sábado, 7 de fevereiro de 2009

Som Nosso de Cada Dia



À procura da essência. Esse era o lema de um dos grandes diamantes do rock nacional, a banda Som Nosso de Cada Dia, que estará fazendo muita gente chorar em poucos dias no festival Psicodália.Pouco se conhece sobre a real história do grupo, já que sua carreira ficou resumida em apenas dois discos e muita saudade. O surgimento de um embrião do Som Nosso começou a vir ao mundo no início da década de 70. No final da década de 60, chegava à cidade de São Paulo um jovem chamado Pedro Baldanza, o qual contava em sua mala com um baixo Fender Jazz, comprado graças a venda de um outro baixo Giannini semi-acústico, engraxe de sapato, máquina de escrever e a coleção completa de gibis do Cavaleiro Negro.

Com o baixo e vontade nas mãos, Pedro adotou o nome de Pedrão e montou a banda Enigma, que por incrível que pareça foi a pedra fundamental para o surgimento de outro grande nome do rock nacional, os Novos Baianos. O Enigma no início era formado pelo trio Pedrão (baixo e vocais), Jean (guitarras) e Odair (bateria). A banda passou a frequentar diversos bares e cidades do interior paulista, até que em um determinado dia, na cidade de Ubatuba, conheceram três desconhecidos cantores: Paulinho (Boca de Cantor), João Gilberto, Moraes Moreira e Baby Consuelo. Os três passaram a integrar o Enigma. Durante um festival, conheceram o grupo Minus, de onde surgiu o talentoso guitarrista Pepeu Gomes. Com o protótipo dos Novos Baianos praticamente pronto, lançaram o compacto duplo "Psiu", "29 Beijos", "Globo da Morte" e "Mini Planeta Íris", o qual é cobiçadíssimo por qualquer colecionador que se preze.
A banda assumui o nome de Novos Baianos, seguiu carreira no Rio de Janeiro e tornou-se famosa no Brasil inteiro, graças a obras divinas como "Acabou Chorare" (1972) e "Novos Baianos F.C." (1973) . Porém, somente Baby, Paulinho, Pepeu e Moraes foram para o Rio. Jean e Odair largaram fora quando a doidera começou a aparecer ainda em São Paulo, e Pedrão, com diversos problemas familiares, acabou decidindo por ficar na terra da garoa mesmo, morando com a sua mãe. Mas a senhora acabou conseguindo uma grana considerável pela indenização da morte do pai de Pedrão, pegou mala e cuia e viajou para o Rio Grande do Sul, deixando Pedrão morando sozinho na casa de parentes em São Paulo, afundado em dívidas e sabendo que tinha perdido uma grande chance de se tornar famoso ao lado dos Novos Baianos.
Graças ao amigo Edson Ribeiro, conhece o artista plástico Agamenon e também o cantor Walter Franco, e a partir de então uma carreira musical passa a ser construída. A partir de Agamenon, Pedrão conhece o guitarrista Benvindo, que estava montando a banda Perfume Azul do Sol, onde Pedrão rapidinho virou o baixista. Quem tiver a oportunidade de conhecer o único álbum da banda, "Nascimento" (1974), corra atrás e descubra de onde surgiu a inspiração e a levada de muita banda brazuca.


Mal das pernas, Pedrão resolve ir para o exterior ver se consegue construir sua carreira por lá. Antes disso, era necessário grana, e assim, participou de um sarau organizao por Marcus Pereira, que viraria dono da gravadora de sambas Discos Marcus Pereira. Com a grana do sarau, Pedrão encaminha seus documentos para sair do Brasil, mas, antes, um convite inusitado surgiu através da esposa de um amigo, a qual apresenta para ele o multi-instrumentista Manito, o qual era ídolo de Pedrão e estava procurando integrantes para montar uma banda após sua saída dos Incríveis.


Na verdade a idéia de Manito era montar uma banda para tocar em bailes, e para tal projeto já havia conseguido o baterista Pedrinho Batera. Quando Pedrão chegou, trazendo consigo um violão e nada mais, começou a ser formado o embrião do Bloco Cabala, o qual era o nome do projeto de Manito. Pedrão mostrou algumas de suas idéias para Manito e Pedrinho e, em poucos dias, o projeto Cabala caía por terra, dando origem ao Som Nosso de Cada Dia (SNCD). Isso ocorreu no ano de 1971.


Após esses primeiros encontros, Manito teve uma breve passagem pelos Mutantes, o que atrasou o trabalho do SNCD. O problema principal era a falta de equipamento da banda, que se limitava apenas a aparelhagem de Manito, uma bateria, um violão e o baixo de Pedrão. Porém, graças à participação em festivais, a banda finalmente conseguiu dar o primeiro passo pra sair do anonimato, através do produtor Peninha, que lhes deu uma aparelhagem de primeira e conseguiu um contrato com a gravadora Continental.

Com dinheiro, aparelhos e muita criatividade, o grupo entra nos estúdios para gravar seu primeiro álbum, o fabuloso "Snegs". Porém, o disco ficou engavetado por quase um ano, mas mesmo assim o Som Nosso seguiu seus caminhos.



Em abril de 1974 acontece uma das primeiras apresentações de rock internacional no Brasil, no caso Alice Cooper, e, para banda de abertura, o Som Nosso foi selecionado entre inúmeras outras. Vale a pena ser dito aqui, para quem conhece a história, de que o papo dos Mutantes exigirem uma quantia imensa de dinheiro, entre outras coisas, é tudo lenda. O Som Nosso foi escolhido pura e simplesmente pelo seu talento musical.

A banda então abriu os shows de Titia Alice, tocando para mais de 100 mil pessoas em duas noites na cidade de São Paulo. No Rio, o grupo tocou no Maracanãzinho lotado, levando a platéia a gritar o nome da banda durante o show de Tia Alice. Com o sucesso do SNCD Brasil afora, finalmente é desengavetado o primeiro LP do conjunto.





Regravado em apenas dois dias, ou seja, praticamente ao vivo, "Snegs" contou com poucos overdubs, como violões, solos de Manito tocando violino e sax e mais os vocais da banda, que contavam ainda com a esposa de Pedrão, Marcinha. Infelizmente, a qualidade registrada no vinil não é das mais fiéis em relação ao som que a banda fazia, mas mesmo assim, uma jóia chegava às lojas brasileiras, levando o Som Nosso ao status de supergrupo.

O disco já abre mostrando toda a sonoridade que o SNCD conseguiu em seus dois anos de ensaios e shows. "Sinal de Paranóia" traz uma levada forte de Pedrinho Batera, com aquele som tradicional das baterias brasileiras dos anos 70. Manito vai introduzindo seus teclados aos poucos, enquanto Pedrão marca o ritmo em seu baixo. Então a belíssima letra, composta por Capitão Fuguete, começa a ser entoada por Pedrão, até alcançar o seu refrão. Após o refrão, uma viagem bem no estilo ELP surge, com Manito mostrando toda sua evolução com a saída dos Incríveis, inclusive fazendo um solo de violino que lembra muito o King Crimson na fase "Lark's Tongues in Aspic" (1973). A música termina com o refrão sendo cantado novamente e uma pequena sessão instrumental. Uma bela canção que mostra como o Som Nosso estava disposto a sacudir a cabeça de muita gente por aí. 


"Bicho do Mato" é a faixa seguinte. Essa já uma faixa mais rock'n'roll, com uma levada bem blues, diferente de "Sinal de Paranóia", mas que tem o seu valor, principalmente pela bela sessão instrumental que encerra a música, onde Manito está muito bem nos teclados. A faixa "O Som Nosso de Cada Dia" faz lembrar "Tarkus" (disco lançado pelo ELP em 1971), com seu início levado na marcação do violão de Pedrão e da bateria de Pedrinho, e na tecladeira comendo solta. Pedrão canta a letra na forma que o deixou marcado como um os grandes cantores dos anos 70, enquanto a cadência de Pedrinho passa a segurança para Manito viajar em seus teclados. É impressionante como Manito havia evoluído instrumentalmente, tanto nos teclados, violinos quanto executando um belo solo de saxofone no fim da canção, e como o trio havia se encaixado com precisão em tão pouco tempo. 


A belíssima "Snegs de Biufrais" encerra o lado A de forma suave e lenta. Para quem não sabe, "Snegs de Biufrais" significa algo como estar muito a vontade, doidão, aberto para coisas novas, que é realmente o que a letra da canção diz.

O lado B abre com a tecladeira de "Massavilha". O moog de Manito novamente se faz presente em um belo solo, acompanhado pela precisão de Pedrão e Pedrinho. Manito alterna o uso de seus teclados como um Rick Wakeman, assim como a música vai alternando diversas variações durante quase três minutos, até mudar para uma sessão mais dançante, que viria a ficar mais presente no segundo álbum da banda, quando Pedrão passa a entoar a letra da canção. Manito dá mais um show nos teclados, totalmente inspirado nos maiores tecladistas da época (seria Manito um deles também? Acho que sim!). 



"Direccion de Aquarius", com o violão de 12 cordas de Pedrão imitando uma cítara, é talvez a mais viajante do álbum. Com letra cantada em espanhol, a canção está apoiada basicamente no violão e nos vocais, no melhor estilo "acenda um incenso e viaje". Essa é uma das canções onde os backing vocais de Marcinha se fazem mais presentes. Uma parte da letra é retomada em inglês, mostrando que o SNCD pretendia fazer vôos mais altos. O álbum encerra com "A Outra Face", cuja introdução lembra bastante a fase dos Mutantes pós-Rita Lee. Porém, a música vira um delírio sonoro, com muitos improvisos, alternando entre momentos mais cadenciados e mais viajantes, até termos a letra da canção de forma que somente o Som Nosso podia fazer, terminando com uma longa sessão instrumental, onde mais uma vez Manito executa um furioso solo de sax.


Outro detalhe importante é sobre a maravilhosa capa do álbum. Elaborada por Agamenon, a capa é uma arte inacabada do mesmo, já que, segundo o próprio Pedrão, Agamanon ficou viajando dias e dias pintando a arte, até que a gravadora exigiu uma capa e teve que ser levado o que já havia sido pintado. A versão original do vinil ainda trazia um belo encarte com uma borboleta que possuía um fotolito por cima, dando um belo efeito (maravilhas brasilis).

A banda passou a ser mais cultuada do que já era, tornando-se atração principal, ao lado dos Mutantes de Serginho, em festivais como o de Águas Claras, onde fizeram uma apresentação fenomenal em meio a uma pane elétrica e iluminados por um belo nascer do sol; Rock da Garoa (festival que contava somente com bandas paulistas) e O Maior Show de Todos os Tempos, o qual marcou o encontro histórico das bandas Som Nosso de Cada Dia, O Terço, Mutantes, Joelho de Porco, Sindicato e Humauaca.


Antes disso, algumas mudanças ocorreram. A principal delas, e que nunca teve uma explicação muito saudável, foi a saída de Manito, levando a alterações até mesmo na composição do grupo, que virou um quinteto. O SNCD mudou de nome, e passou a se chamar apenas Som Nosso. 


Em 1975 uma imensa viagem foi concebida. A banda realizou (e gravou) a ópera chamada "Amazônia", com a intenção de lançar um LP com a mesma ocupando totalmente um dos lados da bolacha. Porém, a gravadora Continental decidiu não lançar essa jóia por ser "anti-comercial" (êta povinho sem cultura!) e o álbum ficou a ver navios. Mesmo assim a banda conseguiu o apoio de amigos e entrou estúdios para gravar o projeto, porém, sem grana, ficaram rendidos nas mãos de quem tinha dinheiro, no caso um amigo mais próximo chamado Toni Bizarro. Na época, Pedrão e Pedrinho já estavam desenvolvendo outros estilos musicais, não ficando somente nas viagens progressivas, mas se adaptando a onda disco music e soul que aparecia por aqui. Em um dos ensaios da banda, Bizarro delirou com o ritmo suingado da banda e decidiu emprestar a grana pros garotos desde que eles gravassem um LP com aqueles sons bem no estilo funk de James Brown (por favor, não confudir com essa m ... que chamam de funk que e desce o morro no Rio).



Com a formação do Som Nosso contando com Pedrão, Pedrinho, Dino Vicente (teclados), Paulinho (teclados) e Rangel (percussão), o resultado foi o álbum Som Nosso, lançado em 1977, e que trazia também a participação de Egídio Conde (guitarra), Tuca Camargo (teclados), Marcinha, Armando e Tony Osanah (vocais). Totalmente diferente de "Snegs", "Som Nosso" já mostra suas diferenças direto na capa, apenas com as letras "Som Nosso" escritas em branco sobre um fundo preto. 


O disco traz onze faixas (quatro a mais que "Snegs") que, sem os teclados de Manito, perderam o brilho e a veia progressiva, mas ganharam, e muito, no swing e no embalo. Divido em dois lados, o Sábado, com sons perfeitos para uma balada de sábado, e o Domingo, com sons mais relaxantes pra curar a ressaca, o álbum se caracteriza por mesclar músicas bem funkeadas com as composições que fariam parte do outro lado do álbum "Amazônia". O resultado foi decepcionante para os fãs de "Snegs", mas, para aquele com a mente mais aberta, agradou, e muito (principalmente pela época em que foi lançado). 


O lado A abre com "Pra Swingar", cheia de metais e super dançante, com Pedrão cantando igual aos velhos tempos. Para aquele que conhecia a banda, foi realmente um choque, mas os embalos da canção fizeram surgir novos fãs. "Levante a Cabeça" parece saída da trilha sonora de "Os Embalos de Sábado à Noite", principalmente pela levada da guitarra e os solos de trompete. "François" é outra com um embalo super swingado. Para aqueles que curtem esse tipo de som, talvez essa seja a faixa que mais agrade em todo o álbum. "Pra Segurar" é um pouco mais rock, mas mesmo assim os metais são presença garantida na canção. "Estação da Luz" retomar os embalos swingados das três primeiras faixas, contando com a bela letra de Tony Osanah. "Vida de Artista" encerra o lado A, destruindo as pernas dos dançarinos de plantão em pouco mais de quinze minutos.


O lado B já mostra como a banda havia trabalhado, e bem, as músicas do álbum "Amazônia". "Bem no Fim" traz os teclados de volta, bem como a batida forte de Pedrinho e o baixão de Pedrão. Mesmo assim, a canção tem uma certa semelhança com o lado A, servindo bem como faixa de transição. "Montanhas" já é bem mais progressiva. O a guitarra e os teclados do início entram em uma sensação bem agressiva da bateria, com um belo duelo de teclados e a marcação precisa de Pedrão. A música muda sua cadência, abrindo espaço para os vocais de Pedrão, como nos velhos tempos. Essa é disparada a mais "Snegs" do álbum. 


"Neblina" começa com uma introdução bem suave da guitarra. Sobre uma camada de teclados, Pedrão canta agonizantemente, de forma única, levando a canção para uma bela sessão instrumental, lenta, improvisional e literalmente chapante. "Água Limpa" também retoma os tempos de "Snegs", com Pedrinho e sua batida forte e uma bela letra de Paulinho Foguete. A música possui uma bela sessão instrumental com improvisos e harmonias de primeira. Por fim,  "Rara Confluência" encerra com muito moog e muita guitarra, misturando tanto o swing do lado Sábado quanto o progressivo do lado Domingo, esse álbum que tocou em muito nas rádios brazucas, principalmente pelas faixas do lado Sábado, mas que sepultou a carreira da banda.

Os anos se passaram, até que em 1993 uma reunião do trio original aconteceu para a gravação da faixa "O Guarani", que entrou como bônus na versão em CD de "Snegs". Mesmo ficando anos sem tocar juntos, Manito, Pedrão e Pedrinho mostraram talento em uma belíssima composição, a qual começa com sons de floresta, flautas, pássaros, e entra em um regime de viagem incomensurável. A banda então começa a entoar os famosos acordes da ópera "O Guarani" de Carlos Gomes, viajando em cima das estrofes da canção.



Em 1994, o grupo se reuniu para dois shows que resultaram no CD "Live 94", mas que infelizmente não tem o mesmo brilho dos álbuns anteriores, mesmo contando com músicas inéditas, como "Tinta Preta Fosca" e "O Amor". Para alguns, a banda parecia um Roupa Nova reformuldo. Nesse álbum participam Pedrão (baixo e voz), Pedrinho (bateria), Manito (flauta e sax), Jean Trad (guitarra) e Homero Lotito (teclados). Pouco tempo depois desses shows, Pedrinho faleceu, deixando órfãos milhares de bateristas no Brasil e no mundo.




Uma onda revival ocorre no início do século atual, culminando no lançamento do maravilhoso álbum À Procura da Essência no ano de 2004. Gravado ao vivo nos anos de 1975-1976, o disco traz versões estendidas e viajantes para diversos sons do álbum "Snegs", bem como partes da ópera "Amazônia", mostrando toda a força da nova formação do SNCD, com o quinteto Pedrão, Pedrinho, Dino, Tuca e Rangel.

Ano passado, Manito voltou a participar de um show com o Som Nosso, agora na Virada Cultural de São Paulo. Tocando ao lado dos Mutantes (e no mesmo horário que eles), O SNCD lotou o Teatro Municipal de São Paulo, emocionando à todos com a interpretação na íntegra do álbum "Snegs".

E, como dito no início da matéria, nesse dia 22 de fevereiro de 2009, em pleno carnaval, a banda será a atração principal do festival Psicodália, em São Martinho (SC), contando com Manito (teclados, sax, flauta), Pedrão (baixo e vocais), Marcelo Schevano (guitarra e flauta), Edson Guilardi (bateria), Fernando Cardoso (teclados) e Thiago Furlan e Jorge Canti (vocais).





Quem puder, vá, pois com certeza, estará vendo e ouvindo uma das mais preciosas jóias do rock nacional.

A tortura e a procura da essência, essa obsessão de chegar!!!

2 comentários:

  1. Conheci o Som Nosso através da Simara, que era uma espécie de estilista da Banda. Já conhecia o Manito da época dos Incríveis mas nunca tinha trocado ideia com ele e nem com os outros membros da Banda. Eu não era muito ligado em Rock nacional, com exceção de Os Mutantes, mas quando ouvi o 'Snegs' pela primeira vez foi um choque! Nunca pensei que uma banda nacional conseguisse uma sonoridade como a do Som Nosso. Pra mim este album é o melhor que eles produziram. Tenho até hoje o vinil que descolei em 1974. Mesmo os caras tendo acabado eu considero eles junto com a formação dos Mutantes com o Arnaldo Baptista as melhores bandas de rock brasileiro.

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  2. Obrigado pelo comentário Howlin Jay. Abraços

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