Dentre as inúmeras surpresas positivas que o ano de 2014 propiciou na música nacional, o Memórias de Um Caramujo talvez seja o que mais dificuldade irá trazer ao ouvinte, mas em compensação, ao se acostumar com essa obra perturbadora e incrível dos paulistas, a satisfação após cada audição é equivalente ao do grito de gol em uma vitória do seu time de coração no último segundo da partida.
Nascido em 2007, o grupo passou a frequentar as principais casas de show da Terra da Garoa, como o Auditório Ibirapuera, Casa de Francisca, Centro Cultural Rio Verde, e pouco a pouco, lento como um caramujo, começou a conquistar terras d'além Itaquera / Barra Funda, conquistando o prêmio de Melhor Canção com "Alice", durante o 38° Festival Nacional da Canção de Minas Gerais).
Depois de algum tempo, registraram o primeiro CD, Memórias de Um Caramujo - Ao Vivo (2011), registrado durante cinco noites no Espaço Cachuera!, em Sampa. A banda, formada por André Vac (guitarra, bandolim, charango e voz), Beatriz Mentone (voz), Gabriel Basile (bateria e percussão), Gabriel Milliet (violão, sax, flauta e voz) e Thomas Huszar (baixo e voz), continuou participando de festivais e fazendo muitos shows, sempre conquistando posições de destaque, e em 2014, lançou seu segundo CD, Cheio de Gente.
Definir o som do grupo é muito complicado, talvez mais ainda do que tentar resgatar as Equações de Maxwell para alunos de Licenciatura em Física, já que as variações são tantas, indo do folk ao samba com uma naturalidade apaixonante.
Para ser seduzido pelo Caramujo, comece com "Rio", a quarta faixa de Cheio de Gente, na qual os arranjos acústicos e o acordeão de Tomás de Souza, misturados com a bela voz de Beatriz, levarão o ouvinte para Portugal, mais especificamente às encantadoras canções de Madredeus, mas com pitadas latinas apresentadas pelo charango que enaltecem de cara a criatividade desses jovens músicos, e então retorne para "Caminho de Volta", com outro belíssimo arranjo acústico que novamente destaca a voz de Beatriz, remetendo-nos agora para os idos tempos de Woodstock, lembrando muito canções de Crosby, Stills & Nash, arrebatado pelo arranjo de cordas de um quarteto fabuloso, formado por Éverton Amorim (violino), Samuel Mello (violino), Mica Nassif (violino) e Jefferson Martins (violoncelo).
Ouvir os acordes iniciais da deliciosa "Meu Corpo É" é fazer uma viagem para Bron-Y-Aur sem sair do país, com uma parada especial para beber um chope com o pessoal do Clube da Esquina, tendo como trilha sonora outro impressionante arranjo de cordas feito por Milliet, mas se você não quer esse tipo de música, "Tribo dos Homens" surge recheada de vocalizações e percussões, além de uma guitarra carregada de distorções, em uma das melhores letras que foram registradas em 2014, criticando a forma como saímos de nossas tribos para viver a tribo dos outros, candidata também a Melhor Canção de Cheio de Gente pela sua bela sessão instrumental de encerramento, com um solo de guitarra que facilmente irá lembrar os tempos nos quais Robert Fripp comandava as seis cordas do King Crimson.
O jazz suave de "O Sino" traz a presença do ukulele como novidade entre as passagens de metais, piano e efeitos sonoros diversos, enquanto "Ávida Dúvida" é um samba-psicodélico, com uma letra esquisitóide que mistura Elis Regina com Tom Zé, surpreendendo durante o refrão, sendo estas duas canções que causarão arrepios e saculejos na mente e no corpo do nosso colega Marco Gaspari, destacando os espetaculares arranjos instrumentais.
Beatriz é outro grande destaque do grupo, que derrama-se em emoção durante a dramática "Potosí", apresentando um frenético solo de saxofone por Milliet, o terceiro grande formador do Caramujo. Lembra a Trilha Sonora de "Prenda-Me Se For Capaz", grande sucesso do Cinema com Leonardo de Caprio e Tom Hanks? Pois duvido que você não lembre-se dela durante o riff de "Sadamça", com alternância entre os vocais de Beatriz e André.
"Nina" é a canção mais intrigante do álbum. André canta a mesma contando uma história enquanto uma criança dorme, trazendo temas assustadores para a coitada, revelando as indignações e preocupações do pai, em uma viajante letra que demonstra a realidade de muitos pais pelo mundo afora, tudo acompanhado com um arranjo de metais e cordas que mistura a psicodelia do tropicalismo com rap e hard rock, contando com a participação de Tim Bernardes (O Terno) nas guitarras e Marcelo Politano (clarinete e saxofones). Outra canção que intriga é "Delírios de Chuva", peça mágica levada por um dedilhado sinistro do violão e a voz angustiante de André, com uma tensa e confusa sessão central, e um Gilmouriano solo de guitarra.
"Cosmogonia", canção que encerra Cheio de Gente, retorna aos vocais estranhos de "Nina", quase falados, e que são o grande ponto de interrogação na música do Memórias de Um Caramujo. Nas primeiras audições, a voz de André soa muito aquém do que podíamos esperar para uma boa apreciação, mas com o passar do tempo, o encaixe da voz com as letras e a musicalidade acaba sensibilizando o ouvido, e fazendo do Memórias de Um Caramujo uma das principais bandas da atualidade, ao lado do El Efecto, Cattarse e O Terno.
Talvez você demore para se adaptar a essa obra, mas a partir do momento em que o disco "atingir" você, prepare-se para ficar dias com as linhas das onze canções de Cheio de Gente em sua cabeça. E que em 2015, o rock nacional continue trazendo novidades tão maduras e belas quanto o Memórias de Um Caramujo.
Talvez você demore para se adaptar a essa obra, mas a partir do momento em que o disco "atingir" você, prepare-se para ficar dias com as linhas das onze canções de Cheio de Gente em sua cabeça. E que em 2015, o rock nacional continue trazendo novidades tão maduras e belas quanto o Memórias de Um Caramujo.
1. Ávida Dúvida
2. Caminho de Volta
3. Nina
4. Rio
5. Meu Corpo É
6. Potosí
7. Tribo dos Homens
8. Delírios de Chuva
9. O Sino
10. Sadamça
11. Cosmogonia
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