quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Maravilhas do Mundo Prog: Mutantes - Cavaleiros Negros [1976]



Com o lançamento de Tudo Foi Feito Pelo Sol (1974), contendo a Maravilhosa "Pitágoras", o sucesso imediato através de uma expressiva marca de vendas (mais de 300 mil cópias) e shows lotados pelo Brasil inteiro fez do grupo paulista Mutantes um expoente ainda maior do que já era, e então, o grupo não parava de compor, ao mesmo tempo que crescia conceitualmente para os empresários. Em janeiro de 1975, a trupê de Sérgio Dias vira a principal atração de dois grandes festivais que estavam sendo realizados no país: Hollywood Rock (Rio de Janeiro) e Festival de Águas Claras (Iacanga, no interior paulista).

O Festival de Águas Claras foi considerado na época como a versão brasileira do Woodstock, já que várias situações eram idênticas ao famoso festival americano de 1969, como o número de datas (três dias), as chuvas e a lama que tomou conta do local e a grande quantidade de drogas que circulavam pelos fãs.

Mutantes como destaque na revista POP de março de 1975

No cast do festival, nomes consagrados e outros que começavam a engatinhar. Dentre os grandes nomes, O Terço, Walter Franco, Som Nosso de Cada Dia e Terreno Baldio eram os principais, além dos Mutantes, que encerrariam o festival. Das nas novidades, estavam A Barca do Sol, Apokalypsis, Burmah, Capote, Jorge Mautner, Moto Perpétuo, Ursa Maior, entre outros.

Porém, na mesma época do Festival de Águas Claras, ocorria a primeira edição do Hollywood Rock, através do empresário Nelson Motta. Em 11 de janeiro, começou uma série de quatro fins de semana apresentando alguns dos maiores nomes da música nacional. Erasmo Carlos, Raul Seixas, O Peso, Rita Lee e Tutti Frutti, Vímana e Celly Campelo acabaram se tornando as figuras protagonistas do interessante filme que documentou esse momento histórico na música nacional, e que deixou de fora diversas outras grandes apresentações do Hollywood Rock.

Rui Motta, Antonio Pedro, Túlio Mourão e Sérgio Dias

Uma dessas apresentações ocorreria no dia 18 de janeiro, o segundo fim de semana do festival, com o encerramento feito pelo Mutantes. Tudo corria bem durante a apresentação do Veludo Elétrico, até que, pouco antes de Sérgio Dias (guitarra, vocais), Antônio Pedro (baixo, vocais), Rui Motta (bateria) e Túlio Mourão (teclados) subir ao palco, uma grandiosa tempestade de verão que destruiu o palco e os instrumentos do grupo, tornando impossível da banda se apresentar em Iacanga.

Apesar dos problemas de janeiro, o ano de 1975 seguiu com diversas apresentações do grupo pelo interior do Brasil, bem como temporadas curtas em teatros de Rio de Janeiro e São Paulo. Neles, diversas composições novas eram apresentadas para os fãs, como bem atesta o bootleg Ao Vivo em Londrina. Uma delas acabou sendo selecionada para o novo lançamento do quarteto, através de um compacto com mais duas canções que chegou às lojas em março de 1976, com o lado A se tornando a Maravilha de hoje, a pérola "Cavaleiros Negros".

Com pouco mais de oito minutos de duração, "Cavaleiros Negros" surge com o riff da guitarra de Sérgio trazendo a base do órgão e do baixo enquanto Sérgio sola alucinadamente. Essa base acompanhando a letra, que para cada estrofe de três frases, é intercalada por vozes dizendo "não, não, não, não". Depois de duas estrofes, o ritmo modifica-se com uma série de escalas, ficando mais agressivo e com Sérgio soltando a voz.

Vocalizações acompanham a letra de Sérgio, enquanto o andamento permanece cadenciado e governado pelo órgão e pela guitarra, passando por intervenções da guitarra, ora em solos breves, ora com harmônicos. Depois de mais quatro estrofes, encerradas com a eterna frase "E eu fico nu com Deus", os teclados de Túlio tomam conta da canção, primeiro com uma breve passagem do órgão de igreja, e depois com o clavinet fazendo a festa em um solo belíssimo, tendo ao fundo harmônicos da guitarra, a condução do chimbal e a repetição por diversas vezes da frase "E eu fico nu com Deus", em um momento deliciosamente viajante.

Contra-capa do compacto, destacando as canções do lado B

A canção vai ganhando ritmo, voltando então para o andamento inicial, assim como a frase "E eu fico nu com Deus ganha volume", e Sérgio rasgando as cordas vocais com um longo agudo, até que repentinamente, a canção para, ficando apenas os acordes de órgão e percussão.

A voz de Sérgio surge com efeitos, retomando partes da letra da canção, enquanto teclados viajam de uma caixa de som para outra com muitos barulhos, até que majestosamente, Sérgio entoa pela última vez a frase "E eu fico nu com Deus", levando então a canção ao seu final, primeiro com o riff final feito por guitarra e órgão acompanhados por uma batida de percussão e do baixo, estourando no esplêndido e melódico solo de guitarra, que repete o riff final junto com o órgão, para os dois começarem a duelar com solos sobrepostos de clavinete e guitarra, em um duelo inesquecível e marcante da qualidade técnica que o Mutantes apresentou com o quarteto Túlio Mourão, Antonio Pedro, Sérgio Dias e Rui Motta.

Depois desse incrível e soberano duelo, as marcações de Rui resgatam o riff final junto com o baixo, enquanto guitarra e clavinet estão em um muno a parte, para finalmente, órgão, baixo e guitarra repetirem pela última vez o riff final, enquanto Rui dá um show a parte com viradas velozes e muitas batidas nos pratos.

Lulu Santos, Antonio Pedro e Arnaldo Baptista, no projeto Unziôtru

O lado B do compacto contém duas canções também inéditas, a agitada "Tudo Bem", com vocais de Antônio Pedro e Sérgio, parecendo sair dos álbuns do Casa das Máquinas, e a bonita balada "Balada do Amigo", última canção de estúdio registrada pelos Mutantes até os anos 2000, já que novas brigas internas - tanto por falta de dinheiro quanto por questões musicais - causaram uma nova reformulação na banda, com Luciano Alves, um jovem mineiro de apenas 20 anos, e Paul de Castro, ex-guitarrista do Veludo Elétrico, substituindo respectivamente Túlio Mourão e Antônio Pedro, em março de 1976. Junto com Paul de Castro, que virou baixista, o violino ganhou espaço em algumas canções, já que Paul também era um hábil instrumentista.

Túlio virou músico de estúdio, lançando-se posteriormente em uma carreira solo quase desconhecida, enquanto Antonio foi para a trupê de Tim Maia, gravando Tim Maia (1976). Pouco depois, veio a tocar com outro Mutante, no caso Arnaldo Baptista, no projeto Unziôtru, ao lado de Lulu Santos (guitarra) e Lobão (bateria), que haviam acabado de desmanchar a Vímana. O projeto infelizmente não deu certo, mas a dupla Antonio e Lobão acabou criando um dos principais expoentes do BRock na década de 80, o grupo Blitz, sendo Antonio um dos principais nomes do projeto que depois virou sinônimo de Evandro Mesquita.

Rui Motta, Luciano Alves, Sérgio Dias e Paul de Castro

O novo Mutantes seguiu investindo no rock progressivo, com diversos shows pelo Brasil, sempre abarrotados de gente, e ainda precisando lançar um novo material de inéditas para a Som Livre. Como conseguir dinheiro estava cada vez mais difícil (apesar das boas vendagens de Tudo Foi Feito Pelo Sol e a grande quantidade de shows), resolvem fazer o registro de um deles para o lançamento de um álbum duplo, no caso os shows realizados durante uma longa temporada no agosto de 1976, realizada no Museu de Artes Modernas, no Rio de Janeiro. Porém, a crise na banda era muito grande, e sobrou para Pena Schmidt fazer a produção do álbum.

No fim, o formato duplo acabou sendo questionado pela Som Livre, e com diversas podas vergonhosas, Ao Vivo foi lançado ainda em 1976, no formato simples, gerando bastante divergência e mais brigas. Apesar dos cortes, algumas canções tornaram-se clássicas, com um diálogo fantástico de guitarra e teclados permeados por uma cozinha extremamente competente, de uma das melhores formações técnicas que o Mutantes fez, e que pode ser conferida em "Rock 'n' Roll City", "Sagitarius", "Esquizofrenia" ou "Grand Finale", além de "Anjos do Sul", que abre e encerra o LP derradeiro da carreira da banda, que começava a perder espaço em nosso país.

O contestado Ao Vivo

Porém, na Europa, o grupo crescia cada vez mais, e assim, em junho daquele ano partem para uma temporada na Itália. Pouco antes, em fevereiro de 1977, o grupo apresentou-se ao lado de O Terço em uma série de shows por São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Porto Alegre, Florianópolis, Curitiba e Belo Horizonte, para uma homenagem aos Beatles, naquele foi considerado como o maior acontecimento da música pop brasileira do ano de 1977.

Na Europa Sérgio foi convidado para participar da banda de Eric Burdon e da italiana Aria, mas ele ainda via futuro para o Mutantes, e voltou ao Brasil após um semestre inteiro de apresentações e construção de novas canções. Afinal, haviam esperanças de manter a chama acesa. Mas o retorno ao Brasil, em outubro de 1977, foi frustrante, pois com a invasão punk e a cena disco do final da década de 70, desbancaram o progressivo de vez.

Sérgio queria o retorno de Arnaldo Baptista para a banda, o que não ocorreu, e então, passou o final de 1977 reformulando a banda, agora com um novo baixista, Fernando Gama (ex-Vímana). Tentando salvar a barca, e resgatar um sucesso que não existia mais da época com Rita Lee nos vocais, resolve colocar a esposa de Fernando, Betina Gama, para fazer vocalizações.


Sérgio Dias, Rui Motta, Luciano Alves e Fernando Gama

Em 31 de maio de 1978, começa o que deveria ser uma série de shows por São Paulo, apresentando-se no Palácio das Convenções Anhembi tendo como abertura Arnaldo Bapstista, que vez ou outra fazia canjas com o grupo. O show do Anhembi recebeu duras críticas da imprensa, destacando a vibrante apresentação de Arnaldo e a falta de bom senso de Sérgio ao apresentar muita técnica e pouco sentimento, como um pretenso John McLaughlin. Vale ressaltar que na mesma época, Arnaldo estava montando a Patrulha do Espaço, e recebendo grandes críticas também por conta da falta de técnica dos integrantes da banda.

A turnê acabou não vingando, e para tristeza total do rock progressivo brasileiro, pouco mais de 200 pessoas assistiram ao último show dos Mutantes no Teatro de Arena da cidade de Ribeirão Preto, em 6 de junho 1978.

Última formação dos Mutantes na década de 70:
Rui Motta, Luciano Alves, Sérgio Dias, Betina Gama e Fernando Gama

Passaram-se 14 anos de muitas especulações do retorno do trio original Sérgio Dias, Rita Lee e Arnaldo Baptista, mesmo com o grave acidente que ocorreu com Arnaldo em 1982. Foi o resgate de uma Maravilha desconhecida do grupo, registrada em 1973, que os Mutantes voltaram a fazer o coração dos amantes proggers a bater mais forte, como veremos daqui há quinze dias, no Maravilhas do Mundo Prog.

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