Na década de 70, a Música Popular Brasileira tinha como principal fonte de pensadores não o Rio de Janeiro, e tão pouco a pauliceia desvarada, mas sim, o jeitinho manso, comendo pelas beiradas, dos músicos mineiros. O Clube da Esquina de Milton Nascimento, Lô Borges, Beto Guedes e Toninho Horta fez a segunda revolução da música nacional (a primeira realizada em 1967-68 com a união dos baianos Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa com os paulistas Rita Lee, Sergio Dias e Arnaldo Baptista), transformando o rock lisérgico da Tropicália em um som mais profundo, ampliando os horizontes da Música Popular Brasileira principalmente ao usar de instrumentos acústicos para fazer rock.
O álbum Clube da Esquina (1972) é talvez o maior representante dessa geração, que durante boa parte dos anos 70 foi sinônimo de sucesso em nosso país. Aquele álbum gerou inúmeras consequências e filhos, dentre eles Marco Antônio Araujo.
Marco Antônio começou a desenvolver seus estudos musicais na década de 60, chegando a fazer parte do grupo Vox Populi (que depois transformou-se no Som Imaginário), e durante o início dos anos 70, viveu na Inglaterra, voltando para o Brasil onde aperfeiçoou sua técnica musical, principalmente no violão clássico e no violoncelo. O início de sua carreira como músico foi criando trilhas sonoras para filmes, teatro e balé - no balé ele conheceu sua esposa, Déa Marcia de Souza - e fez parte da Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, tocando violoncelo, e onde conseguiu angariar fundos para a realização de seu sonho: a construção de um estúdio próprio de gravação.
O Strawberry Fields Forever foi fundado em 1979, mesmo ano que Marco Antônio passou a ser acompanhado pelo grupo Mantra, formado por Eduardo Delgado (flauta, percussão), Ivan Correa (baixo, futuro Sagrado Coração da Terra), Antonio Viola (violoncelo), Mario Castelo (bateria), Philip Doyle (flugelhorn), e o irmão Alexandre Araújo (guitarras).
Marco Antônio revelou-se ao mundo através de quatro álbuns essenciais para aprendermos sobre a rock progressivo nacional, deste que foi um dos maiores músicos/compositores que nosso país já viu e ouviu. Como forma de homenagear seus 65 anos, segue uma breve análise sobre sua discografia.
A estreia com o audacioso Influências |
A estreia para o Brasil foi batizada Influências, um disco bastante audacioso, a começar pela ótima levada da faixa-título, com seu tema central feito pelo violão elétrico acompanhado por um um naipe de metais formado por Edmundo Maciel e Edson Maciel (trombone) e Amilton Pereira e Mauricio Silva (trompete), e ainda a essencial participação de Eduardo e Alexandre, os principais músicos por detrás das peças criadas por Marco Antônio.
O talento e genialidade como compositor ficam para as duas suítes do lado B: "Panorâmica", com sua introdução misturando flauta, harmônicos e uma maluca escala de baixo, remetem-nos aos viajantes tempos de Lark's Tongues in Aspic (King Crimson), e transformando-se em uma linda peça com solos alternados de guitarra e flauta, alternando entre momentos pesadíssimos e outros essencialmente leves; "Folk Song", uma suíte dividida em duas partes distintas, a primeira com sons de pássaros, vocalizações e a steel guitar de Alexandre fazendo suas intervenções sobre o dedilhado hipnótico do violão, e a segunda mais popular, alegre e com guitarra, violão, flauta, baixo e bateria trabalhando como se fossem um único instrumento.
"Cantares" é a canção que considero ideal para ser apresentado ao mineiro, com um incrível arranjo musical para violão, flauta, guitarra e violoncelo. Marco Antônio ainda dá um espetáculo a parte dedilhando seu violão em "Bailado" e "Abertura n° 2", que lembram bastante o Recordando o Vale das Maçãs em sua segunda geração, nos anos 90, sendo que na última, o solo de Eduardo - acompanhado apenas por barulhos percussivos e o dedilhado do violão - é para encharcar os lenços com lágrimas.
A versão em CD trouxe dois bônus: "Entr'Act I & II", uma tensa peça levada apenas pelo complicado dedilhado de violão clássico e uma insana flauta, e "Floydiana II", destacando Max Magalhães na introdução, feita com o piano, dessa faixa que é a sequência de um dos grandes sucessos do músico, registrado em seu segundo LP. A ordem das canções também foi alterada em relação a um dos grandes álbuns de estreia do rock progressivo nacional.
O maduro Quando a Sorte Te Solta Um Cisne Na Noite |
Entre 04 e 10 de outubro de 1982, Marco Antonio (agora sem o acento, por motivo que desconheço) e o grupo Mantra entraram nos estúdios para a gravação do segundo álbum, Quando a Sorte Te Solta Um Cisne Na Noite, lançado ainda em 1982, o qual é bem mais maduro e belo do que seu antecessor.
Nele, está contido o maior sucesso da carreira do mineiro, "Floydiana", com a participação de Max Magalhães ao piano e também Sérgio Gomes nas trompas, sendo a versão aqui registrada praticamente idêntica a "Floydiana 2", que entrou no CD de Influências, com sua levada mezzo caipira, mezzo clássica, destacando a imponente sessão com os metais e o lindo solo de flauta feito por Eduardo.
Marco Antonio cresce como compositor, e pelo menos três faixas são representativas desse salto musical, sendo uma delas "Adagio", uma arrepiante canção com a flauta sendo o principal instrumento, acompanhado sublimemente por piano, violão e violoncelo, este tocado por Antonio Maria Viola. Viola também é responsável pelos preciosos solos da faixa-título, a qual é dedica para ele, e que é uma balada excepcional somente com o violão de Marco Antonio e o piano de Max Magalhães acompanhando os lindos improvisos do violoncelo.
Grupo Mantra |
É nesse álbum que está aquela que considero a melhor canção de Marco Antonio junto do Mantra, a épica "Pop Music", pérola na qual Marco Antônio apresenta-se não somente com o violão Ovation, mas também tocando percussão e um raro instrumento fabricado exclusivamente para ele, a Viola Grávida. Ouvir os dez minutos dessa sonzeira é simplesmente penetrar no paraíso, com todas suas intrincadas variações, os duelos insanos de flauta e guitarra, a inqualificável performance de Marco ao violão, e a pegada forte de Ivan e Castelo tornam esta um dos pilares da música progressiva brasileira, e de dificílima reprodução, mostrando toda a capacidade de Marco Antonio como compositor.
Uma pena que poucas pessoas deram valor a essa preciosidade nos anos 80. Ainda temos "Alegria", canção que nos remete aos sons nordestinos, levada pelo agitado violão de Marco Antonio e recheado de duelos de flauta e guitarra.
A versão em CD trouxe três bônus: "Ilustrações", triste e bela peça clássica com o flugelhorn solando sobre o acompanhamento de um quarteto de cordas, "Cavaleiro – trilha Balé Cantares", maluca peça composta na década de 70 para uma apresentação do grupo Corpo, de Belo Horizonte, tendo Marco Antonio dando um show à parte no violão clássico, além de encarnar Jimmy Page ao tocar violão com o arco de violino, e "Sonata para cello e violão", peça clássica que deveria ser apresentada pelos professores de música aos seus alunos, tamanha complexidade da mesma, e um bom exemplo do talento de Marco Antônio não só como compositor, mas como violonista.
Apesar de bem recebido pela crítica, Marco Antonio sabia que podia fazer mais, e assim, largou Minas Gerais rumo ao Rio de Janeiro, onde registrou seu mais audacioso álbum.
O trabalho mais inspirado da carreira de Marco Antonio Araujo |
Gravado em janeiro de 1983 nos estúdios Link Comunicações, na cidade maravilhosa, Entre um silêncio e Outro conta com direção musical de Jaques Morelenbaum, responsável pelo violoncelo nas duas suítes que ocupam o LP que é dedicado à professora de Marco Antonio, Esther Scliar, sendo um disco inesquecível e bastante diferente dos seus antecessores. Não há participação do grupo Mantra, apenas uma quarteto de câmara formada por violão, violoncelo (Morelenbaum e Márcio Mallard) e flauta (Paulo Guimarães).
São apenas duas longas suítes, uma mais encantadora que a outra. "Fantasia n° 2 - Romance", suíte dividida em seis partes - "Prelúdio", "Scherzo", "Interlúdio", "Ária", "Divertimento" e "Coda" - que ocupa o Lado A do vinil, é uma incrível peça musical, emocionalmente forte, com o dolorido violoncelo de Márcio sendo o principal instrumento em solos comoventes, seja sozinho ou acompanhado pelo fantástico arranjo do violão clássico de Marco Antonio, que aqui disputa sua carreira com monstros do violão brasileiro como Turíbio Santos, Elomar e Daniel Wolff de igual para igual não somente na arte de tocar violão, mas também de compor peças clássicas.
Capa interna de Entre Um Silêncio e Outro |
Já "Fantasia n° 3 - Folhas Mortas" conta apenas com o trio Paulo, Jaques e Marco Antonio. Nesta, Marco Antonio é sem dúvidas o grande destaque, com uma performance soberba durante as quatro partes da canção, dividas em "Prelúdio" (somente com violão clássico), "Brincadeira" (solo de flauta), "Só" (solo de violoncelo) e "Trio" (unindo os três instrumentos). A formação clássica abrilhanta-se como uma lua cheia, encantando os ouvidos que ficam extasiados com a audição de um disco perfeito, que talvez seja o que melhor mostra as qualidades de Marco Antônio também como músico. Os que não são acostumados com a música de câmara irão detestar, mas os apreciadores dessa arte irão deliciar-se com talvez o melhor disco do estilo lançado em nosso país, e fácil (para mim) o melhor do mineiro.
A versão em CD veio com os bônus "Abertura I", peça clássica que lembra composições medievais, tendo como adendo uma virtuosística sessão feita pelo violão, e as versões acústicas para "Abertura II" e "Cantares", ambas originalmente gravadas em Influências, e que casou muito bem na ideia do álbum, com o violoncelo fazendo as linhas da guitarra, e contando ainda com a participação de um pequeno naipe de metais, durante a primeira, e a flauta brilhando ainda mais, fazendo os solos de guitarra da versão original, enquanto o violoncelo emula o solo de baixo, fora que Marco Antônio parece ter evoluído centenas de anos no violão.
Em 1984, é lançada a excelente coletânea Animal Racional, trazendo canções dos dois primeiros álbuns de Marco Antonio, e que vendeu relativamente bem no país, elevando o nome do mineiro entre os apreciadores de música, e angariando cada vez mais elogios de uma mídia que ainda fechava seus ouvidos para o talento do músico e compositor.
O último álbum de Marco Antonio Araujo |
Para Lucas, lançado em 1984, o grupo Mantra retorna, adicionando os sintetizadores de José Marcos Teixeira e com um novo baterista, Lincoln Cheib (futuro Sagrado Coração da Terra), além dos já conhecidos Alexandre Araújo (guitarras), Eduardo Delgado (flauta), Ivan Correa (baixo), Max Magaçhães (piano) e Jaques Morelenbaum (violoncelo), e com esse time nasce o álbum clássico de Marco Antonio, que virou referência para uma geração de músicos brasileiros na década de 80, e ainda influencia muitos nomes nos dias de hoje.
Dedicado ao filho recém-nascido, Lucas divide-se em uma suíte fantástica e três pequenas obras-primas. A suíte é "Lembranças", que ocupa todo o lado A (algo raro para o rock nacional na década de 80) recheada de solos de flauta e guitarra, e uma pegada hardiana que dificilmente encontraremos em outra canção da carreira de Marco Antonio, entrando para a lista de Maravilhas Prog compostas pelo mineiro, e abrindo alguns minutos para ele nos impressionar com um arrepiante tremolo.
No lado B, estão "Para Jimmy Page", intrincada homenagem ao guitarrista do Led Zeppelin, com Marco Antonio abusando das escalas e afinações diferentes que Page adorava criar, "Caipira", que apesar do nome, em nada tem do esperado "caipirismo" mineiro, mas sim uma composição na mesma linha dos dois primeiros álbuns, e a faixa título, apenas com Marco Antonio dedilhando seu violão acompanhando o solo de sintetizador.
O CD de Lucas contém como bônus "Brincadeira", uma bonita peça feita apenas com violão clássico e flauta, mais uma vez exaltando todas as qualidades como músico e compositor de Marco Antônio, "Cavaleiro", uma canção mais intimista, feita para flauta, violão e violoncelo e sem elementos de música clássica, destacando as vocalizações acompanhando o violoncelo na segunda parte da canção, e "3rd Gymnopédie", uma dolorida e emocionante apresentação do violoncelo e da flauta acompanhados por sutis acordes de violão, infelizmente os últimos registrados pelas mãos do músico mineiro.
Marco Antonio partiu para sua primeira grande turnê brasileira, acompanhado do grupo Mantra, turnê que ocupou boa parte do ano de 1985.
No dia 07 de janeiro de 1986, Marco Antonio iria receber o prêmio de melhor instrumentista do Brasil, concedido pela revista Veja, mas repentinamente, dias antes ele sofreu uma hemorragia cerebral, que o levou a um coma profundo e infelizmente, a sua morte, com apenas 36 anos, deixando um legado jamais esquecido por seus fãs, e que trouxe aqui para ser (re)descoberto aos que nunca souberam que o Brasil teve um guitarrista capaz de fazer frente com gigantes do rock progressivo mundial.
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