No  início da década de setenta o mundo deleitava-se com o rock  progressivo. Da Patagônia à Islândia, diversos grupos surgiram,  influenciados principalmente por bandas como Yes, Genesis e Pink Floyd. A  Argentina, rockeira desde sua essência, também estava envolvida nessa  sonoridade, e lá um jovem garoto chamado Charly Garcia (teclados, voz)  começava a despontar como uma promessa na música portenha. Sua primeira  participação em discos foi no ano de 1972, com somente 21 anos, tocando  teclados no raríssimo Cristo Rock, de Raúl Porchetto.

Antes,  Charly já havia formado uma das principais bandas argentinas de todos  os tempos, a Sui Generis, ao lado do também importante Nito Mestre e  contando com Carlos Piegari, Beto Rodriguez, Juan Belia e Alejandro  Correa. O grupo fez enorme sucesso com o seu folk rock tradicional,  lançando quatro aclamados álbuns, mas, devido à censura imposta pela  ditadura militar e também pela diferença sonora entre Charly e Nito,  acabou sucumbido em 1975, com o lançamento do maravilhoso álbum Adios Sui Generis, gravado ao vivo para um público de quase 30.000 pessoas.

Nito  então fundou a banda de folk rock Nito Miestre y los Desconocidos (quem  puder, ouça o primeiro álbum) enquanto Charly decidiu seguir com suas  loucuras sonoras, formando então um novo grupo, o qual veio se chamar La  Máquina de Hacer Pájaros, em homenagem a uma tirinha de jornal local  que contava com um tal de García que havia construído uma máquina de  fazer pássaros. Neste novo projeto Charly levaria ao extremo o seu  instrumento favorito, o teclado, já que a banda inovou, contando com  dois tecladistas ao mesmo tempo.
No  início, o La Máquina era um trio tipo ELP, formado por Charly e mais  dois ex-integrantes da Crucis, Oscar Moro (bateria, que também tocou no  Los Gatos Selvagens) e José Luis Fernández (baixo). Em seguida entraram  Gustavo Bazterrica (guitarras, ex-Reino de Munt - banda de Porchetto) e  Carlos Cutaia (teclados, ex-Pescado Rabioso), formando a espinha dorsal  da música complexa e densa que Charly tanto sonhava. 
Temos  então monstros do rock argentino unidos com a única intenção de tocar  um som de ótima qualidade, com muitas viagens e longos temas  instrumentais. Os primeiros shows começaram a acontecer no ano de 1976,  para pouco mais de trezentas pessoas, lembrando que na época o  progressivo já estava perdendo espaço para o punk e a disco music.

Mesmo assim Charly conseguiu um contrato com a gravadora Microfón, e, no mesmo ano, lançou o maravilhoso disco La Máquina de Hacer Pájaros.  A capa ficou a cargo do autor da tira de jornal, um tal de Crist, que  elaborou uma pequena história onde o protagonista, García, apresentava a  banda para um amigo, definindo-a como um "pássaro progressivo". Dentro  da capa havia outra, toda preta, contando com a foto dos cinco  integrantes em um colorido todo especial. Outro destaque é que todas as  músicas foram compostas por Charly, mesmo contra a vontade dele, que  pretendia ser somente mais um integrante. 
Os  teclados introdutórios de "Bubulina", com Charly cantando sobre as  diversas camadas de sintetizadores que surgem imitando uma orquestra,  abrem o primeiro lado. A voz suave do tecladista dá espaço para a  guitarra, que sola lentamente acompanhada pela banda e por muitos  sintetizadores, que tomam contam dos canais. A forte influência  jazzística aparece na guitarra de Gustavo, que sola durante a letra.  Camadas de vocais se intercalam com a voz de Charlie. Temos uma pequena  pausa onde os teclados assumem novamente a posição de destaque, com a  guitarra novamente solando. Os moogs agora aparecem, com diversos duelos  de escalas entre eles e a guitarra. Vale a pena destacar a bela  presença dos teclados nessa faixa. A canção segue, com a lenta  introdução sendo reproduzida, tendo uma intervenção mais pesada, porém  curta, terminando com os teclados viajando em notas que decaem como um  avião atingindo o solo. 
A  faixa seguinte, "Como Mata El Viento Norte", lembra a fase Sui Generis.  O violão folk junto aos sintetizadores dá espaço para vocalizações e a  letra da canção, que é acompanhada pelo andar tradicional da Sui. Temos  uma sessão instrumental com destaque para piano e baixo, que retoma e  encerra com a letra da canção. 
A  marcação de bateria, acompanhada por intervenções de baixo, guitarra e  teclados, introduz "Boletos, Pases y Abonos", que tem um ritmo bem  suingado, similar ao que o Vímana fez mais ou menos na mesma época.  Destaque para o refrão, bem rock'n'roll, lembrando as canções dos  Mutantes na fase em que Serginho era o único do trio original. Temos uma  sessão instrumental onde a levada da banda (guitarra, baixo e guitarra)  abre espaço para um maluco solo de órgão. A guitarra então toma conta  dos canais, com uma ótima levada da cozinha e com a participação direta  ao fundo dos teclados de Charly e Cutaia. O órgão novamente volta a  solar, atingindo um pique muito rápido, voltando então ao tema principal  desta bela faixa, que encerra com muito barulho de baixo, bateria,  guitarra e teclados. 
Finalmente,  uma cópia de "The Return of the Giant Hogweed" do Genesis introduz "No  Puedo Verme", outra canção bem suingada, com destaque para o belo  trabalho de teclados e do baixão de José Luis. Temos uma sessão  instrumental bem delirante, com uma baita levada jazzística, onde  teclados e guitarra solam alucinados sobre camadas de órgão e  sintetizadores, no melhor estilo Return to Forever. A faixa retoma seu  início, encerrando o lado A com mais um solo de moog e guitarra, com a  cozinha mandando ver, inclusive no pequeno solo de bateria.
Os pianos de Cutaia abrem o lado B. "Rock And Roll" é uma canção que lembra bastante o Genesis de Trespass  em sua introdução, com violões e vocalizações belas. Porém, o piano  passa a executar acordes enquanto a cozinha passa a mandar ver em um  baita rock'n'roll, onde Charly rasga sua voz em diversos gritos. Moogs e  sintetizadores tomam contam em mais uma sessão bem trabalhada, ganhando  uma cadência incomum para as bandas argentinas. A guitarra sola com  gana, terminando com um pequeno trecho clássico. 
Os  temas à la Sui Generis são retomados na folk "Por Probar El Vino y El  Agua Salada", cheia de moogs e violões. A suíte "Ah, Te Vi Entre Las  Luces" encerra esse primeiro álbum de forma brilhante. Os teclados  viajantes de Cutaia trazem os vocais de Charly acompanhados pelo piano. A  banda entra então, com uma marcação precisa, enquanto temos duelos de  teclados e clavinete. A canção fica somente nos teclados, com os vocais  acompanhados pela guitarra utilizando o dispositivo do volume. Temos uma  longa sessão instrumental, onde primeiro o piano sola sobre camadas de  teclados, chegando a uma parte mais jazzística, com solos de clavinete,  órgão e guitarra. Uma sessão mais viajante de guitarra, pratos, baixo e  teclados dá sequência à parte mais bonita da canção, que retoma o refrão  com muito teclado e com as intervenções de moog. 
O  belo solo de guitarra de Gustavo mostra como os argentinos tinham  talento para ser uma poderosa banda no cenário mundial, levando a um  solo de piano “quase-tango”, acompanhado pela cadência da cozinha e  pelas variações de volume da guitarra, seguindo pelos longos acordes de  teclado que encerram essa brilhante faixa de forma emocionante.
O  disco mostrava todo o refinamento e a potência do grupo, bem como a  ambição de fazer algo totalmente novo dentro do cenário rock portenho.  Porém, fez pouco sucesso, já que o público argentino ainda preferia ver  Charly nas canções acústicas do Sui Generis, o que não impediu o  trabalho da banda de ser continuado.

No ano seguinte chegava às lojas o segundo álbum. Películas  traz uma sonoriedade mais diferente, com um amplo trabalho nos arranjos  e também na composição das canções, já que todos os integrantes  acabaram se envolvendo na elaboração das peças, apenas as letras ficaram  a cargo de Charly. O encarte vinha recheado de fotos e, na contracapa,  as músicas possuíam pequenos comentários elaborados pelo próprio  Charly. 
O  disco abre com a instrumental “Obertura 777”, com os teclados trazendo o  piano e o violão, que solam acompanhados pelo baixo e pelos pratos. A  bateria muda de ritmo, deixando a canção bem suingada, com uma boa  levada no baixo e com aquele órgão típico dos anos setenta. Clavinete e  guitarra executam um bonito tema em escalas que alternam de tom,  mostrando que a banda decidiu trabalhar ainda mais. 
“Marylin,  La Cenicienta y Las Mujeres” encaixa no seguimento do disco, lembrando  bastante o Genesis da fase quarteto. Um coral de crianças surge no meio  da canção, repetindo a mesma frase,  "todos tenemos hogar",  várias vezes, enquanto o ritmo aumenta, dando espaço para uma parte bem  hard, onde baixo e guitarra executam escalas iguais enquanto os  teclados deliram. 
“No  Te Dejes Desanimar” é mais uma canção bem trabalhada. Violões, piano e  assovios trazem a letra da canção acompanhados de cordas, as quais foram  conduzidas por Cutaia. Um pequeno tema instrumental retoma as letras,  que mantém sempre a mesma harmonia do início ao fim. 
“Que  Se Puede Hacer Salvo Ver Películas” encerra o lado A com um ritmo mais  latino com sua introdução ao baixo e piano. O principal destaque da  faixa fica justamente pela forte presença do baixo, que marca muito bem  durante a entonação da letra. Uma sessão mais jazzística aparece, dando  espaço para vozes de atores de filmes argentinos trazerem novamente as  letras. Piano e órgão executam o tema principal, acompanhados pelo ritmo  da cozinha (guitarra-baixo-bateria), aumentando o ritmo até os vocais  assumirem novamente o posto principal. Por fim, o tema jazzístico é  retomado, encerrando a canção com o tema principal.
“Hipercandombe”  abre o lado B com uma ótima introdução instrumental. Temos uma levada  tri dançante, onde a bateria de Moro está infernal. Outro destaque fica  para o ótimo trabalho dos teclados. “El Vendedor de las Munecas de  Plastico” é uma canção lenta, com a destacada presença do baixo e dos  teclados, contando também com um bom solo de guitarra. 
“Ruta  Perdedora” traz em sua introdução o piano, aliado a barulhos de carro,  violões dedilhados e a voz de Charly. Temos muitas vocalizações e  teclados, com uma levada bem progressiva. O moog introduz uma pequena  sessão instrumental, onde os instrumentos executam o mesmo tema,  terminando com a execução de um tema principal. 
Por  fim, a instrumental “En Las Calles de Costa Rica” é um jazzão de  primeira, com solos de guitarra e teclado que tornam-se ainda melhores  com a ótima performance da cozinha. Uma sessão mais lenta, onde o baixo  sola sobre camadas de teclados, traz novamente o jazz, com um longo solo  de guitarra, encerrando a canção e o álbum com uma quebradeira geral.
Temos  um disco mais ligado ao jazz fusion de bandas como Return to Forever,  Weather Report e The Eleventh House, e que também acabou fazendo pouco  sucesso com o público. A banda então acabou após uma mini-excursão de  divulgação, tendo seu último show realizado no Festival de Amor  de 1977, contando com a participação de David Lebón, Rinaldo Rafanelli,  Juan Rodríguez (ambos do Sui Generis), Aníbal Kerpel e Pino Marrone  (ambos da Crucis).

Charly  fundou a Banda del Amor ao lado de Lebón, mas não durou muito, vindo  para o Brasil em busca de novos ares, já que estava bem influenciado  pelo pessoal do Clube da Esquina, onde construiu o projeto Seru Giran. 
Cutaia formou o Ce.Ce. Cutaia ao lado de sua esposa, Carola, com quem gravou o álbum Rota Tierra Rota em 1979. Lançou então três álbuns solos (Ciudad de Tonos Lejanos em 1983, Carlos Cutaia Orquestra em 1985 e Sensación Melancólica em 2005) e dedicou-se à produção de bandas. Em 2005 recebeu o prêmio Carlos Gardel pelo seu trabalho no álbum Para la Guerra del Tango, onde misturava o tango com o jazz. 
Gustavo  intregou um quarteto ao lado de Oscar Moro, Alejandro Lerner (teclados)  e Rinaldo Rafanelli (baixo), seguindo como músico na banda de Luis  Alberto Spinetta. Entre 1980 e 1984 fez parte do Los Abuelos de la Nada,  e paralelamente participava do grupo que acompanhava Charly. Em 1987  lançou seu único disco solo, Joven Blando, que contava com a participação de Charly e Moro. 
José  Luis fez pequenas participações com a banda de Charly antes de ir morar  nos Estados Unidos, onde trabalhou no seu álbum solo, Mira Hacia el Futuro, lançado em 1982. Participou de vários grupos na Europa e, em 2007, lançou o disco Piedra por Cristal.  Por fim, Oscar Moro fundou a Riff e fez parte da Seru Giran, e em 1983  formou o Moro-Satragni ao lado de Beto Satragni, vindo a falecer em  2006.
Os  discos do La Máquina de Hacer Pájaros, seja pelas idéias musicais ou  pelo conjunto sonoro emanado pelos integrantes, são peças fundamentais  dentro de qualquer coleção de rock progressivo. A busca pelos mesmo e,  principalmente, a raridade, faz com que os valores dos álbuns  ultrapassassem R$ 100,00, chegando a valer R$ 500,00 em suas versões  originais, o que mostra como a banda conseguiu obter o respeito e a  valorização mesmo após ter encerrado a carreira de forma tão rápida. Não  é a toa que são considerados como o Yes do mundo subdesenvolvido,  caracterizando-se hoje como uma das mais raras e importantes bandas da  América do Sul.
 

 
 
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