Há quinze dias, comentei aqui no Maravilhas do Mundo Prog sobre a última joia criada pelo grupo na década de 70, a incrível "Cavaleiros Negros", lançada em 1976. Depois daquele ano, o grupo liderado por Sérgio Dias (guitarra, violões, Sitar, vocais) peregrinou pela Itália, voltando ao Brasil em 1978, quando realizou mais dois shows até encerrar as atividades em junho daquele ano, após dois malfadados shows, um em São Paulo e outro em Ribeirão Preto. Sérgio seguiu com uma carreira solo de altos e baixos, mudando-se para os Estados Unidos e apagando a chama Mutante de vez.
Os anos se passaram e sempre ficou uma sombra do passado pairando sobre a cabeça não só de Sérgio, mas dos outros dois membros da formação inicial: Rita Lee (vocais, teclados, percussão) e Arnaldo Baptista (baixo, teclados, mellotron, moog, órgão, vocais). Enquanto Rita consolidou uma carreira solo de extremo sucesso, seja com o grupo Tutti Frutti entre os anos de 1974 e 1977, seja com o marido Roberto de Carvalho, a partir de 1978, Arnaldo tentou de tudo o que pôde erguer uma carreira solo, lançado o aclamado Lóki!? em 1974 e Singin' Alone em 1982, além de montar a Patrulha do Espaço no final da década de 70, ao lado do excelente baterista Rolando Castelo Jr.. Porém, na virada do ano de 1982, Arnaldo jogou-se do terceiro andar de um prédio onde estava internado para tratamento, e acabou praticamente destruindo sua carreira musical. Apesar de ter sobrevivido à queda, Arnaldo ficou com diversas sequelas, e ano após ano, vem fazendo um longo tratamento de recuperação, gerando resultados satisfatórios.
Acima: Rita Lee com o Tutti Frutti (esquerda) e com o marido Roberto de Carvalho (direita); Abaixo: Arnaldo Baptista e a Patrulha do Espaço |
Em 1988, através de Luiz Carlos Calanca, as canções da Patrulha do Espaço com Arnaldo Baptista foram finalmente lançadas através dos excelentes O Elo Perdido e ... Faremos Uma Noitada Excelente. No ano seguinte, quando começaram a serem preparadas as atrações para a segunda edição do Rock in Rio, boatos de que o trio Rita, Sérgio e Arnaldo iriam voltar brotaram de todos os lados. Mas os contatos não passaram de reuniões Titanic, e mais uma vez o sonho era adiado indefinidamente.
Como consolo, e aproveitando-se do grande retorno que o Mutantes teve à mídia através da exposição que o líder do Nirvana, Kurt Cobain, fez quando de sua vinda ao Brasil, e com grande incentivo de Sérgio, a gravadora Polydor, através do produtor Mayrton Bahia, retirou da gaveta o projeto gravado em 1973 pelo quarteto Sérgio Dias, Arnaldo Baptista, Dinho Leme (bateria, tabla, percussão) e Liminha (baixo, violão e voz), o fantástico álbum O A E O Z.
Liminha, Arnaldo Baptista, Sérgio Dias e Dinho Leme |
Em uma fase onde o quarteto vivia, respirava e se alimentava de rock progressivo, O A E O Z foi originalmente concebido para ser um álbum duplo, gravado totalmente ao vivo nos estúdios, e com um dos vinis sendo dedicado à faixa-título, uma suíte com mais de 40 minutos de duração, nos moldes das grandes peças musicas de Yes, Genesis e Emerson Lake & Palmer, os grandes expoentes britânicos do rock progressivo da época. Lembrando que na época o quarteto vivia em uma casa na Serra da Cantareira, onde passava ensaiando, ouvindo muita música e consumindo diversos tipos de drogas, em uma comunidade na qual todos viviam como se fossem uma única pessoa, gerando o famoso lema "Uma Pessoa Só". A faixa "O A E O Z" iria registrar essa espécie de "religião", na qual todos eram um só, desde o A até o Z, e como a própria letra da suíte afirma, sendo o começo e o fim em uma pessoa só. A audácia e por que não estranha comunidade acabou sendo vetada pela Polygram, que considerou o projeto totalmente anti-comercial, e engavetou o álbum por diversos anos.
Decepcionado, Arnaldo saiu da banda, que seguiu adiante temporariamente com Manito (Incríveis, Som Nosso de Cada Dia) no seu lugar, e depois, já com Túlio Mourão nos teclados, começou a gravação de Tudo Foi Feito Pelo Sol, ocasionando então na Maravilhosa "Pitágoras", apresentada aqui em setembro passado.
Rara imagem dos Mutantes: Rui Motta e Liminha (acima); Túlio Mourão e Sérgio Dias (abaixo) |
Ao que consta, quando O A E O Z chegou às lojas, muito do material que foi registrado em 1973 acabou sendo perdido. Se isso é mito, não posso afirmar, mas o que afirmo tranquilamente é que mesmo o CD sendo curto, com quase cinquenta minutos, o grupo conseguiu apresentar parte da suíte O A E O Z, através de três Maravilhosas mini-suítes, das quais escolhi a maior delas para ser apresentada por aqui, "Hey Joe".
O álbum abre com a primeira mini-suíte, "O A E O Z", explorando os dotes musicais de Arnaldo nos teclados, em pouco mais de oito minutos de belíssimas experimentações, que nos remetem por diversas vezes para passagens de Tales from Topographic Oceans (lançado pelo Yes também em 1973) e gravam na mente as palavras "sou o começo, sou o fim, sou o A e o Z numa pessoa só", o lema do grupo na época. Após passarmos pelo rock simples de "Rolling Stones" e a intrincada peça acústica de "Você Sabe", baseada explicitamente em linhas da Mahavishnu Orchestra, chegamos na segunda parte da suíte, a Maravilhosa "Hey Joe".
Sérgio Dias e Liminha, ao vivo em 1973, durante o espetáculo Mutantes com 2000 Watts de Rock |
A mais longa das três mini-suítes começa com um dedilhado sombrio da guitarra de Sérgio, carregada de efeitos, em uma longa e bela introdução que nos coloca dentro da viagem musical que o Mutantes irá apresentar ao ouvinte. A voz adocicada de Sérgio surge ao mesmo tempo em que ele dedilha a guitarra, com intervenções do moog de Arnaldo e do baixo de Liminha, também carregado de distorção. Duas estrofes vocais explodem em uma série de vocalizações acompanhadas por rufadas de bateria e que novamente, nos levam para álbuns do Yes como Close to the Edge e o já citado Tales from Topographic Oceans. O trabalho vocal é fantástico, muito bem construído, e enquanto os instrumentos se sobrepôem, o trio Liminha, Arnaldo e Sérgio dá um show.
Uma breve passagem leva para o pesado riff de baixo e guitarra, trazendo o duelo vocal de Sérgio com o órgão de Arnaldo, e assim "Hey Joe" vai sendo construída, com mais uma variação surpreendente, agora com a guitarra de Sérgio acompanhada pelo órgão, em um novo riff que é repetido pelo baixo, responsável por resgatar o ritmo da canção.
Dinho faz batidas intrincadas enquanto Sérgio solta a voz sobre o riff de baixo, as viagens passagens do mellotron e o dedilhado da guitarra. Esse momento é fantástico e arrepiante. O que Sérgio canta é um absurdo, e as vocalizações ao fundo são emocionantes, arrancando lágrimas junto com as camadas de teclados, o pesado baixo de Liminha, bem na cara do ouvinte, e momentos instrumentais que fazem qualquer fã de Yes vibrar com o que está ouvindo.
A nossa Maravilha muda novamente, ganhando tons de apreensão com mais um novo dedilhado da guitarra, acompanhado pelo órgão assombroso de Arnaldo. Sérgio executa arrepiantes vocalizações, ganhando pontos até entre aqueles que nunca souberam valorizar sua capacidade vocal, e os minutos que se passam sob o comando tenso do órgão e do dedilhado da guitarra, com Liminha socando seu baixo em batidas precisas e pontuais, mescladas com percussões delirantes, só podem ter sido concebidas por gênios do rock progressivo.
Encarte de O A E O Z, devidamente autografado |
"Hey Joe" modifica-se mais uma vez, surpreendendo novamente voltando para um ritmo mais ameno com o dedilhado da guitarra, o órgão de Arnaldo e as escalas de baixo e bateria supostamente inspiradas em "The Remembering" e "Ritual" (Yes). Sérgio canta com vocais duplicados, entoando o nome da canção, e o ritmo ameno, quase jazzístico, é mais uma prova de que os garotos aprenderam muito bem as lições de rock progressivo que tiveram com os britânicos.
Finalmente, "Hey Joe" encaminha-se para o final repetindo o lema "Todos juntos, reunidos, numa pessoa só", sobre um andamento simples dos quatro instrumentos, concluindo com uma breve passagem de baixo.
Logo na sequência, a suíte "O A E O Z" é encerrada com outra Maravilha musical, "Uma Pessoa Só", a mais curta das mini-suítes, com pouco mais de sete minutos de duração de uma canção que praticamente virou o apelido do álbum, já que sua letra é a mais forte dentre as três partes que apareceram no álbum, destacando a emocionante interpretação de Arnaldo, que inclusive registrou a sua versão para "Uma Pessoa Só" no já citado Lóki!?. O álbum encerra-se com o agito de "Ainda Vou Transar Com Você", último registro de uma formação inesquecível para o rock progressivo mundial.
Arnaldo na Cantareira |
Vale resgatar que pouco antes das gravações de O A E O Z, os Mutantes apresentaram o espetáculo Mutantes com 2000 Watts de Rock, iniciado em 12 de janeiro de 1973 no Teatro Aquarius, em São Paulo. Era a primeira apresentação dos Mutantes sem Rita Lee, e nesse show, traziam instrumentos inéditos no Brasil como mellotron, Sitar, moog e clavinete, o grupo tinha a seu dispor uma máquina sonora do mesmo porte do que o Pink Floyd tinha durante a turnê de Dark Side of the Moon (1973), oferendo aos fãs os 2000 Watts de potência que o nome do espetáculo propagandeava. Esse show passou por diversas cidades do interior do país, e também em Porto Alegre, Florianópolis, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Salvador, onde lotaram o Teatro Castro Alves com mais de cinco mil pessoas. O grupo começava a viver um auge progressivo no Brasil.
As influências para a mudança no som do Mutantes não foi somente por conta do rock progressivo britânico. Arnaldo, em uma de suas descidas da Serra da Cantareira, viu o ensaio de uma banda chamada Mescla, no bairro da Aclimação, em São Paulo. A Mescla era liderada por Bartô, um maluco que raspava lascas de ácido diretamente nos olhos. Esse grupo, mergulhado em ácido, fazia um som viajante, e eram muitos mais novos do que os Mutantes. Aquele tipo de som era o objetivo de Arnaldo, virando uma cobiça a posição de melhor banda do país, não só musicalmente, mas tecnicamente, e que espalhou-se aos demais, e culminou com Maravilhosas canções que apareceram em sequência por aqui.
Mutantes em 2012, nada progressivo |
O A E O Z foi lançado em CD e em uma tiragem limitadíssima de 700 cópias em vinil. Depois de seu lançamento, passaram quatorze anos de muitos boatos, ainda mais quando do lançamento de Tecnicolor, álbum gravado na Europa em 1970 com o quinteto Sérgio, Arnaldo, Rita, Dinho e Liminha, mas somente em 2006 os Mutantes voltaram à atividade com Sérgio, Arnaldo e Dinho acompanhados por Zélia Duncan, no inesquecível show no Barbican Theatre em Londres, e uma grandiosa excursão de retorno feita pelo Brasil e também Estados Unidos e Europa. Arnaldo e Zélia saíram pouco antes do lançamento de Haih ... or Amortecedor (2010), e Dinho ano passado, quando do lançamento de Fool Metal Jack, álbuns que resgatam um pouco do lado irônico dos Mutantes, que sobrevivem com uma formação muito diferente daquela que se consagrou como talvez a melhor banda de rock progressivo da América Latina.
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