quinta-feira, 25 de junho de 2009

A última valsa da The Band




Tem épocas na vida que ficamos pensando em coisas que poderíamos ter feito e acabamos não fazendo por falta de coragem, motivação ou até mesmo por não existir a possibilidade. Imagine se você pudesse ter participado das grandes navegações, viver as grandes descobertas da ciência nos séculos XVII e XVIII ou até mesmo ter sido o goleiro da Seleção Brasileira e evitado o maracanazzo de 1950? Em modos gerais, me afeta muito o fato de não ter vivido a época flower power (cara, estar no Woodstock ou em Monterey, ao vivo, quem não queria?), ver o Bowie em ação durante a turnê do Ziggy Stardust, ter visto o Led detonando em Knebworth ou até mesmo ter curtido "umas" com a Janis.

Mas creio que de todos os eventos possíveis, o que mais eu gostaria de ter participado foi o show de despedida da The Band. Fundada em 1958, em Toronto, com o nome de The Hawks, o grupo acompanhou o cantor canadense Ronnie Hawkins entre 1959 e 1963. Na formação, gênios como o temperamental Robbie Robertson (guitarra e voz), o talentoso Rick Danko (baixo e voz), o não menos talentoso Levon Helm (bateria e voz), o doidão Richard Manuel (piano e vocal) e o maestro Garth Hudson (órgão, teclados), sendo que este último entrou na banda com a condição de que os demais integrantes o pagassem dez dólares por semana. A gurizada aceitou sem saber muito bem o porque, já que o talento de Garth era excepcional. Depois, descobriram que a única foma do organista contar para seus pais que estava ensaiando com uma banda de rock era fingir ser professor de música dos caras.

Palco do show de The Last Waltz


Após o tempo com Hawkins o grupo preferiu seguir carreira sozinho, já que existiam grandes diferenças musicais entre eles e o cantor, mais ligado ao pop. Passam então a ensaiar e compor muito, tocando com gente como Sonny Boy Williamson e John Hammond, contando com um novo batera, Sandy Konikoff, até que são convidados para acompanhar Bob Dylan durante sua turnê elétrica, entre 1965-1966, gravando o genial Blonde On Blonde, de 1966, agora com Mickey Jones na bateria. 

Essa formação participou do famoso show de Dylan no Free Tade Hall, em Manchester, onde o cantor foi vaiado e chamado de Judas pela platéia por justamente mudar sua imagem folk para uma roqueira. Em seguida Dylan sofreu um grave acidente de moto e foi recuperar-se na fazenda de Woodstock, onde, ao lado dos Hawks, que estavam novamente com Helm, gravou The Basement Tapes, uma jóia que deve ser curtida com muita cachaça de butiá e um cigarrinho de palha.

The Last Waltz autografado


Passada a época com Dylan, os Hawks passaram a compor suas próprias canções e, principalmente, a buscar sua própria imagem. Conseguem um contrato com a gravadora Capitol e buscam um novo nome, já que Hawks estava muito ligado à Dylan e Hawkins. A príncipio fugiram da onda psicodélica que assolava os EUA, com nomes estranhos como Big Brother and The Holding Company ou Jefferson Airplane, procurando um nome simples e direto. Assim, batizaram-se com a alcunha de The Honkies, mudando para The Crackers ao término da gravação do primeiro álbum. Porém, a gravadora aboliu os nomes citados, e batizou a banda apenas como The Band, grifando na capa do excepcional Music From Big Pink, de 1968, um dos nomes mais influentes de toda a história do rock canadense.

O grupo caminhou por suas próprias pernas durante alguns anos, lançando jóias como The Band (1969), Rock of Ages (1972) e, principalmente, Northern Lights - Southern Cross (1975), e também saíram em turnê com Crosby, Stills, Nash & Young, Beach Boys e Joni Mitchell, até que Robbie e os demais decidiram acabar com a banda e aproveitar a vida, já que estavam ficando velhos e cansados de toda a badalação em torno de drogas, mulheres, festas e turnês. Assim, Robbie começou a planejar o show de despedida, o qual teve a primeira data marcada para 03 de outubro de 1976, mas foi realizado no dia 25 de novembro de 1976.

Livreto de informações do show


Na verdade, os abusos de drogas (principalmente de Manuel, que consumia oito garrafas do licor Grand Marnier por dia adicionado de cocaína, o que levou o pianista a sofrer um grave acidente de barco em 1975) fizeram com que o ambiente interno fosse se degradando. A longa turnê ao lado de Crosby, Stills, Nash & Young também consolidou a idéia de que uma pausa era necesária. Sem shows, Robbie esperava ver a The Band como os Beatles, apenas gravando em estúdio e tendo uma vida normal. Os demais integrantes foram contra, mas o "poderoso chefão" Robbie acabou convencendo de que ou o grupo parava de excursionar ou então não sobreviveriam por mais do que um ano.

Um dos grandes momentos de The Last Waltz

Todo um esquema foi concebido por Robbie, que acabou sendo, além de mentor, o integrante mais ativo na divulgação do evento. A idéia inicial era fazer um mega concerto com a participação de personagens importantes para a história do grupo. Porém, a genialidade de Robbie foi além, e fez desse show o maior espetáculo que uma banda poderia proporcionar sozinha.

O primeiro passo foi achar um lugar, que a princípio seria o Paramount Theater em Oakland, Califórnia, mas acabou sendo o Winterland Ballroom, em São Francisco, onde a The Band tinha conseguido o êxito fabuloso de estrear como banda em 1969. Em diversas músicas, uma orquestra de metais acompanharia o grupo, com arranjos de Allen Toussaint. A seguir, uma lista de artistas começou a ser preenchida. Ronnie Hawkins, Dr John, Joni Mitchell, Emmylou Harris, Paul Butterfield, Van Morrison, Neil Young e Eric Clapton aceitaram o convite prontamente. Na cola, vieram Ron Wood, Ringo Starr, George Harrison (que não pode participar), Neil Diamond, Muddy Waters, entre outros.

O último a confirmar foi o Sr Dylan. Isto porque, como o evento passou a contar com um número tal de celebridades, surgiu a idéia de transformar o show em um mega concerto, o qual seria filmado e lançado em LP. Assim, Dylan não queria aparecer no filme devido ao fato de estar filmando seu próprio projeto, Renaldo and Clara. O acordo veio com a promessa de Robbie para Dylan de que o filme com o registro do show seria lançado somente depois do lançamento do filme de Dylan, com Dylan aceitando filmar apenas duas de suas músicas.

Martin Scorsese durante as filmagens do show

Martin Scorsese foi convidado para fazer a filmagem. Inicialmente a idéia era de um registro em 16 mm, porém Scorsese decidiu inovar, registrando tudo em modernas câmeras de 35 mm. Scorsese cercou-se dos mais respeitados operadores de câmera de Hollywood, desenvolvendo um ambiente de produção digno de Oscar, com roteiro, scripts, desenhos e, principalmente, muitos jogos de luzes e câmeras. Também fez um magnífico storyboard, acompanhado de Robbie, onde ilustrava à cada câmera aonde e como deveria ser captada determinada imagem. Ele ainda foi o responsável pelo palco, ao lado de Bill Graham (dono do Winterland e dos lendários Fillmore), alugando lustres da ópera La Traviata, que era uma produção californiana, e também montando um belíssimo cenário de fundo.

Vinil triplo apresentando o registro do show


O último passo surgiu também na hora da divulgação do evento: um super jantar e também uma apresentação da Berkeley Promenade Orchestra iriam esquentar o público até a hora do show. Diversos artistas locais também foram convidados para se apresentar, sendo declamando poemas ou com quadros para decorar o teatro. Cinco mil ingressos foram disponibilizados a 5,50, 6,50 e 7,50 dólares, sendo vendidos rapidamente, com o espetáculo sendo chamado de The Last Waltz. Para o jantar foram usados pratos e talheres descartáveis, o que evitaria problemas como o ocorrido no malfadado show de Altamont, dos Rolling Stones, bem como walkie-talkies para os convidados poderem conversar.


Cartazes de divulgação

Duas campanhas de divulgação foram lançadas, uma com um cartaz bem chamativo, elaborado por Bob Cato, onde uma mulher nua (obra de Georges Hugnet) aparece em uma montagem de fotos, e outro especialmente confeccionado por Bill Graham, o qual ficou exposto no lado externo do teatro. 

A janta antes do show


As cinco horas da tarde do dia de Ação de Graças de 1976 eram abertas as portas do Winterland, com 5.000 fãs e diversos convidados e familiares entrando calmamente, recebendo um folheto redondo que continha algumas informações à respeito de como iria decorrer a noite. Aproximadamente trinta mesas de madeira, com capacidade para 20 pessoas em cada uma, foram dispostas pelo salão e também pelos andares do teatro. O buffet foi servido nas escadarias, e a pessoa, após jantar, dava seu lugar a outro cidadão. Mesmo sendo um dia de Ação de Graças, pessoas vegetarianas receberam atenção especial, com um cardápio exclusivo.

Após a janta, garçons recolheram os pratos e talheres, com pessoas especializadas desmanchando as mesas e abrindo o salão para o próximo evento, uma "milonga" realizada pela orquestra até as oito horas da noite, onde a platéia pode dançar e se divertir. 

Registro acústico para o filme de The Last Waltz


Exatamente às 21 horas a The Band subia ao palco detonando "Up on Cripple Creek". A partir de então, o que se viu foi uma performance ensurdecedora do grupo entoando mais onze pérolas - "The Shape I'm In", "It Makes No Difference", Life is a Carnival", "This Wheel's On Fire", "W.S. Walcott Medicine Show", "Georgia On My Mind", "Ophelia", "King Harvest (Has Surely Come)", "The Night They Drove Old Dixie Down", "Stage Fright" e "Rag Mama Rag" -, para então o primeiro convidado subir ao palco, ninguém menos que Ronnie Hawkins, cantando "Who Do You Love" e relembrando os primeiros anos da banda.

O carismático Dr John entra em cena com sua boina francesa e cantando a jazzística "Such a Night", além de acompanhar Bobby Charles no bluezão "Down South in New Orleans". Outro grande blues, "Mystery Train", foi interpretada por Paul Butterfield, e, para a The Band mostrar que não era apenas uma banda country rock, o mestre Muddy Waters detona em "Caldonia" e "Mannish Boy". 

Muddy Waters

Um detalhe curioso aqui é que com o andamento do show Scorsese ficou preocupado com a duração das fitas e resolveu poupar algumas câmeras. Na hora em que Muddy entrou, Scorsese não ligou o nome à pessoa, e mandou todo mundo descansar. Porém, o câmera Laszlo Kovacs acabou gravando a impecável participação de Muddy. No filme, é muito engraçado ver os câmeras correndo para seus postos após Muddy entoar o primeiro "I'm a man".

Eric Clapton também mandou ver em "All Our Past Times" e "Further on Up the Road", sendo que durante o solo na última a correia de sua guitarra caiu, mas Robbie continuou sem problemas. Neil Young se emocionou tocando "Helpless" e "Four Strong Winds", com backing vocals de Joni Mitchell, que permaneceu no palco com direito até a beijo na boca de Robbie, e lindamente cantou "Coyote", "Shadows and Light" e "Furry Sings the Blues", algumas com a participação de Dr John nas congas. 

O fanfarrão Neil Diamond cantou a linda balada "Dry Your Eyes" e gerou certos problemas durante o concerto, principalmente com Dylan, enquanto o gordinho Van Morrison agitou muito em "Tura Lura Lural" e "Caravan". Neil Young e Joni MItchell voltaram ao palco para interpretar "Acadian Driftwood", "Genetic Method" e "Chest Fever".

A The Band ficou novamente sozinha, arrebentando em "Evangeline", "The Weight", "Baby Let Me Follow You Down" e "Hazel", para aí sim a atração principal, Bob Dylan, colocar suas botas no palco e arrancar lágrimas de todos os presentes com "I Don't Believe You", "Forever Young" e "Baby Let Me Follow You Down" novamente.

Todos os convidados retornaram ao palco, juntamente com Ron Wood e Ringo Starr, para cantar "I Shall Be Released", e então duas longas jams foram ouvidas e vistas na Califórnia, uma com Butterfield, Clapton, Young, Wood, Dr John, Ringo e a The Band, e outra com Butterfield, Clapton, Young, Wood, Stephen Stills, Dr John, Garth, Carl Radle, Ringo e Levon Helm, encerrando a apresentação.

A The Band saiu do palco e então novamente a orquestra continuou o espetáculo. Porém, era quase duas horas da manhã e o repertório clássico já havia sido esgotado, mas ninguém movia-se de dentro do teatro esperando mais uma canção da The Band. Aproximadamente as 2:15 da manhã o grupo, com a sua formação original, voltou ao palco pela última vez, aclamada pelo público, e cantou "Don't Do It", que é a música de abertura do filme The Last Waltz (no Brasil, erroneamente batizado como O Último Concerto de Rock).

Nesse mesmo filme é possível ver toda a tensão do grupo no início e as descontraídas participações dos convidados no decorrer do show. Algumas canções ficaram de fora, e inclusive "Evangeline" e "The Weight" foram refilmadas em estúdio, mas o recheio das principais participações ficou registrada em um filme espetacular, que ainda contém diversas entrevistas com o pessoal da The Band logo após saírem do palco, narrando diversas histórias da carreira da banda. Uma excelente produção de um dos melhores documentários sobre rock já feitos na história.


Raridades ligadas ao LP de The Last Waltz


Um vinil triplo com um luxuoso álbum-encarte com capa em veludo e recheado de fotos e informações também foi lançado, em uma versão raríssima de apenas 1.500 cópias, contando inclusive com músicas que não fizeram parte do filme. Recentemente vi no eBay norte-americano uma cópia ser vendida pela bagatela de 500 dólares (!). Posteriormente, somente três encartes contendo as informações de cada música acabaram ficando nas lojas. Em CD houve o lançamento em disco duplo e em 2002 uma rara versão, contando com todo o show e mais músicas de ensaio, foi lançada em um box set com quatro CDs.

Todos são ótimos registros para se conhecer o trabalho deste espetacular grupo, mas com certeza quem esteve presente no dia da despedida da The Band deve até hoje deitar com a imagem dos gigantescos lustres iluminando os músicos, que fizeram uma das melhores apresentações já vistas na história da música.

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