ou com quadros para decorar o teatro. Cinco mil ingressos foram disponibilizados a 5,50, 6,50 e 7,50 dólares, sendo vendidos rapidamente, com o espetáculo sendo chamado de The Last Waltz. Para o jantar foram usados pratos e talheres descartáveis, o que evitaria problemas como o ocorrido no malfadado show de Altamont, dos Rolling Stones, bem como walkie-talkies para os convidados poderem conversar.
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Cartazes de divulgação |
Duas campanhas de divulgação foram lançadas, uma com um cartaz bem chamativo, elaborado por Bob Cato, onde uma mulher nua (obra de Georges Hugnet) aparece em uma montagem de fotos, e outro especialmente confeccionado por Bill Graham, o qual ficou exposto no lado externo do teatro.
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A janta antes do show |
As cinco horas da tarde do dia de Ação de Graças de 1976 eram abertas as portas do Winterland, com 5.000 fãs e diversos convidados e familiares entrando calmamente, recebendo um folheto redondo que continha algumas informações à respeito de como iria decorrer a noite. Aproximadamente trinta mesas de madeira, com capacidade para 20 pessoas em cada uma, foram dispostas pelo salão e também pelos andares do teatro. O buffet foi servido nas escadarias, e a pessoa, após jantar, dava seu lugar a outro cidadão. Mesmo sendo um dia de Ação de Graças, pessoas vegetarianas receberam atenção especial, com um cardápio exclusivo.
Após a janta, garçons recolheram os pratos e talheres, com pessoas especializadas desmanchando as mesas e abrindo o salão para o próximo evento, uma "milonga" realizada pela orquestra até as oito horas da noite, onde a platéia pode dançar e se divertir.
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Registro acústico para o filme de The Last Waltz |
Exatamente às 21 horas a The Band subia ao palco detonando "Up on Cripple Creek". A partir de então, o que se viu foi uma performance ensurdecedora do grupo entoando mais onze pérolas - "The Shape I'm In", "It Makes No Difference", Life is a Carnival", "This Wheel's On Fire", "W.S. Walcott Medicine Show", "Georgia On My Mind", "Ophelia", "King Harvest (Has Surely Come)", "The Night They Drove Old Dixie Down", "Stage Fright" e "Rag Mama Rag" -, para então o primeiro convidado subir ao palco, ninguém menos que Ronnie Hawkins, cantando "Who Do You Love" e relembrando os primeiros anos da banda.
O carismático Dr John entra em cena com sua boina francesa e cantando a jazzística "Such a Night", além de acompanhar Bobby Charles no bluezão "Down South in New Orleans". Outro grande blues, "Mystery Train", foi interpretada por Paul Butterfield, e, para a The Band mostrar que não era apenas uma banda country rock, o mestre Muddy Waters detona em "Caldonia" e "Mannish Boy".
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Muddy Waters |
Um detalhe curioso aqui é que com o andamento do show Scorsese ficou preocupado com a duração das fitas e resolveu poupar algumas câmeras. Na hora em que Muddy entrou, Scorsese não ligou o nome à pessoa, e mandou todo mundo descansar. Porém, o câmera Laszlo Kovacs acabou gravando a impecável participação de Muddy. No filme, é muito engraçado ver os câmeras correndo para seus postos após Muddy entoar o primeiro "I'm a man".
Eric Clapton também mandou ver em "All Our Past Times" e "Further on Up the Road", sendo que durante o solo na última a correia de sua guitarra caiu, mas Robbie continuou sem problemas. Neil Young se emocionou tocando "Helpless" e "Four Strong Winds", com backing vocals de Joni Mitchell, que permaneceu no palco com direito até a beijo na boca de Robbie, e lindamente cantou "Coyote", "Shadows and Light" e "Furry Sings the Blues", algumas com a participação de Dr John nas congas.
O fanfarrão Neil Diamond cantou a linda balada "Dry Your Eyes" e gerou certos problemas durante o concerto, principalmente com Dylan, enquanto o gordinho Van Morrison agitou muito em "Tura Lura Lural" e "Caravan". Neil Young e Joni MItchell voltaram ao palco para interpretar "Acadian Driftwood", "Genetic Method" e "Chest Fever".
A The Band ficou novamente sozinha, arrebentando em "Evangeline", "The Weight", "Baby Let Me Follow You Down" e "Hazel", para aí sim a atração principal, Bob Dylan, colocar suas botas no palco e arrancar lágrimas de todos os presentes com "I Don't Believe You", "Forever Young" e "Baby Let Me Follow You Down" novamente.
Todos os convidados retornaram ao palco, juntamente com Ron Wood e Ringo Starr, para cantar "I Shall Be Released", e então duas longas jams foram ouvidas e vistas na Califórnia, uma com Butterfield, Clapton, Young, Wood, Dr John, Ringo e a The Band, e outra com Butterfield, Clapton, Young, Wood, Stephen Stills, Dr John, Garth, Carl Radle, Ringo e Levon Helm, encerrando a apresentação.
A The Band saiu do palco e então novamente a orquestra continuou o espetáculo. Porém, era quase duas horas da manhã e o repertório clássico já havia sido esgotado, mas ninguém movia-se de dentro do teatro esperando mais uma canção da The Band. Aproximadamente as 2:15 da manhã o grupo, com a sua formação original, voltou ao palco pela última vez, aclamada pelo público, e cantou "Don't Do It", que é a música de abertura do filme The Last Waltz (no Brasil, erroneamente batizado como O Último Concerto de Rock).
Nesse mesmo filme é possível ver toda a tensão do grupo no início e as descontraídas participações dos convidados no decorrer do show. Algumas canções ficaram de fora, e inclusive "Evangeline" e "The Weight" foram refilmadas em estúdio, mas o recheio das principais participações ficou registrada em um filme espetacular, que ainda contém diversas entrevistas com o pessoal da The Band logo após saírem do palco, narrando diversas histórias da carreira da banda. Uma excelente produção de um dos melhores documentários sobre rock já feitos na história.
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Raridades ligadas ao LP de The Last Waltz |
Um vinil triplo com um luxuoso álbum-encarte com capa em veludo e recheado de fotos e informações também foi lançado, em uma versão raríssima de apenas 1.500 cópias, contando inclusive com músicas que não fizeram parte do filme. Recentemente vi no eBay norte-americano uma cópia ser vendida pela bagatela de 500 dólares (!). Posteriormente, somente três encartes contendo as informações de cada música acabaram ficando nas lojas. Em CD houve o lançamento em disco duplo e em 2002 uma rara versão, contando com todo o show e mais músicas de ensaio, foi lançada em um box set com quatro CDs.
Todos são ótimos registros para se conhecer o trabalho deste espetacular grupo, mas com certeza quem esteve presente no dia da despedida da The Band deve até hoje deitar com a imagem dos gigantescos lustres iluminando os músicos, que fizeram uma das melhores apresentações já vistas na história da música.