quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Maravilhas do Mundo Prog: Mutantes - Pitágoras [1974]


Na última edição do Maravilhas do Mundo Prog, vimos como o Mutantes começou a desintegrar sua formação original com a saída de Rita Lee, após a gravação de Mutantes e Seus Cometas No País dos Baurets (1972), com a Maravilhosa faixa-título, e também do segundo álbum de Rita, o interessante Hoje É o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida (1972), com a Maravilhosa "Superfície do Planeta".

Coube a Arnaldo Baptista (teclados, vocais), Sérgio Dias (guitarra, vocais), Liminha (baixo) e Dinho Leme (bateria) manter o grupo na ativa, agora com o timão totalmente voltado para o rock progressivo. O grupo trancou-se na Serra da Cantareira, onde já viviam há algum tempo em uma espécie de comunidade similar a do Novos Baianos, e passou a criar novas canções, divulgadas no espetáculo Mutantes com 2 Mil Watts de Rock. Inspirados principalmente em Yes e Genesis, em 1973 o quarteto concebeu por lá uma das obras-primas do rock progressivo nacional, o álbum O A E O Z, que acabou sendo relegado pela gravadora do grupo na época, a Polydor.

A justificativa da recusa era de que o álbum estava fora dos padrões aconselhados para um lançamento na música nacional do início da década de 70. Afinal, originalmente O A E O Z era para ter sido lançado em formato duplo, com um dos vinis trazendo apenas a faixa-título. Além disso, todas as canções do disco foram gravadas sobre efeitos de ácido lisérgico nos quatro integrantes, tornando ainda mais insegura a qualidade do álbum perante os promotores da Polydor.

Somente em 1992 o mundo veio a conhecer parte da obra originalmente registrada para O A E O Z, e se deliciou com um dos melhores álbuns da carreira do grupo, infelizmente desprezado pelos promotores nos anos 70, e destacando as três min-suítes que constituem a obra central do disco, no caso "O A E O Z", "Hey Joe" e "Uma Pessoa Só".

Contra-capa de Tudo Foi Feito Pelo Sol

Cada vez mais mergulhado nas drogas, e com uma grave depressão pós-separação de Rita Lee, Arnaldo Baptista acabou saindo dos Mutantes, levando com ele Dinho e Liminha e registrando Lóki?! (1974), outro disco grandioso no rock nacional, gravado apenas com piano, baixo e bateria. Os Mutantes caiam de bandeja no colo de Sérgio Dias, e caberia a ele seguir com o grupo ou não. Durante um tempo, ele ainda teve a colaboração de Dinho e Liminha, junto do tecladista Manito. Essa formação não durou muito, com Manito indo fundar outro gigante do rock progressivo, O Som Nosso De Cada Dia, e Dinho se aposentando do cenário musical, alegando problemas com sua mão direita, mas indicando um nome para ser seu sucessor.

Assim, Sérgio seguiu em ação, reformulando o grupo com o baterista de Nikity Rui Motta (ex-Os Corujas, Sociedade Anônima e Veludo Elétrico) e o jovem tecladista mineiro Túlio Mourão (também ex-Veludo Elétrico), além de Liminha. Alguns ensaios ocorreram ainda com Dinho na bateria, mas isso não durou muito tempo, até Rui assumir definitivamente o posto. Com um contrato feito com a Som Livre, mudam-se para Petrópolis, onde ampliam a versão progressiva da fase com Arnaldo, resgatando um pouco do humor e simplicidade que havia consagrado o ainda trio Mutantes no final da década de 60. Porém, quando o álbum estava no meio de sua gravação, Liminha brigou com Sérgio por questões de musicalidade, saiu do grupo e acabou virando um dos maiores produtores da música brasileira.

Túlio Mourão, Sérgio Dias, Rui Motta e Antônio Pedro

Para seu lugar é chamado o também ex-Veludo Elétrico (e também de Niterói) Antonio Pedro. Com Sérgio assumindo definitivamente o posto vocal, essa nova formação transita entre o Jardim Botânico da capital fluminense e a serra da Itaipava, e acabou sofrendo muito preconceito por parte da imprensa, mas por outro lado, fez um grande sucesso perante os fãs do rock progressivo, fazendo shows no país inteiro e registrando, ainda em 1974, o álbum mais bem sucedido comercialmente do grupo, o excelente Tudo Foi Feito Pelo Sol, lançado em outubro do mesmo ano (completando portanto 40 anos no próximo mês).

O álbum abre com uma canção que havia sido composta quando Liminha estava na banda, a primeira de quatro faixas que levaram o nome do baixista nos créditos, "Deixe Entrar Um Pouco D'Água No Quintal", destacando a performance soberana de Rui, um dos bateristas mais injustiçados na música brasileira

Logo na sequência, surge a Maravilha de hoje. "Pitágoras" é uma obra de arte parida pela jovem mente de Mourão, e começa com o piano de Túlio fazendo os dois acordes do riff principal, enquanto a guitarra de Sérgio surge delirante com breves uivos. Enquanto Túlio brinca em dedilhados sobre os dois acordes do riff principal, Sérgio rasga a sua guitarra com escalas velozes, carregadas com efeitos de delay e misturando melodia com rasgadas notas. Rui passa a socar os tons da bateria, trazendo a marcação do baixo de Antonio, ao mesmo tempo que já estamos hipnotizados pelas notas do piano de Túlio. Teclados fazem a ponte que leva para a sequência da canção, através de notas praticamente computadorizadas, e então, com um ritmo bluesístico, conduzido pelos dois acordes de piano e uma simples levada de baixo e bateria, Sérgio solar enlouquecidamente com escalas muito velozes, em um volume abaixo do andamento.

Esse solo frenético abre espaço para Túlio começar a soltar os dedos em seu piano, criando uma nova escala muito veloz, acompanhada por marcações de baixo e bateria. Repentinamente, o violão surge para duelar com o piano, em escalas velozes na linha da Mahavishnu Orchestra, sempre acompanhadas por marcações de baixo e bateria. O duelo de escalas é interrompido, saindo para uma estranha sessão solo de Túlio, que em um momento free jazz, sobe e desce as escalas do piano e do clavinet enquanto ao fundo, baixo, percussão e violão repetem por diversas vezes as mesmas batidas.

A canção vai ganhando tensão com um crescendo do volume do baixo e da bateria, enquanto violão e piano voltam a duelar. Sob o ritmo de maracas, Túlio faz suas últimas escalas ao piano, e Sérgio faz um tímido solo ao violão, encerrando majestosamente nossa Maravilha Prog com um simples acorde de piano, e deixando a boca totalmente aberta com os seis minutos de uma canção fantástica.

Sérgio Dias, Antônio Pedro, Túlio Mourão e Rui Motta, em Petrópolis

"Desanuviar" encerra o Lado A, sendo a segunda das quatro canções do período com Liminha citadas acima, mantendo o clima progressivo com destaque para a forte presença do moog e da instrumentos indianos ao final da mesma, inspirados novamente na Mahavishnu Orchestra, mas também chamando a atenção a irônica parte da canção em que Sérgio cita "Quem sabe a música para de tocar", e temos após isso alguns segundos de puro silêncio.

O Lado B apresenta os rocks de "Eu Só Penso Em Te Ajudar" (outra da época de Liminha), na linha do que o Deep Purple fazia anos antes, inclusive com uma breve citação a "Black Night" no final dessa faixa, e "O Contrário de Nada É Nada", rock fenomenal com um solo grandioso solo de Túlio ao piano, a pesada "Cidadão da Terra", também da época com Liminha, com uma magnífica introdução feita pelos quatro músicos tocando as mesmas notas ao mesmo tempo, e a Maravilhosa faixa-título, que também poderia ser digna de aparecer por aqui qualquer quinta-feira dessas, com seu ritmo inspiradíssimo em Tales from Topographic Oceans (Yes), seja nos longos acordes de Hammond, nas variações da guitarra de Sérgio mas principalmente na base da cozinha Rui/Antonio.

Capa interna do vinil de Tudo Foi Feito Pelo Sol

Um ponto curioso é que o álbum foi gravado ao vivo nos estúdios da RCA, em Copacabana, sendo que com exceção de Túlio, os demais músicos estavam sob efeito de ácido (novamente). Os únicos overdubs surgiram nas vozes que aparecem em "Desanuviar", e só.

Depois do lançamento de Tudo Foi Feito Pelo Sol, o quarteto fez uma série de shows pelo país, indo do Rio Grande do Sul até a Bahia, enquanto o disco não parava de vender. Nas apresentações, o grupo praticamente fugia das canções da fase Rita, concentrando-se no álbum Tudo Foi Feito Pelo Sol e apresentando novas composições, que iriam fazer parte de um segundo disco dessa nova formação. São dessa época as hoje conhecidas - por conta de bootlegs - "Santo Graal", "Eu Quero Escutar o Sol", "Sempre Foi Assim" e "Hoje Eu Quero Voar", isso já no ano de 1975, quando o grupo foi eleito o segundo melhor do rock nacional (atrás apenas de O Terço, com o álbum Criaturas da Noite) e Sérgio foi eleito o melhor instrumentista do Brasil.

O álbum fez sucesso não só em terras tupiniquins, onde vendeu 30 mil cópias apenas na primeira semana nas lojas, mas também no exterior. Os gringos passaram a ver o Mutantes como um dos principais nomes do rock progressivo mundial, e consequentemente, enalteciam o grupo de Sérgio como o maior do Brasil, colocando Tudo Foi Feito Pelo Sol no topo dos melhores discos daqui, tanto que vários convites para o quarteto se apresentar por lá apareceram. 

Além destas, mais três acabaram vindo ao mundo oficialmente em um compacto de 7" no ano de 1976, e por incrível que pareça, trazendo mais uma Maravilha, como veremos daqui há quinze dias no Maravilhas do Mundo Prog.

A formação de Tudo Foi Feito Pelo Sol reunida em 2012:
Esmeria Bulgari, Túlio Mourão, Sérgio Dias, Antônio Pedro, Rui Motta e Fábio Recco

E antes de encerrar, vale a pena destacar que na edição do festival Psicodália da virada do ano de 2012 para 2013, mais precisamente no dia 30 de dezembro de 2012, o quarteto que registrou Tudo Foi Feito Pelo Sol voltou a apresentar-se juntos, interpretando o álbum na íntegra com a companhia de Esmeria Bulgari (vocais) e Fábio Recco (vocais) e marcando mais um grande momento na carreira do maior grupo de rock de nosso país.

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