sábado, 29 de março de 2014

Burn: Incendiando o California Jam (A Noite que Ritchie Blackmore Nunca Esqueceu) - Parte I




É o ano de 1973, e Ritchie Blackmore finalmente tinha um vocalista gritando no palco tal qual Robert Plant fazia no Led Zeppelin (o que comprova a importância do Led até para as principais bandas do ramo). Ian Gillan era A VOZ dos sonhos para o geni(oso)al guitarrista britânico, e tudo parecia andar bem para o Deep Purple, com o LP Machine Head nas alturas e o estrondoso sucesso do álbum Made in Japan, gravado ao vivo no Japão.

Porém, o mar de rosas começou a sugar o barco roxo do guitarrista durante as gravações de Who Do You Think We Are?. Blackmore e Gillan começaram a se desentender cada vez mais, ao ponto de Gillan compor uma música do disco especialmente para o guitarrista: "Smooth Dancer".

Ian Gillan e Ritchie Blackmore, inimigos inseparáveis

No primeiro semestre de 1973 o clima de stress entre os dois chegou ao auge, com Gillan exagerando na bebida e discutindo frequentemente com Blackmore nos mais variados lugares (hotéis, camarins, restaurantes, aviões, ...). No dia 29 de junho de 1973, caía a casa. Durante a segunda turnê do grupo no Japão, em um show na cidade de Osaka, O vocalista anuncia ao mundo que aquele era o último show do Deep Purple com ele, inclusive negando-se a cantar um dos principais versos de "Smoke on the Water", o que fala exatamente sobre que "não importa o que possamos tirar disso".

A saída de Ian Gillan chocou a todos, menos Blackmore, que ainda sugeriu a Roger Glover para que o mesmo saísse da banda. E foi o que o baixista fez, virando um produtore de renome na gravadora Purple Records, revelando nomes como Nazareth e Judas Priest, além de produzir seu próprio álbum, The Butterfly Ball, enquanto Gillan foi trabalhar no ramo da hotelaria e também desenvolvendo competição de motos. Blackmore ficava com o tecladista Jon Lord e o baterista Ian Paice para seguir a carreira do Deep Purple, responsáveis estes pela criação do que convencionou ser chamado Mark III.

Ritchie Blackmore: genioso e genial

Esse é o início de uma longa história que começo a narrar hoje, que culminará com a noite de 06 de abril de 1974, noite essa que o guitarrista Ritchie Blackmore nunca mais esqueceu. Para isso, irei passar brevemente por fatos importantes que ocorreram entre 1973 e 1974 tanto para o Deep Purple quanto para os outros três grandes nomes de um dos maiores festivais de música que o mundo já viu, no caso Black Sabbath, Eagles e Emerson Lake & Palmer. Em duas partes, dividirei as atenções de vossos olhos tendo como cerne o Deep Purple, agregando detalhes dos grupos citados até chegarmos à fatídica noite de 06 de abril.

A experiência progressiva de
Sabbath Bloody Sabbath
Por exemplo, é fundamental antes de mergulharmos mais nas profundezas roxas da Mark III, ressaltar que o Black Sabbath vivia o primeiro momento crucial de sua carreira.


Sabbath Bloody Sabbath havia chocado os fãs quando do seu lançamento em 1973, principalmente pela forte influência do rock progressivo em canções como "Spiral Architect", "Sabbra Cadabra" e "Who Are You".

Por outro lado, a imprensa rendia-se para Tony Iommi e cia, sendo aclamados por um trabalho competente, que colocou o grupo entre os mais vendidos no Reino Unido e Estados Unidos. Para muitos, esse foi o último grande disco que o grupo lançou, e de uma forma ou de outra, a partir daqui as brigas iriam começar e levar o grupo ao seu fim precoce em 1979.

A alavanca do Eagles
para os americanos
No mesmo ano, o Eagles era a maior sensação nos Estados Unidos.

Os californianos haviam lançado o seu segundo disco, o conceitual Desperado, baseado na história da Gangue de Dalton e no Velho Oeste, trazendo a fundamental faixa-título e fazendo com que o Eagles vendesse mais de dois milhões de cópias apenas nos Estados Unidos, com o single de "Outlaw Man" entrando entre os sessenta mais da Billboard.

Era o primeiro passo para a banda se tornar a mais vendida na América anos depois, com o aclamadíssimo Hotel California, e o último como quarteto.

Brain Salad Surgery, o grande
álbum do ELP
Por fim, Keith Emerson (teclados), Greg Lake (baixo, guitarra, vocais) e Carl Palmer (bateria, percussão) conquistavam o mundo com seu melhor trabalho, Brain Salad Surgery. O álbum apresenta a épica suíte "Karn Evil 9", e foi tão bem sucedido entre imprensa e fãs que fez com que o grupo embarcasse para uma gigantesca turnê mundial, com um palco moderno, repleto de inovações, e que certamente, seria o encerramento de ouro para a turnê apresentações nos Estados Unidos, país sabiamente admirador de projetos bizarros.

Como vemos, temos quatro grandes bandas que estavam em um grande momento de suas carreiras, não necessariamente o máximo delas, mas o suficiente para serem protagonistas em um evento de renome.

Seguimos então pelo verão americano de 1973. As especulações em torno do novo vocalista do Deep Purple surgiam com nomes como Paul Rodgers e Phyl Lynott. Na verdade, o trio Lord/Blakmore/Paice já estava de olho em um jovem talento que surgia no power trio Trapeze, principalmente Paice, e assim, acompanham a turnê americana do grupo, e em Nova Iorque, oferecem a proposta para Glenn Hughes ser o novo baixista do Deep Purple. Hughes aceitou a proposta, apesar de um certo receio em não acreditar no convite, e deixar o Trapeze em seu melhor momento. Mas o fato de que o trio havia prometido Rodgers como vocalista oficial ajudou na decisão final.

Em busca do novo vocalista, um anúncio foi colocado nos jornais, de onde surgiram milhares de candidatos, entre eles um dos líderes da The Fabulosa Brothers, David Coverdale. O contato de Coverdale com o Purple ocorreu através de um management chamado Roger Baker, que conseguiu o telefone de contato da Purple Records e informou que naquela semana enviaria uma fita da The Fabulosa Brothers para ser conferida.

Ian Paice, uma locomotiva sonora

Três semanas após a audição da fita, que contava com uma foto de Coverdale ainda escoteiro, o cantor foi chamado para uma audição, e a confirmação do mesmo como novo vocalista do Deep Purple ocorreu em setembro de 1973, ao mesmo tempo que Hughes se despedia do Trapeze. No mesmo mês começam a compor para o novo álbum, e em novembro, com o estúdio móvel dos Rolling Stones, começam as gravações do primeiro álçbum da Mark III em Montreux, na Suíça. De lá, partem para Copenhagen, aonde apresentam-se pela primeira vez com a nova formação no dia 09 de dezembro de 1973, e também gravam uma faixa instrumental, "Coronarias Redig", que virou lado B de "Might Jut Take Your Life" (lançada anos depois na coletânea Anthology de 1985). Até 17 de dezembro, passam por Suécia, Bélgica, Áustria e Alemanha.


Ian Paice, Glenn Hughes, David Coverdale, Ritchie Blackmore e Jon Lord: a Mark III

Chega o ano de 1974, e os shows continuam pela França e Alemanha no mês de janeiro, com apresentações incendiárias de Paice, Blackmore, Hughes e Lord, e notabilizando que a entrada de Coverdale e Hughes tinha dado um gás novo para o quinteto, assim como a parada para a reestruturação do Purple aumentou o contato de Blackmore com a guitarra, aumentando sua técnica.

40 anos de um dos principais álbuns da história

No dia 15 de fevereiro daquele ano, Burn chegou às lojas inglesas, e na América no mês seguinte. Um álbum fantástico, que mesmo com o início elétrico, traz uma sonoridade muito diferente da Mark II. O LP começa com um dos principais riffs do rock mundial introduzindo a faixa-título. O potente vocal de David Coverdale surge para o mundo, com Glenn Hughes auxiliando em diferentes estrofes. Blackmore faz um de seus solos mais vibrantes, seguido pelo solo de Lord. O pique de "Burn" é incompreensível, com Hughes e Paice mantendo a cadência durante exatos seis minutos de muito agito.

O clima muda com "Might Just Take Your Life", uma prova de democracia purpleana. Mais um riff inesquecível no Hammond de Jon Lord introduz a voz de Coverdale na primeira parte da letra, aliás uma das melhores do Purple, seguido do refrão. A sequência de alternância vocais é fantástica, com Hughes dando um balanço e malemolência simplesmente fenomenais. A faixa encerra com um solo de Lord sob os vocais de Hughes e Coverdale. Perfeição pura!!!

Glenn Hughes, a diferença principal da Mark III

A pancadaria retorna em "Lay Down Stay Down", em um pique parecido com o de "Burn", com destaque para o piano de Lord e as viradas de Paice, bem como o riff executado por Blackmore e Hughes. Coverdale canta a primeira parte da letra e Hughes a segunda, com o mesmo ocorrendo no refrão, outra prova da incrível harmonia vocal construída pelos dois.

O lado A encerra com "Sail Away", uma canção dançante, onde novamente a divisão de vocais funciona, e bem. Para os fãs da Mark II talvez essa faixa não seja das melhores, mas para um apreciador de música em geral o ritmo dançante e as melodias de Blackmore e Lord são muito boas.

Contra-capa de Burn

O lado B inicia como o lado A. Muito pique e vibração fazem parte de "You Fool No One", tendo pouco a pouco os instrumentos acrescentados à canção. Ian Paice apresenta seu braço esquerdo, quase quebrando o prato, seguido de Blackmore, Hughes e finalmente Lord, que constróem um riff matador, com Coverdale e Hughes cantando juntos. Novamente Blackmore brilha em dois grandes solos, fazendo desta mais uma obra-prima.

A alternância de sonoridades já havia ficado marcada no álbum, e a faixa seguinte é a dançante "What's Goin' on Here", talvez a mais parecida com as músicas do Trapeze. Cheia de overdubs, a introdução na guitarra de Blackmore dá espaço para as harmonias vocais funcionarem. Coverdale e Hughes cantam cada um uma frase da letra, com ambos dividindo os vocais no refrão. O solo de Blackmore é simples e direto, com Lord delirando ao piano, o que é muito legal, principalmente por fugir do habitual uso de Hammond.

David Coverdale, a nova VOZ do Deep Purple

A seguir uma das baladas mais lindas da história do rock, "Mistreated". Composta ainda nos tempos em que o grupo estava procurando por um vocalista para substituir Ian Gillan, quando pronta se tornou uma pérola, iniciando com o magistral riff de Blackmore acompanhado pelo bumbo de Paice. Hughes e Lord precisam de apenas duas notas para desconstruir a música, e assim, Coverdale rasgar a garganta com o "I've been mistreated ...", acompanhado pelo blues arrastado e sôfrego que deixou muito cabeludo chorando pelos cantos.

Coverdale esbanja "baby, baby" e "oh, woman" para tudo que é lado, mas de forma totalmente emocionante, principalmente pelo arranjo feito por Blackmore. Esta é a única canção do disco que é cantada somente por Coverdale, e tem em seu encerramento o momento derradeiro, com Hughes e Coverdale dividindo as vocalizações no crescendo final, enquanto Blackmore sola como se fosse o último momento de sua vida. Coverdale encerra a canção sozinho e dizendo apenas que "I've been losing my mind". Divino!!

Jon Lord viajando nos teclados

O álbum encerra com a instrumental "A-200", onde Lord brinca no sintetizador acompanhado pela marcha de Paice e Hughes. Blackmore mostra suas armas sobre o mesmo acompanhamento, mas o destaque maior vai realmente para Lord, que parece um garoto executando o tema principal e viajando em longas notas no Moog e no sintetizador. Detalhe importante: o nome da faixa se deu em homenagem a uma pomada americana usada para matar chatos (aquele piolho que gruda na virilha).

Com o lançamento de Burn nos EUA, ocorre também o retorno da banda à terra do Tio Sam, tocando em Detroit no dia 03 de março. Por lá, o álbum alcançou a nona posição, ficando em décimo primeiro no Japão, sétimo na Austrália, Canadá e Holanda, quinto na Finlândia, quatro na França e primeiro na Alemanha, Áustria e Noruega. No Reino Unido o álbum foi bem-recebido, chegando na terceira posição, ficando atrás apenas de The Singles 1969 - 1973 (Carpenters) e Old New Borrowed and Blue (Slade).

Deep Purple ao vivo em 1974

Em 06 de abril ocorre um dos fatos mais marcantes de toda a carreira do Purple. Assim como o incidente no hotel de Montreux que gerou "Smoke on the Water", a participação no California Jam é lembrada por muitos como o último grande momento de Blackmore à frente do grupo, e que continuaremos a história na semana que vem.

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