Seguindo
nosso percurso pelas Maravilhas Prog criadas pelo trio britânico
Emerson, Lake & Palmer, continuamos no ano de 1971. Após o
lançamento de Tarkus, o grupo partiu para uma bem-sucedida turnê, vendo
seu segundo álbum figurar entre os dez mais das paradas britânicas por
mais de quatro meses.
A turnê era baseada basicamente nas suítes de Emerson, Lake & Palmer e Tarkus,
mas também apresentava aquela que foi a primeira canção "composta" pelo
grupo, e que na verdade, era uma adaptação para uma obra clássica
seminal do russo Modest Mussorgsky: a incrível Pictures at an
Exhibition.
Lembro
que da primeira vez que ouvi falar de Keith Emerson (teclados, piano,
sintetizador, moog, harpsichord), Greg Lake (baixo, guitarras, violão,
voz) e Carl Palmer (bateria, percussão), a manchete do jornal Zero Hora
de julhode 1992 dizia: Três que valem por uma Orquestra.
Naquela
época, eu já gostava de rock progressivo, e também possuía simpatia
pela música clássica, mas ficava imaginando como seria três músicos que
fizessem toda a orquestração de uma canção. Imaginações infantis me
levavam a pensar em homens com quatro, cinco braços, gastando todas as
suas energias e mostrando todas as suas qualidades para tocar diversos
instrumentos ao mesmo tempo. Porém, apesar das imaginações serem
absurdas na realidade, o que esse trio fazia no palco era equivalente
aos meus sonhos visionários e imaginativos, e constatei isso pouco tempo
depois, quando ouvi a suíte "Pictures at an Exhibition", peça exclusiva
que ocupa os dois lados do LP homônimo, de 1971.
Viktor Hartmann, o homenageado na versão original da Maravilha Prog dessa semana |
A
versão do trio é uma adaptação fantástica (superada apenas, na minha
modesta opinião, pela adaptação para um (!) violão feita pelo violonista
japonês Kazuhito Yamashta em 1980, que você pode conferir aqui e aqui, em um show do japonês no Canadá, em 1984, e que foi esplendidamente interpretada pelo violonista ucraniano Marko Topchii)
para a suíte original de dez movimentos, criada para o piano por Modest
Mussorgsky no ano de 1874. Na suíte original, o pianista que se atreva a
tocá-la coloca a prova todo o seu virtuosismo, e claro, fazendo as
honras da casa de forma perfeita, arranca os glóbulos de quem o assiste,
pois realmente, a peça é muito complicada.
A história da canção é uma homenagem de Mussorgsky para o arquiteto russo Viktor Hartmann. Ambos conheceram-se em 1870, e criaram uma amizade muito forte, que serviu como um elo para unir forças dentro da arte russa, promovendo os talentos daquele país para o resto do mundo. Porém, em 1873, Hartmann faleceu repentinamente, aos 39 anos, vítima de um aneurisma. Sua morte chocou toda a comunidade artística russa, principalmente Mussorgsky, que ficou inconsolável com a perda do amigo.
A história da canção é uma homenagem de Mussorgsky para o arquiteto russo Viktor Hartmann. Ambos conheceram-se em 1870, e criaram uma amizade muito forte, que serviu como um elo para unir forças dentro da arte russa, promovendo os talentos daquele país para o resto do mundo. Porém, em 1873, Hartmann faleceu repentinamente, aos 39 anos, vítima de um aneurisma. Sua morte chocou toda a comunidade artística russa, principalmente Mussorgsky, que ficou inconsolável com a perda do amigo.
Como
forma de prestar um último adeus para Viktor, o jornalista Vladimir
Stasov resolveu fazer uma exposição com algumas das principais obras do
artista. Assim, arrecadou mais de 400 peças criadas por Viktor, algumas
doadas por Mussorgsky, que prontamente foi assistir a exposição
realizada no Academy of Fine Arts de Saint Petersburg.
Modest Mussorgsky |
O compositor russo criou um passeio imaginário pela exposição, circulando por algumas das principais obras de seu amigo. Inspirado pelas cores e tonalidades dos quadros da exposição, o passeio desenvolve-se através de caminhos ("Promenades") que levam de um quadro a outro, e para cada quadro, criou figuras sonoras que interpretam através de notas e acordes, as sensações e percepções quando o visitante coloca-se diante de cada quadro. Uma bela viagem, que por que não, é um dos embriões do que depois tornou-se o rock progressivo.
Pois
foi uma banda de rock progressivo que fez de "Pictures at an
Exhibition" seu carro-chefe para mostrar-se ao mundo. O ELP passou
vários dias ensaiando e arranjando os movimentos originais,
readaptando-os para uma sonoridade mais próxima ao do início dos anos
70, permitindo-se inclusive adicionar uma letra para a história. O
projeto de interpretar "Pictures at an Exhibition" era um longo sonho de
Emerson. Desde os tempos de The Nice, o tecladista enamorava por fazer
uma apresentação solo ao piano com essa suíte. Porém, aproveitando-se da
genialidade e da versatilidade de Lake e Palmer, foi nesse ponto que
conseguiu construir uma versão sua, recheada com moogs, sintetizadores,
órgão hammond entre outros apetrechos, e que entrou para a história do
rock mundial.
Foi
exatamente no segundo show do grupo que "Pictures at an Exhibition" foi
apresentada pela primeira vez, o qual aconteceu durante o Isle of Wight
Festival, em 1970. Apesar de ser uma versão enxuta, com apenas seis
movimentos, foi um aperitivo e tanto (e também um grande holofote) para
surpreender o mundo. Energética e muito virtuosa, "Pictures at an
Exhibition" ocupou boa parte do show de pouco mais de uma hora
apresentado pelo grupo, com Emerson e Palmer fazendo estripulias mil, e
com o trio dando-se ao luxo de utilizar canhões para finalizar a suíte.
Keith Emerson (a esquerda); Carl Palmer (acima, a direita) e Greg Lake (abaixo, a direita) |
Gravado ao vivo na data de 26 de março de 1971, no Newcastle City Hall (Newcastle, Inglaterra), o álbum traz única e exclusivamente toda a versão do ELP para a suíte de Mussorgsky, ocupando quase trinta e oito minutos do vinil. Essa versão possui onze movimentos, sendo oito deles adaptações dos movimentos da versão de Mussorgsky.
Seguindo
fielmente a versão original, Emerson inicia "Promenade", tocando o
órgão Harrison & Harrison instalado no topo do Newcastle City Hall,
do qual ele desceu posteriormente para o palco através de uma plataforma
móvel, enquanto Palmer executa um rufo, entrando em "The Gnome".
Bateria e hammond fazem as malucas notas da canção, enquanto o baixo faz
as intervenções. Os três instrumentos fazem a marcação central,
retornando para as malucas notas, apenas com o hammond e a bateria,
enquanto Lake faz as intervenções com o baixo, utilizando um wah-wah
para criar efeitos interessantes.
O
hammond então puxa os acordes que irão acompanhar o breve solo do
sintetizador. Com um andamento cadenciado de baixo, bateria e hammond, o
sintetizador surge timidamente, e este andamento toma conta das caixas
de som, em um crescendo enigmático, para então, uma série de rufadas
levarem as escalas menores de baixo, acompanhando mais uma passagem com o
sintetizador em destaque. Chegamos em um viajante momento da canção,
com Emerson criando os famosos "uiiiiiiiiiiiiiin" e outros barulhos
eletrônicos através de seus sintetizadores e do Moog Modulado, ao mesmo
tempo que Palmer e Lake fazem o ligeiro ritmo ao fundo, o primeiro
tocando os pratos enquanto o segundo insistindo na mesma nota. O órgão
explode com longos acordes, enquanto o ritmo do baixo e da bateria
aumenta o volume, com Palmer socando o bumbo, encerrando "The Gnome" com
um rápido solo de hammond.
Voltamos
então para "Promenade", tocada agora apenas pelo hammond, quase
inaudível, deixando Lake ecoar sua voz (uma das mais lindas que o rock
já ouviu) sozinho, interpretando a letra criada por ele. O órgão
acompanha com leves notas, falando sobre . O moog valvulado ganha as
atenções, fazendo o solo que nos leva para a linda "The Sage", através
de uma longa nota do sintetizador.
Lake interpretando "The Sage" |
"The Sage" é o momento solo de Lake, que acompanhado apenas pelo violão, faz sua voz estremecer as paredes do Newcastle Hall, seguindo um estilo folk muito belo. Após cantar duas estrofes, Lake demonstra seu lado virtuoso, fazendo uma bonita passagem com o violão clássico, mostrando que além de um grande vocalista e um bom baixista, ele também era um exímio músico com o violão. Para mim, este é o principal trecho da suíte recriada pelo ELP, e talvez o mais lindo na carreira do grupo. O trabalho de Lake é simplesmente incomum para os discos do grupo, e os minutos passam-se suavemente, trazendo novamente o vozeirão do violonista/vocalista, encerrando a última estrofe de "The Sage".
Depois desse lindo momento, Emerson e Palmer deliram com "The Old Castle", na qual o tecladista faz barbaridades e misérias com o clavinet, travando um duelo particular com Palmer, o qual agride o bumbo e as caixas. Depois dessa maluca sessão, Palmer puxa o ritmo marcado na caixa, com o baixo dançante de Lake fazendo a base para Emerson solar no moog.
Emerson, viajando em "The Old Castle" |
Esses barulhos são a introdução de "Promenade", que abre o Lado B tocada imponente pelo hammond e tendo a marcação pegada de baixo e bateria, destacando novamente Palmer e suas rufadas, um trabalho genial!
A
marcação do hammond e bateria repetem o tema central de "The Hut of
Baba Yaga", com baixo e órgão repetindo as notas originais fielmente, e
Palmer viajando com a bateria. O hammond faz o rápido solo central, e
chegamos na viajante "The Curse of Baba Yaga", com Lake fazendo o solo
da canção acompanhado por tímidas notas do órgão. O solo aqui é feito
apenas com o baixo, o qual está carregado de distorção, e ainda recebe
um tratamento de luxo do wah-wah. Depois, com o baixo "limpo", Lake puxa
o ritmo, para Palmer soltar o braço em batidas e viradas nas caixas,
pratos e tons, e o moog modulado fazer o solo principal, ora duelando
com o baixo, ora viajando em um passeio próprio.
Repentinamente,
a canção muda, retornando o tema central de "The Gnome", e com Lake
cantando ferozmente, em gritos dilascerantes, ao mesmo tempo que Palmer
comanda a loucura percussiva ao fundo, com diversas viradas e rufadas
velozes. Emerson sola no clavinet, e a pancadaria come ao fundo,
encerrando a letra com o mesmo clavinete sendo dominado por Emerson
durante "The Hut of Baba Yaga", para uma magnífica sequência de notas de
hammond, baixo e bateria nos levarem para "The Great Gates of Kiev".
A velocidade absurda das viradas de Palmer são o principal destaque. Lake toca o baixo também muito veloz, com notas graves, e um longo acorde de hammond nos brinda com a doce voz de Lake, cantando as estrofes de "The Great Gates of Kiev" em um ritmo lento, diferente da loucura inicial, com o hammond repetindo a melodia original da versão de Mussorgsky.
Carl Palmer mandando ver em suas viradas |
A velocidade absurda das viradas de Palmer são o principal destaque. Lake toca o baixo também muito veloz, com notas graves, e um longo acorde de hammond nos brinda com a doce voz de Lake, cantando as estrofes de "The Great Gates of Kiev" em um ritmo lento, diferente da loucura inicial, com o hammond repetindo a melodia original da versão de Mussorgsky.
O
hammond fica sozinho, executando alguns acordes, retornando a melodia
original e dando sequência para a letra. Mais uma vez o hammond fica
sozinho, com pequenas mudanças de acordes. Timidamente, esses acordes
passam a recriar o tema de "Promenade", com uma marcação de baixo e
prato, explodindo em uma veloz rufada de Palmer, com o moog e o clavinet
viajando alto, em barulhos absurdos, ao mesmo tempo que a plateia
enlouquecida vibra com as estripulias de Emerson, retornando então ao
hammond e a letra de "The Great Gates of Kiev", que é encerrada com as
viradas de Palmer acompanhando as marcações de baixo e hammond. Lake
grita absurdamente, concluindo "Pictures at an Exhibition" com a famosa
frase "Death is life", seguido belos barulhos dos sintetizadores de
Emerson e mais uma impressionante rufada de Palmer.
As
partes novas são "The Sage", "Blues Variation" e "The Curse of Baba
Yaga". No mesmo show no Newcastle Hall, o trio apresentou outra
recriação para uma peça clássica, dessa feita "Nutrocker" (de
Tchaikovsky, em uma versão feita por Tim Fowley), que também está
presente no vinil Pictures at an Exhibition. A versão
remasterizada em CD (lançada em 2001) traz como bônus "Pictures at an
Exhibition" gravada em estúdio, apenas com o ELP interpretando os
movimentos da versão original (sem "The Sage", "Blues Variation" e "The
Curse of Baba Yaga").
Existe
disponível em VHS uma apresentação do grupo Lyceum Theatre, em dezembro
de 1970, a qual consta ser a primeira vez que "Pictures at an
Exhibition" foi apresentada na íntegra, já com seus onze movimentos.
Infelizmente, a versão em DVD cortou boa parte da apresentação, deixando
apenas a suíte como única componente da mídia digital (se você
encontrar a versão em VHS, não exite em vê-la).
Capa dupla original de Pictures at an Exhibition, com os quadros cobertos (acima);
|
A capa original de Pictures at an Exhibition
foi construída no formato gatefold, apresentando seis quadros
encobertos por um manto branco, cada quadro alusivo a um dos movimentos
de "Pictures at an Exhibition". Quando o fã abre a capa, em sua parte
interna encontra os quadros já descobertos, e consequentemente, as
pinturas relativas para cada movimento ("The Gnome", "The Hut of Baba
Yaga", The Old Castle", "The Sage", "The Curse of Baba Yaga" e "The
Great Gates of Kiev"). Somente "Promenade" segue coberta, justamente por
que ela não é alusiva a um quadro, e sim, ao caminho que guia para cada
quadro.
O
álbum manteve o ELP como um dos mais vendidos na Inglaterra,
alcançando a terceira posição em vendas naquele país (décimo nos Estados
Unidos). Os nomes de Keith Emerson, Greg Lake e Carl Palmer estavam
gravados para sempre na história da música, mas eles estavam apenas
começando a sua caminhada para tornarem-se os gigantes que vieram a ser
dois anos depois. Ainda havia mais um passo, como veremos daqui a quinze
dias, com a Maravilhosa "The Endless Enigma".
Álbum maravilhoso. A primeira vez que ouvi e na falta de outro adjetivo para descrevê-lo, pensei comigo mesmo: "Isso é música clássica com esteróides". O ELP conseguiu fazer uma releitura incrível e uma das mais ousadas da história da música. Fico imaginando se o Mussorgsky tivesse vivo para ver e ouvir essa versão.
ResponderExcluirProvavelmente iria aplaudir. Já ouvir a versão do Kazuhito Yamashta? Não entendo como um único violão pode se tornar uma orquestra
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